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2 DESENVOLVIMENTO

2.2 Um Debate Quanto à Governança

2.2.1 Boa Governança, Má Governança ou Simplesmente Governança?

Antes de avançar nas discussões quanto às possibilidades e as estratégias para capacitar os governos municipais para a boa governança, há uma questão inicial, de natureza teórica, que terá consequências sobre quaisquer avaliações que venham a ser propostas sobre o tema em momentos futuros. O questionamento foi levantado por Gonçalves (2005) ao afirmar que a palavra governança já traz em si um elemento positivo, posto que se “(...) governança necessariamente é a boa governança. Onde ficam (...) os erros e falhas no processo de sua construção? A má governança seria simplesmente a ausência de governança, ou há espaço para uma discussão maior sobre os métodos e planos de sua construção e implementação?”. (GONÇALVES, 2005, p. 7). Mais adiante no mesmo texto, o autor recorre a Santos (1997) para reconhecer que a “boa governança é um requisito fundamental para um desenvolvimento sustentado” (SANTOS, 1997, p. 340-341, apud GONÇALVES (2005), grifo nosso). Ou seja, o autor já respondeu ao questionamento ao reconhecer que para o desenvolvimento sustentável é necessária a boa governança, não qualquer governança, tão pouco, a má governança.

Esta relação entre boa governança e promoção do desenvolvimento sustentável vai ser observada em várias outras análises, independentemente da perspectiva dos autores ou mesmo das organizações que a discutem. Para as Nações Unidas, por exemplo, a boa governança é elemento essencial para o desenvolvimento sustentável já que é dela que nasceriam as condições necessárias para construir o caminho para a sustentabilidade. (ONU, 2002, p. 7).

Ou seja, na transição para o desenvolvimento sustentável não bastariam se fazer presente os elementos da governança, mas eles precisariam ser bem manejados. para que se pudesse caracterizar a boa governança. Parece claro que à medida em que as iniciativas de promoção do desenvolvimento sustentável foram sendo implementadas, elementos como estabilidade política, liberdade, estado democrático de direito e respeito aos direitos humanos passaram a se incorporar à concepção de governança adotada, fazendo com que a definição do Banco Mundial assumisse caráter hegemônico nas discussões sobre o tema, ao tempo em que se construíam consensos quanto à possibilidade e à necessidade de se investir no aprimoramento da governança de governos nacionais e subnacionais.

Não satisfeita com este rumo para a discussão, Eppel (2014), ao analisar os desafios que a Nova Zelândia está enfrentando para fazer a transição para um novo regime de governança dos recursos hídricos do País, vai mais adiante ao afirmar que não bastaria ter “boa governança” para ter sucesso neste processo. Para ela, para alcançar os resultados esperados seria necessário uma governança com efetividade, ou, como ela propõe:

“Water governance refers to the processes through which government and non-government actors and citizens interact to produce rules, practices and behaviors through which water is managed and outcomes are achieved (…). Good governance and effective governance are not the same thing: good governance has its focus on doing particular things; effective governance has its focus on achieving the best outcomes for all over time”. (EPPEL, 2014, p. 10).

Sem perder de vista a questão levantada no estudo neozelandês ou mesmo diminuir sua importância, cabe permanecer com a ideia da necessidade da busca da boa governança e da investigação sobre como melhor caracterizá-la e mensurá-la. Um ponto de partida para essa discussão seria o de tentar definir boa governança a partir do seu inverso. Ou seja: como seria possível definir ou identificar uma situação em que prevalece a má governança?

Rodrigues (2014) recorre ao trabalho feito por Weiss, em 2000, para afirmar que na visão do Banco Mundial, “má governança é operacionalizada com a personalização do poder, a falta de direitos humanos, corrupção endêmica e governos não eleitos e irresponsáveis, contrapondo-se, dessa forma, à boa governança”. (RODRIGUES, 2014, p. 87).

Tais definições seriam coerentes com vários outros documentos e trabalhos produzidos no período, como, por exemplo, o documento da União Europeia que antecede em cerca de uma década o relatório da OCDE (2001), que tratava das discussões relacionadas aos esforços de implantação de sua estratégia de promoção do desenvolvimento sustentável para os seus Estados-membros. Naquele trabalho, a Comissão Europeia destacava a importância da “boa governança” para viabilizar os objetivos ali fixados e propunha cinco princípios para a boa governança que textualmente seriam: abertura, participação, accountability, efetividade e coerência. (QUADRO I, Apêndice).

Rogers, Kazi e Boyd (2006) agregam outra dimensão às discussões sobre boa e má governança ao procurar estabelecer uma relação entre a governança de baixa qualidade e suas conseqüências negativas sobre o processo de desenvolvimento e,

especialmente, destacando que tais impactos negativos são sentidos mais fortemente pelas parcelas mais pobres da população. Como afirmam os autores

“Poor governance constrains, retards, and distorts the process of development and has a disproportionately negative impact on the poor.” (RODGERS; KAZI; BOYD, 2006, p. 62).

O ponto a destacar deste trabalho é a tentativa dos autores de relacionar má governança a uma série de consequências que, teoricamente, poderiam ser dimensionadas ou avaliadas. Ao tentar transformar esta proposição a um modelo esquemático (Figura 1), talvez se obtivesse o seguinte:

Figura 1- Modelo Esquemático dos Efeitos da Boa e da Má Governança

Governança Falência das políticas e dos mercados Iniquidade, prejudicando os mais pobres. Atraso no Desenvolvimento com Boa

Governança Bom funcionamento das políticas e mercados

Desenvolvimento Sustentável, com redução da desigualdade e superação da

pobreza. Fonte: Adaptado de Rodgers, Kazi e Boyd, 2006.

Vale ressaltar que no mesmo trabalho, Rogers, Kazi e Boyd (2006) também apontam critérios que os organismos multilaterais de financiamento estariam adotando para estimular que seus países membros passem a perseguir os princípios da boa governança e que, de certo modo, podem apontar na direção das dimensões ou características a desenvolver como parte de um esforço de capacitação para a boa governança, que seriam: accountability; participação e descentralização; previsibilidade; e, transparência. (RODGERS; KAZI; BOYD, 2006, p. 62).

Aqui no Brasil, o já referido Relatório do TCU recorre aos trabalhos desenvolvidos pela Federação Internacional de Contadores onde se definem os “princípios da boa governança” para as organizações do setor público, que seriam: transparência, integridade e prestação de contas. Com base nos trabalhos da mencionada Federação, o Tribunal se alinha à ideia de que “a função fundamental da boa governança é garantir que as suas organizações alcancem os resultados pretendidos, agindo sempre em prol da sociedade” (TCU, 2015, p. 4), apontando como princípios- chave para a boa governança, os seguintes:

“Garantir comportamento íntegro, com forte compromisso com os valores éticos e respeito às leis; Garantir a transparência e engajamento das partes interessadas; Definir resultados econômicos, sociais e ambientais

sustentáveis; Determinar as intervenções necessárias para otimizar a realização dos resultados pretendidos; Desenvolver a capacidade da entidade, incluindo a capacidade de sua liderança e de cada indivíduo; Gerenciar riscos e desempenho, por meio de controle interno robusto e forte gestão financeira pública; e, Implementar boas práticas em matéria de transparência, comunicação e auditoria, a fim de que a prestação de contas seja eficaz”. (TCU, 2015, p. 4).

Por outro lado, em texto que discute, com viés bastante crítico, os critérios adotados para construir índices de percepção de corrupção e suas relações com a forma como o governo da Nova Zelândia trata a questão da governança do setor público, Gregory (2013) reforça a concepção de que existe boa governança e má governança, mas alerta que a distinção entre uma e outra pode ser uma questão de escolha política, mais que técnica. (GREGORY, 2013, p. 4). Ou seja, ademais do entendimento de governança como um processo, em distinção da definição de governo enquanto máquina, merece destacar o alerta que o autor faz para o fato de que boa governança não deve ser compreendida como um conceito meramente técnico e destituído de valor político-ideológico, pelo contrário.

Igual compreensão sobre a dimensão política de boa governança é encontrada na crítica de Easterly (2013) ao uso feito pelas agências multilaterais, que condicionam o acesso às suas linhas de financiamento e aos seus esforços de cooperação técnica à adoção dos princípios da boa governança (EASTERLY, 2013, p. 155). A crítica produzida por Easterly (2013) centra-se na perspectiva tecnocrática com que organizações internacionais de cooperação aplicam o conceito de governança. Para ele, a lógica defendida por tais organismos tem como pressuposto que as dificuldades para nações se desenvolverem decorrem apenas da má governança e a solução para que esses países passem a se desenvolver não teria outra conotação política ou de direitos, mas dependeria do desenvolvimento de capacidades técnicas para a boa governança.

Em certo sentido, tanto a crítica de Easterly (2013) como o posicionamento de Gregory (2013) permitem concluir que há necessidade de distinguir boa governança, de má governança ou, pelo menos, de aceitar que diferentes governos e em diferentes países se identificam níveis distintos que governança, o que abre espaço para investimentos para o desenvolvimento de capacidades técnicas, políticas e institucionais para a melhoria e, consequentemente, para uma melhor gestão das dinâmicas de desenvolvimento.

Ao mesmo tempo, estes trabalhos, como de outros que já alertavam para a dimensão político-ideológico do conceito de governança, obrigam atentar para o fato

de que a definição de indicadores para mensurar os resultados da ação governamental ou mesmo para estabelecer as capacidades e competências que precisam ser desenvolvidas para a boa governança não se dá dissociado de uma base política e ideológica e de uma visão de mundo que precisam ser permanentemente questionadas.

Neste ponto seria interessante organizar este conjunto de princípios e definições apresentados pelas várias organizações e autores, para melhor compreender os aspectos que deveriam ser levados em conta no momento de se avaliar ou de se dimensionar o “grau de qualidade” da governança em um determinado governo nacional ou sub-nacional. Adotando por base os trabalhos do Banco Mundial, de Grindle (2004) e do TCU (2014) que definiram dimensões para a boa governança têm-se o resultado expresso no Quadro 1 a seguir:

Quadro 1 - Dimensões da Governança, por Autor Selecionados.

Autor Dimensão Técnico-

Gerencial

Dimensão Político Institucional

Dimensão Político Relacional

Banco Mundial

Efetividade na formulação

e execução das políticas Processo político, legitimidade da representação

Respeito aos cidadãos e às relações entre Estado e Sociedade.

TCU Estratégia Liderança Controle

Grindle

Habilidade do governo em fazer políticas, gerir assuntos administrativos e fiscais do Estado

Distribuição de poder, regras, normas e como são tomadas as decisões

Relações de responsabilização entre cidadãos e agências do Estado.

Fonte: Elaboração Própria, 2017.

Por outro lado, ao se realizar igual exercício para sistematizar os “princípios” que tais organizações recomendam que sejam observados para que se alcance a boa governança e, com isto, se persiga a trilha da sustentabilidade, se obteria um quadro um pouco mais detalhado sobre os desafios que se colocam para os diversos níveis de governo (Quadro 2).

Quadro 2 - Princípios para a Boa Governança, segundo Instituições e Autores Selecionados.

Banco Mundial OCDE (2001) Rogers et al (2006) TCU 2015

Voz e

accountability Accountability Accountability Transparência e engajamento das partes interessadas Participação Participação e

descentralização Estabilidade

Política

Coerência Previsibilidade Comportamento íntegro, com forte compromisso com os valores éticos e respeito às leis

Banco Mundial OCDE (2001) Rogers et al (2006) TCU 2015

Efetividade do

governo Efetividade Resultados econômicos, sociais e ambientais sustentáveis; Determinar as intervenções necessárias para otimizar a realização dos resultados pretendidos

Estado de direito Abertura Desenvolver a capacidade da entidade,

incluindo a capacidade de sua liderança e de cada indivíduo

Combate à Corrupção

Transparência Gerenciar riscos e desempenho, por meio de controle interno robusto e forte gestão financeira pública; e, Implementar boas práticas em matéria de transparência, comunicação e auditoria, a fim de que a prestação de contas seja eficaz

Fonte: Elaboração Própria. 2017

Dois aspectos podem ser destacados: o primeiro aponta para a convergência entre os princípios da boa governança e as dimensões anteriormente destacadas, servindo de indicativos para uma eventual política de capacitação institucional de governos locais; mas o segundo é a evidência de que a depender do autor, da organização envolvida ou dos seus interesses, a forma como se traduzem os princípios da boa governança tende a variar, o que não deve ser tomado como algo inusitado.

Do ponto de vista metodológico, reconhecer existência de uma dimensão político-ideológico da boa governança implica a necessidade de introduzir abordagens qualitativas nos processos de planejamento, monitoramento e de avaliação tanto da governança como para dimensionar a capacidade institucional para a governança do desenvolvimento sustentável de um determinado governo.

Importa também reconhecer que o processo de capacitação para a boa governança do desenvolvimento sustentável não é apenas um processo técnico- gerencial, mas é um processo de fortalecimento político-institucional dos governos, das organizações da sociedade civil e dos demais atores e grupos de interesse relevantes para tanto.

Considerando as análises realizadas ao longo deste capítulo seria possível propor um quadro sintético dos princípios, aspectos e dimensões que deveriam ser considerados para uma avaliação da capacidade dos governos municipais para a boa governança (Quadro 3).

Quadro 3 - Dimensões e Aspectos a Considerar para uma Avaliação da Boa Governança Municipal.

Dimensão Aspectos a Considerar

Técnico- Gerencial

- Efetividade nas políticas e programas públicos. - Qualidade dos serviços prestados à população

- Eficiência na alocação e aplicação dos recursos públicos Político-

Institucional

- Respeito à legislação e aos contratos.

- Previsibilidade e imparcialidade nos processos de tomada de decisão. - Responsabilização dos agentes públicos por suas decisões e atos.

Político- Relacional

- Existência de espaços para o diálogo e a participação da sociedade na condução das políticas públicas.

- Transparência nos atos e na prestação de contas.

- Mecanismos de combate à corrupção baseados em sistemas de punições e de incentivos equilibrados.

Fonte: Elaboração Própria, 2017.

Ademais, aspectos como o papel das lideranças na condução desses processos, a necessidade de se distinguir a governança como meio e os resultados alcançados como critério para julgamento da qualidade da governança, e o imperativo de ajustar todas essas dimensões e aspectos às particularidades de cada município, precisam ser levados em consideração.

Também é necessário lembrar que como há o interesse específico de discutir a boa governança com foco no desenvolvimento sustentável, é importante esclarecer as distinções conceituais ou as diferentes definições para governança do desenvolvimento sustentável, gestão de políticas de meio ambiente, governança ambiental e do papel do Estado e dos governos em todos esses processos.