• Nenhum resultado encontrado

3 FUNÇÃO HERMENÊUTICA DAS CLÁUSULAS GERAIS NO DIREITO CIVIL-

4.1 Boa-fé

4.1.2 Boa-fé objetiva

Para Eros Roberto Grau (2005, pg. 317), tem-se que:

A boa-fé objetiva não pode ser concebida de forma apartada da realidade objetiva existente em determinado momento histórico. Diz-se objetiva porque destacada do subjetivismo da parte e objetivada pela situação fática, pelo ambiente institucional do momento. Para a determinação do seu conteúdo, pouco importa o subjetivismo ou a intenção do agente. O que conta é o padrão do comportamento esperado por aqueles que com ele interagem.

Cláudia Lima Marques (2010, p. 90), define boa-fé objetiva da seguinte maneira:

(...) uma atuação “refletida”, uma atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando seus interesses legítimos, seus direitos, respeitando os fins do contrato, agindo com lealdade, sem abuso da posição contratual, sem causar lesão ou desvantagem excessiva, com cuidado com a pessoa e o patrimônio do parceiro contratual, cooperando para atingir o bom fim das obrigações, isto é, o cumprimento do objetivo contratual e a realização dos interesses legítimos de ambos os parceiros. Trata-se de uma boa-fé objetiva, um paradigma de conduta leal, e não apenas da boa-fé subjetiva, conhecida regra de conduta subjetiva do artigo 1444 do CCB. Boa-fé objetiva é um standard de comportamento leal, com base na confiança, despertando na outra parte co-contratante, respeitando suas expectativas legítimas e contribuindo para a segurança das relações negociais”.

A cláusula geral da boa-fé está prevista em três dispositivos do CC/02, sendo o principal deles o art. 422, que assim dispõe: “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.

Os demais dispositivos são os arts. 113 e 187, que dispõem, respectivamente: “os negócios devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos e costumes do lugar de sua celebração” e “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestadamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Tais dispositivos apresentam, respectivamente, as funções de integração, interpretação e controle que a boa-fé possui.

A doutrina costuma destacar as seguintes funções da boa-fé objetiva: “a

função interpretativa e de colmatação; a função criadora de deveres jurídicos anexos ou de proteção e a função delimitadora do exercício de direitos subjetivos” (STOLZE; PAMPLONA, p. 78).

A função interpretativa da boa-fé está prevista no próprio Código Civil, em seu art. 113, que assim dispõe: “Os negócios jurídicos devem ser interpretados

conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”. Logo, percebe-se que a

esta função interpretativa visa corrigir eventuais falhas ou omissões nos contratos celebrados, de modo que a acrescentar o que não consta de forma expressa nos contratos. “A boa-fé serve ainda como suporte de colmatação para orientar o magistrado em caso de integração de lacunas” (STOLZE; PAMPLONA, p. 79).

Já pela função criadora de deveres anexos ou de proteção, a boa-fé está relacionada com o aspecto comportamental dos contratantes. Segundo Flávio Tartuce (2012, p. 538), são considerados deveres anexos, dentre outros:

O dever de cuidado em relação à outra parte negocial; o dever de respeito; o dever de informar a outra parte sobre o conteúdo do negócio; o dever de agir conforme a confiança depositada; o dever de lealdade e probidade; o dever de colaboração ou cooperação; o dever de agir com honestidade e o deve de agir conforme a razoabilidade, a equidade e a boa razão.

Esta função da boa-fé está prevista no art. 422 do Código Civil de 2002, que assim preleciona: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na

conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.

Assim, infere-se que “as relações devem ser calcadas na transparência e

na enunciação da verdade, com a correspondência entre a vontade manifestada e a conduta praticada, bem como sem omissões dolosas para que seja firmado um elo de segurança jurídica” (STOLZE; PAMPLONA, p. 81).

Pode-se extrair a função delimitadora do exercício de direitos subjetivos

do art. 187 do CCB/02, que assim dispõe: “Também comete ato ilícito o titular de um

direito que, ao exercê-lo, excede manifestadamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

É importante abordar os principais subprincípios da boa-fé objetiva, a saber: venire contra factum proprium non potest; suppressio; surrectio; tu quoque e

exceptio doli. De pronto, pode-se afirmar que tais princípios são importantes para a

formação do juízo de valor dos magistrados quando da prolação da sentença. Esta deve vir permeadas de valores pautados na boa-fé objetiva.

Para Flávio Tartuce (2012, p. 548), “pela máxima venire contra factum

proprium non potest, determinada pessoa não pode exercer um direito próprio

contrariando um comportamento anterior, devendo ser mantida a confiança e o

dever de lealdade, decorrentes da boa-fé objetiva”. Para Ruy Rosado (2010, p. 251):

(...) a proibição de venire contra factum proprium protege uma parte contra aquela que pretende exercer uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente. Depois de criar uma certa expectativa, em razão de conduta seguramente indicativa de determinado comportamento futuro, há quebra dos princípios de lealdade e de confiança se vier a ser praticado ato contrário ao previsto, com surpresa e prejuízo à parte.

Isso significa dizer que se um indivíduo adota uma conduta durante um razoável lapso de tempo, mesmo que tal conduta esteja expressamente prevista em um contrato de forma diversa, vai criar no outro contratante uma confiança de que a referida conduta se perpetuará ao longo de toda a vigência do contrato, não podendo ser requerida, posteriormente, o estrito cumprimento da cláusula contratual. Dessa forma, percebe-se a função limitadora exercida pela boa-fé objetiva através do seu subprincípio da venire contra factum proprium non potest,vedando, assim, o exercício do direito subjetivo do indivíduo é restringido quando caracterizado o abuso da posição jurídica. Exemplos são fornecidos por Carlos Roberto Gonçalves (2011, p. 61):

Assim, por exemplo, o credor que concordou, durante a execução do contrato de prestações periódicas, com o pagamento em lugar ou tempo diverso do convencionado não pode surpreender o devedor com a exigência literal do contrato. Igualmente , aquele que vende um estabelecimento comercial e auxilia, por alguns dias, o comprador, inclusive preenchedo pedidos e novas encomendas com seu próprio número de inscrição fiscal,

não pode, posteriormente, cancelar tais pedidos, sob a alegação de uso indevido de sua inscrição.

Para Anderson Schreiber (2005, p. 124), devem está presentes quatro pressupostos para a aplicação da proibição do comportamento contraditório:

1.º) um fato próprio, uma conduta inicial; 2.º) a legítima confiança de outrem na conservação do sentido objetivo dessa conduta; 3.º) um comportamento contraditório com este sentido objetivo; 4.º) um dano ou um potencial de dano decorrente da contradição.

Devido à importância da matéria, se faz necessária a colação de julgado do STJ sobre o tema:

Promessa de compra e venda. Consentimento da mulher. Atos posteriores.

"Venire contra factum proprium”. Boa-fé. Preparo Férias. 1. Tendo a

parte protocolado seu recurso e, depois disso, recolhido a importância relativa ao preparo, tudo no período das férias forenses, não se pode dizer que descumpriu o disposto no art. 511 do CPC. Votos vencidos. 2. A mulher que deixa de assinar o contrato de compra e venda juntamente com o marido, mas depois disso, em juízo, expressamente admite a existência e validade do contrato, fundamento para denunciação de outra lide, e nada impugna contra a execução do contrato durante mais de 17 anos, tempo em que os promissários compradores exerceram pacificamente a posse sobre o imóvel, não pode depois se opor ao pedido de fornecimento de escritura definitiva. Doutrina dos atos próprios. Art. 132 do CC. 3. Recurso conhecido e provido. (STJ, RESP 95.530/SP, 4ª Turma, Rel.Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ 14.10.1996, p. 39.015, Data da decisão 03.09.1996). (Grifo nosso).

O subprincípio da supressio é entendido como a supressão de um direito pelo seu não exercício durante um lapso de tempo. Já o subprincípio da surrectio deve ser entendido como a aquisição de um direito em razão da continuada prática de certos atos. Para Flávio Tartuce (2012, p.542):

A supressio significa a supressão, por renúncia tácita, de um direito ou de uma posição jurídica, pelo seu não exercício com o passar dos tempos. Repise-se que o seu sentido pode ser notado pela leitura do art. 330 do CC, que adota o conceito, eis que “o pagamento reiteradamente feito em outro local faz presumir renúncia do credor relativamente ao previsto no contrato”. Ao mesmo tempo em que o credor perde um direito por essa supressão, surge um direito a favor de devedor, por meio da surrectio, direito este que não existia juridicamente até então, mas que decorre da efetividade social, de acordo com os costumes. Em outras palavras, enquanto a supressio constitui a perda de um direito ou de uma posição jurídica pelo seu não exercício no tempo; a surrectio é o surgimento de um direito diante de práticas, usos e costumes. Ambos os conceitos podem ser retirados do art. 330 do CC.

Diante do exposto acima, pode-se afirmar, em consonância com o entendimento de José Fernando Simão (2010, p. 38), que ambos os conceitos constituem “duas faces da mesma moeda”. Tais subprincípios são utilizados como função integrativa. Observam-se exemplos elencados por Carlos Roberto Gonçalves (2011, p. 62):

O contrato de prestação duradoura que tiver permanecido sem cumprimento durante longo tempo, por falta de iniciativa do credor, não pode ser motivo de nenhuma exigência, se o devedor teve motivo para pensar extinta a obrigação e programou sua vida nessa perspectiva. O comprador que deixa de retirar as mercadorias não pode obrigar o vendedor a guardá-las por tempo indeterminado.

A duradora distribuição de lucros da sociedade comercial em desacordo com os estatutos pode gerar o direito de recebê-los do mesmo modo, para o futuro.

Em razão da importância do assunto, necessário se faz colacionar importante julgado do Tribunal de Justiça de Minas Gerais que aplicou os subprincípios da supressio e da surrectio:

Direito Civil. Locação residencial. Situação jurídica continuada ao arrepio do contrato. Aluguel. Cláusula de preço. Fenômeno da surrectio a garantir seja mantido a ajuste tacitamente convencionado. A situação criada ao arrepio de cláusula contratual livremente convencionada pela qual a locadora aceita, por certo lapso de tempo, aluguel a preço inferior àquele expressamente ajustado, cria, à luz do Direito Civil moderno, novo direito subjetivo, a estabilizar a situação de fato já consolidada, em prestígio ao Princípio da Boa-Fé contratual. (TJMG, 16ª Câmara Cível, Acórdão nº 1.0024.03.163299-5/001-Belo Horizonte - MG; Rel. Des. Mauro Soares de Freitas; j. 7/3/2007, v.u.). (Grifo nosso).

O subprincípio do tu quoque está pautado na regra de ouro “é vedado que alguém faça com o outro aquilo que não faria contra si mesmo”. Assim, ocorre a vedação do abuso do exercício de um direito. O contratante que descumpriu uma cláusula contratual não pode exigir que do outro contratante o cumprimento dessa mesma cláusula. Consiste na aplicação do princípio inspirador da exceptio non

adimplenti contractus (arts. 476 e 477 do CC de 2002), o qual dispõe que quem não

cumpriu o contrato ou a lei, não pode exigir o cumprimento de um ou outro.

Para Flávio Tartuce (2012, p. 545), “o termo tu quoque significa que um contratante que violou uma norma jurídica não poderá, sem a caracterização do abuso de direito, aproveita-se dessa situação anteriormente criada pelo desrespeito”. Colaciona-se um exemplo do autor Carlos Roberto Gonçalves (2011, p. 62), “o condômino que viola a regra do condomínio e deposita móveis em área de

uso comum, ou a destina para uso próprio, não pode exigir do outro comportamento obediente ao preceito”.

Segue um exemplo do subprincípio do tu quoque na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:

Recurso Especial. Direito Cambiário. Ação Declaratória de nulidade. Título de crédito. Nota promissória. Assinatura escaneada. Descabimento. Invocação do vício por quem o deu causa. Ofensa ao princípio da boa-fé objetiva. Aplicação da teoria dos atos próprios sintetizada nos brocardos latinos tu quoque e venire contra factum proprium. 1. A assinatura de próprio punho do emitente é requisito de existência e validade de nota promissória. 2. Possibilidade de criação, mediante lei, de outras formas de assinatura, conforme ressalva do Brasil à Lei Uniforme de Genebra. 3. Inexistência de lei dispondo sobre a validade da assinatura escaneada no Direito brasileiro. 4. Caso concreto, porém, em que a assinatura irregular escaneada foi aposta pelo próprio emitente. 5. Vício que não pode ser invocado por quem lhe deu causa. 6. Aplicação da 'teoria dos atos próprios', como concreção do princípio da boa-fé objetiva, sintetizada nos brocardos latinos 'tuquoque' e 'venire contra factum proprium', segundo a qual ninguém é lícito fazer valer um direito em contradição com a sua conduta anterior ou posterior interpretada objetivamente, segundo a lei, os bons costumes e a boa-fé. 7. Doutrina e jurisprudência acerca do tema. 8. Recurso Especial desprovido. (STJ, REsp 1192678/PR, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseveriano, j. 13/11/12, DJe 26/11/12).

A exceção mais conhecida no Direito Civil está prevista no art. 476, que assim dispõe: “Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro”. Para ilustrar, colaciona-se parte do Informativo nº 430 do Superior Tribunal de Justiça, o qual faz referência a tal subprincípio:

Exceção. Contrato não cumprido. Tratou-se de ação ajuizada pelos recorridos que buscavam a rescisão do contrato de compra e venda de uma sociedade empresária e dos direitos referentes à marca e patente de um sistema de localização, bloqueio e comunicação veicular mediante uso de aparelho celular, diante de defeitos no projeto do referido sistema que se estenderam ao funcionamento do produto. Nessa hipótese, conforme precedentes, a falta da prévia interpelação (arts. 397, parágrafo único, e 473, ambos do CC/2002) impõe o reconhecimento da impossibilidade jurídica do pedido, pois não há como considerá-la suprida pela citação para a ação resolutória. Contudo, consta da sentença que os recorrentes já estavam cientes de sua inadimplência mesmo antes do ajuizamento da ação e, por sua inércia, não restou aos recorridos outra alternativa senão a via judicial. Alegam os recorrentes que não poderiam os recorridos exigir o implemento das obrigações contratuais se eles mesmos não cumpriram com as suas (pagar determinadas dívidas da sociedade). Porém, segundo a doutrina, a exceção de contrato não cumprido somente pode ser oposta quando a lei ou o contrato não especificar a quem primeiro cabe cumprir a obrigação. Assim, estabelecido em que ordem deve dar-se o adimplemento, o contratante que primeiro deve cumprir suas obrigações não pode recusar- se ao fundamento de que o outro não satisfará a que lhe cabe, mas o que

detém a prerrogativa de por último realizar a obrigação pode sim postergá- la, enquanto não vir cumprida a obrigação imposta ao outro, tal como se deu no caso. Anote-se que se deve guardar certa proporcionalidade entre a recusa de cumprir a obrigação de um e a inadimplência do outro, pois não se fala em exceção de contrato não cumprido quando o descumprimento é mínimo e parcial. Os recorrentes também aduzem que, diante do amplo objeto do contrato, que envolveria outros produtos além do sistema de localização, não haveria como rescindi-lo totalmente (art. 184 do CC/2002). Porém, constatado que o negócio tem caráter unitário, que as partes só o celebrariam se ele fosse válido em seu conjunto, sem possibilidade de divisão ou fracionamento, a invalidade é total, não se cogitando de redução. O princípio da conservação dos negócios jurídicos não pode interferir na vontade das partes quanto à própria existência da transação. Já quanto à alegação de violação da cláusula geral da boa-fé contratual, arquétipo social que impõe o poder-dever de cada um ajustar sua conduta a esse modelo, ao agir tal qual uma pessoa honesta, escorreita e leal, vê-se que os recorridos assim agiram, tanto que buscaram, por várias vezes, solução que possibilitasse a preservação do negócio, o que esbarrou mesmo na intransigência dos recorrentes de se recusar a rever o projeto com o fim de sanar as falhas; isso obrigou os recorridos a suspender o cumprimento das obrigações contratuais e a buscar a rescisão do instrumento. Precedentes citados: REsp 159.661-MS, DJ 14/2/2000; REsp 176.435-SP, DJ 9/8/1999; REsp 734.520-MG, DJ 15/10/2007; REsp 68.476-RS, DJ 11/11/1996; REsp 35.898-RJ, DJ 22/11/1993; REsp 130.012-DF, DJ 1º/2/1999, e REsp 783.404-GO, DJ 13/8/2007. (STJ, REsp 981.750-MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 13/4/2010. DJe 26/4/2010).

Segundo Flávio Tartuce (2012, p. 547), “o subprincípio da exceptio doli é

conceituado como sendo uma defesa do réu contra ações dolosas, contrárias à boa- fé”.

Documentos relacionados