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1. CINEMA NOVO E(M) SÃO PAULO: “CINEMA DE AUTOR”, BRASIL ANOS

2.1 Boca do Lixo: “cinema utilitário”

“Hoje, meados de 69, quando o mundo bombardeia o cinema e a cultura ocidental, em São Paulo – paraíso da mediocridade – os dois maiores produtores, Massaini e Galante, fazem fitas de cangaço; o visionário Mojica ensina a multiplicar terror com miséria, Lima Barreto bebe cachaça com Roberto Luna, imbecis analisam a temática de Bergman e Fellini, Khoury gerencia a Vera Cruz, Candeias recebe Sacis, Almeida Salles elogia O bandido da Luz Vermelha, Anselmo Duarte lança mais um abacaxi embandeirado, Roberto Santos deflagra os rapazes da Escola de Comunicações Culturais, Capovilla sai do realismo crítico para uma aventura sanguinária à base de grande angular, Lima- Reichenbach improvisam sem dinheiro, o desiludido Person medita diante do copo de conhaque, a intelectualidade reacionária da província continua a mesma, eu – mais um talento escorraçado pelo setor inteligente da direta e pelo setor imbecil da esquerda radical, perdido no Saara da inteligência – confesso que – ao contrário do Rio – aqui não se faz longa-metragem mas jingle, nós lutamos contra as evidências, que ainda não perdemos a cara-de-pau, continuamos fazendo estas fitas inofensivas, medíocres e pretensiosas” (Rogério Sganzerla apud Benevides, 1969, p.96).

A expressão “Cinema da Boca do Lixo” designa antes a origem geográfica de parte da produção cinematográfica brasileira do que um estilo, embora tenha sua imagem vinculada ao cinema erótico que lá predominou em meados dos anos 1970, desembocando em filmes de sexo explícito nos anos 1980. A região em torno das estações da Luz e Júlio Prestes, denominada pela crônica policial dos anos 1950 como “Boca do Lixo” por concentrar prostituição e criminalidade, abrigava distribuidoras cinematográficas brasileiras e estrangeiras desde os anos 1920 devido à facilidade de escoamento das fitas de cinema para o interior do estado via rede ferroviária. Foi, no entanto, a partir de meados dos anos 1960 que a região em torno da Rua do Triumpho e adjacências começou a se estabelecer como um centro de produção cinematográfica, impulsionada pela reserva de mercado para filmes brasileiros, conhecida como cota de tela, que cresceu progressivamente ao longo daquela década e da seguinte.106 A cota de tela que propiciou que filmes “cultos” como os dos remanescentes do Cinema Novo coproduzidos pela Embrafilme fossem exibidos e fez aumentar a presença dos filmes brasileiros em seu próprio mercado107, teve o “efeito colateral” de ensejar uma

106 Instituída pelo Estado desde 1932, a cota de tela foi aumentando progressivamente, com particular ascensão

nas décadas de 1960 e 1970: de 42 dias por ano em 1959 chegou a 133 dias em 1978. Cf. Johnson, 1987, p.185.

produção de caráter estritamente comercial voltada para abastecer, com possibilidade de lucro, as salas exibidoras que precisavam cumprir a lei de exibição compulsória. Aos filmes de maior rigor estético e temático que nem sempre eram boas promessas de bilheteria, os exibidores preferiam filmes de evidente apelo comercial, como os produzidos pela Cinedistri108, de Oswaldo Massaini, e logo começaram eles mesmos a produzir filmes, associando-se a produtoras como a Servicine, de Alfredo Palácios e Antonio Polo Galante. Outro elemento de incentivo à produção era o Prêmio Adicional de Bilheteria, existente em São Paulo desde 1955, conforme mencionamos, e que o INC, criado em 1966, regulamentou para todo o país, concedendo prêmios proporcionais ao desempenho de bilheteria que variavam entre 5% e 10% da renda obtida nos dois primeiros anos de exibição. Pequenos e médios comerciantes de diversos setores começaram também a investir em cinema e, assim, consolidou-se naquela região um polo produtor de filmes, de diversos gêneros, geralmente de baixo custo, com maior ou menor apuro técnico e com o objetivo comum de atingir o mercado. 109

O Cinema da Boca era, assim, um “cinema utilitário”, como classificou Capovilla (apud Mattos, 2006, p.102), mas comportou algumas “brechas” e foi entre elas que na virada dos anos 1960 para os 1970 surgiram filmes que posteriormente foram abrigados sob o rótulo de Cinema Marginal. Marcados pelo “binômio lixo-deboche” – expressão de Ortiz Ramos (1983, p.68) – tais filmes, desprovidos de utopia, colocavam-se como respostas agressivas, cruéis e sarcásticas à conjuntura brasileira de modernização acelerada e desenvolvimento da indústria cultural, sob intensa repressão do regime militar. O cineasta João Callegaro, um dos nomes do Cinema Marginal, explica como esse cinema com traços rebeldes e experimentais pôde emergir num esquema de produção voltada ao mercado: “Se a sua ideia fosse minimamente comercial, você conseguia um apoio de produção. Os custos eram baixos e os produtores, picaretas e ingênuos. Se vislumbrassem uma pequena possibilidade de lucro investiam. Pouco, mas investiam. Mesmo que entrassem com equipe, equipamento ou custos de laboratório”. (CALLEGARO apud STERNHEIM, 2005, p.29). José Mário Ortiz Ramos

dobrou de 30 milhões para mais de 60 milhões e a fatia de mercado ocupada pelo cinema brasileiro passou de 15% para mais de 30%.

108 Sediada desde o início à Rua do Triumpho, a Cinedistri, distribuidora de filmes fundada por Oswaldo

Massaini em 1949, passou ainda nos anos 1950 à produção de filmes voltados para o mercado como comédias musicais que lhe deram capital para investir numa produção mais arrojada, O pagador de promessas (Anselmo Duarte, 1962). Seguindo sua vocação comercial, produziu nos anos 1960 diversos filmes com a temática do cangaço, como Lampião, o rei do cangaço (Carlos Coimbra, 1962) e Cangaceiros de Lampião (Carlos Coimbra, 1966), e nos anos 1970 ingressou na produção erótica. Cf. “Cinedistri” em Ramos; Miranda (Orgs.), 1997, p.132-133.

corrobora a declaração de Callegaro. Segundo ele:

A própria forma de produção, ao invés de circundar a burguesia nacional como o Cinema Novo, tinha suas origens em pequenos capitalistas, numa espécie de ‘marginalidade econômica’, e assim a sustentação da proposta cultural permitia – aliás, nem devia se interessar por este aspecto – os exercícios estéticos dos cineastas. (RAMOS, J., 1983, p.69).

Alessandro Gamo (2006) reconstitui – por meio de análise dos textos de Jairo Ferreira no jornal São Paulo Shimbun (1966-1973) e da revista Cinema em Close Up (1975- 1977) – a história da produção cinematográfica na Boca do Lixo em seus dois momentos principais: o das experiências associadas ao Cinema Marginal e o da produção fundamentalmente comercial que a sucede. Como apontou Callegaro e, como nota Gamo (2006, 2007), é importante verificar que a perspectiva comercial não estava ausente nos horizontes da vertente paulista do Cinema Marginal. A lucratividade era um fator considerado importante para a continuidade da produção e o apelo erótico era utilizado para este fim. Era a vertente “marginal-cafajeste” caracterizada por Fernão Ramos (1987b), na qual se encontra uma postura de “curtição” e incorporação debochada de elementos eróticos, expressada em filmes como As libertinas (Carlos Reichenbach, Antonio Lima e João Callegaro, 1969),

Audácia, fúria dos desejos (Carlos Reichenbach, Antonio Lima, 1970) e O pornógrafo (João

Callegaro,1970). Na gênese da Boca do Lixo como polo produtor de cinema já se encontravam elementos do entrecruzamento marginal-erótico que marcaria essa produção. De um lado, A margem (Ozualdo Candeias, 1967), clássico precursor do Cinema Marginal, trazendo às telas figuras erráticas e miseráveis nas margens do Rio Tietê; de outro, Vidas nuas (Ody Fraga, 1967), derivado de um filme iniciado em 1962 por Ody Fraga sob o título As

eróticas e completado por Antonio Polo Galante e Sylvio Renoldi com a inclusão, entre outras

cenas, de uma demorada cena de strip-tease110. Na produção desses dois filmes, trabalharam duas personalidades que se tornariam figuras-chave da Boca: Renato Grecchi, da I.N.F. - Indústria Nacional de Filmes, a quem, Candeias recorreu para a finalização de A margem, sendo ele também responsável pela distribuição do filme, conforme Gamo (2006,2007); e Antonio Polo Galante, então comerciante de materiais cinematográficos que encontrou casualmente os negativos de As eróticas em meio a materiais diversos por ele adquiridos, completando o filme com o auxílio do montador Sylvio Renoldi que conhecera na Companhia Cinematográfica Maristela onde trabalhara como técnico eletricista.

Vidas nuas, transformado em longa-metragem com as cenas adicionais filmadas

por Galante e Renoldi, fez grande sucesso nos cinemas e inaugurou a carreira de Galante como um dos principais produtores da Boca do Lixo. Como parceiro de Grecchi produziu na sequência Trilogia do terror (1968), longa composto de três episódios, dirigidos por Ozualdo Candeias, de A margem; José Mojica Marins, o “Zé do caixão”, “mestre do terror brasileiro” e ícone cultuado pelos cineastas “marginais”, e Luiz Sérgio Person que, também admirador de Mojica, resolve enveredar por esse gênero um tanto quanto surpreendente em sua filmografia. Assim como Person, os cineastas que compõem o conjunto focalizado por esta pesquisa não são diretamente identificados ao Cinema Marginal, formado por cineastas mais jovens que eles (em idade e/ou no que diz respeito à inserção no meio cinematográfico), próximos à contracultura, num quadro ideológico bastante distinto daquele do Cinema Novo, conforme aponta Fernão Ramos (1987b)111. No entanto, a maioria deles (João Batista de Andrade, Maurice Capovilla, Luiz Sérgio Person, Francisco Ramalho Jr. e Roberto Santos) tem alguma ligação com a Boca do Lixo, e, por isso, encabeça verbetes no Cinema da Boca:

dicionário de diretores, organizado por Alfredo Sternheim (2005), cujo critério para a

inclusão de nomes foi: “diretores que, de uma maneira ou de outra, fizeram filmes ligados aos produtores e distribuidores da Boca do Lixo” e que “tiveram uma vivência física e constante com aquele ambiente” (STERNHEIM, 2005, p.45).

Como professor da Escola Superior de Cinema São Luís, Person alertava seus alunos, entre os quais Carlos Reichenbach, que se tornaria um dos nomes importantes do Cinema Marginal paulista:“Se vocês quiserem fazer cinema, vocês vão ter que pôr o pé na Boca do Lixo” (REICHENBACH apud COSTA, 2006, p.81) e chegou a levar para uma de suas aulas o cineasta José Mojica Marins, de quem era amigo e admirador. Conforme relata Mojica Marins em depoimento sobre Person (In: Campos Jr. e Moraes (Orgs.), 1986b), além do encontro em sala de aula, vários dos alunos da Escola Superior de Cinema São Luís foram incentivados a fazer estágio de cinema com ele. Person atuou como ator em O estranho

mundo de Zé do Caixão (José Mojica Marins, 1968), sendo segundo o diretor, um intérprete

dedicado e envolvido no projeto: “Ele não falava nada, qualquer loucura que eu pedia pra fazer, as piores loucuras lá dentro, lá estava o Person fazendo, era o ator mais comportado de todos e partia pras coisas. Eu pedia pra encher a cara de melado com groselha e chocolate e

111 Conforme assinala Fernão Ramos (1987b), no Cinema Marginal, ligado a um quadro ideológico pós-AI-5, as

preocupações com os dilemas da nação e do povo deram lugar ao deboche e ao niilismo, tematizando-se questões como “as drogas, o sexo livre, o não-trabalho, a falta de um objetivo ‘válido’ na ação”. (RAMOS, F., 1987b, p.35).

ele fazia aquilo na maior boa vontade, gostava, gostou da fita” (MARINS apud CAMPOS JR. E MORAES (Orgs.), 1986b, p.105). A ligação de Person com a Boca ocorre também por vias indiretas por meio daquele que seria seu primeiro filme Um marido para três mulheres, comédia com Ronald Golias, que dirigiu e em que atuou em 1957. O filme chegou a ser dublado e montado mas não foi lançado à época por falta de recursos financeiros e, de maneira semelhante ao que acontecera com As eróticas transformado por Galante em Vidas

nuas (1967), o filme foi, segundo Moraes (2010, p.500), encontrado casualmente por Renato

Grecchi numa produtora da Boca do Lixo, complementado com cenas adicionais e lançado em 1967 sob o título de Um marido barra-limpa. De acordo com Moraes (2010, p.501) Person chegou a ser convidado por Grecchi para realizar as cenas adicionais do filme mas recusou o convite envolvido que estava com O caso dos irmãos Naves e não querendo associar seu nome a um “filme de boulevard”. O curioso é que com recursos arrecadados com

Um marido barra-limpa Grechi investe justamente em Trilogia do terror para o qual Person

realiza um episódio, a convite – único filme de Person a convite de terceiros, segundo Heffner (2002, p.13). Galante (2012), em depoimento ao Projeto Memória do Cinema Brasileiro do MIS-SP, relata que Trilogia do terror fez sucesso e deu rendimento principalmente por causa do filme de Person que chamava a atenção com seus guerrilheiros fantasmas vestidos com camisetas de purpurina. Como curiosidade, acrescenta-se que o garoto do filme era sobrinho do produtor. De acordo com dados de 1969, o filme custara 60 mil cruzeiros novos e já havia rendido Ncr$ 450 mil, em dezoito meses.112 Foi a partir desse segundo sucesso que Galante

foi convidado por Alfredo Palácios para fundar a Servicine (Serviços Gerais de Cinema), que se tornaria uma das principais produtoras da Boca do Lixo. A insólita sociedade entre um homem de origem humilde – Galante (2012) relata que foi criado em uma instituição para menores abandonados, que só foi alfabetizado na adolescência e que nunca leu um livro completo em sua vida – e o experiente advogado e executivo (cujo currículo incluía o cargo de Produtor Geral na Companhia Cinematográfica Maristela, bem como a produção e direção de diversos filmes da empresa; a produção do seriado televisivo de sucesso, O vigilante

rodoviário e o cargo de Diretor Superintendente de uma grande companhia Paulista, a

TELEVOLT S/A), marca bem o caráter peculiar das fusões de interesses na Boca. 113 Palácios e Galante se conheciam desde os tempos da Maristela, quando Galante lá trabalhava como eletricista, e se reencontraram anos depois quando Galante comercializava materiais

112 Cf. Benevides 1969, p.98.

cinematográficos. A sociedade, conforme Gamo (2006, p.157-158), se estabeleceu primeiro no comércio desses materiais e, posteriormente, na produção de filmes quando o advogado notou a perspicácia comercial do produtor iniciante. Person já era conhecido da dupla desde os tempos da Maristela, tendo sido, em parceria com Palácios, corroteirista no penúltimo filme da companhia, a comédia Casei-me com um xavante (Alfredo Palácios, 1958), na qual também foi ator. Já o último filme da companhia, Vou te contá... (Alfredo Palácios, 1958) foi roteirizado por dois antigos amigos de Person, Claudio Petraglia e Glauco Mirko Laurelli, tendo este futuramente se tornado seu sócio na produtora Lauper Filmes e na distribuidora RPI, assim como em seus investimentos no teatro nos anos 1970. Fundada em 1968, a RPI que, conforme mencionado no capítulo anterior, associava a Lauper Filmes de Laurelli e Person à Tecla de Batista e Ramalho, tinha seu escritório localizado exatamente na região da Boca do Lixo, de modo que a essa época, Person era figura frequente nas imediações da Rua do Triumpho, aparecendo em fotos e filmes de Candeias que retratam a região114, bem como no prólogo do filme Audácia (Carlos Reichenbach, Antonio Lima, 1970).

O referido prólogo, dirigido por Reichenbach, é bastante interessante por documentar de maneira irônica e debochada, bem ao estilo “marginal”, a produção cinematográfica daquele momento da Boca e mostrar as ruas da região bem como as várias figuras de cinema que por lá circulavam. “Rua do Triumpho, São Paulo, esquina do marginal. Rua do Triumpho, São Paulo, esquina do cinema nacional”, informa a narração introdutória. Enquanto as imagens mostram alguns dos realizadores da Boca que podemos reconhecer, ouvem-se em over frases soltas e entrecortadas, em diferentes vozes de autoria não explicitada: “No Brasil, três tipos de filmes têm sucesso garantido: comédia, cangaço e erotismo”; “Quero fazer uma chanchada psicoanalítica, familiar...”; “Não quero fazer um filme de autor, quero fazer um filme de coordenador”; “Precisamos fazer filmes péssimos; filmes baratos, que custem menos”. Com pequenas alterações, encontramos no artigo de Benevides (1969), que traça um panorama do cinema paulista da época, algumas das frases citadas no filme. A primeira é de Carlos Coimbra, realizador de diversos filmes de cangaço para a produtora Cinedistri de Oswaldo Massaini e que se queixa à reportagem de não conseguir produção para um projeto de sua autoria sobre a juventude. A segunda é de Márcio Souza, falando de seu primeiro projeto de longa-metragem. A terceira é de Roberto Santos que tece críticas aos rumos do Cinema Novo em direção a espetáculos caros e comenta o

114 Nas fotos de Candeias podem ser vistos também Roberto Santos, Capovilla, Batista e Ramalho Jr. Cf.

Candeias (1981, 2001) e os filmes Uma rua chamada Triumpho 969/70 (Ozualdo Candeias, 1971) e Boca do lixo cinema (Ozualdo Candeias, 1976).

projeto que veio a ser Vozes do medo, ainda não titulado à época. Sua proposta era fazer um filme à semelhança de uma revista, sem narrativa única, com diferentes seções e linguagens, em torno do tema da juventude. O filme seria “rodado sempre que houver dinheiro, com a equipe e os atores disponíveis na ocasião” e a ideia do cineasta, expressa na frase citada acima, era a de ser o coordenador do projeto que estava aberto a quem se interessasse: “quem quiser entrar no filme, entra. É só falar comigo e propor um item sobre o tema”. (SANTOS apud BENEVIDES, 1969, p.99). Já a quarta/quinta frase remete a declarações de Rogério Sganzerla e ao espírito geral da produção “marginal”. Faz parte do prólogo também uma entrevista com José Mojica Marins na qual ele responde à questão “O que precisa para ser autêntico?”:

Não esnobar quando não estamos na altura de esnobar; não procurar mostrar intelectualidade quando não temos cultura para isso; não se esconder em pele de ovelha quando na realidade somos lobos mesmo. Em suma, afastar de nós o manto nojento da demagogia e procurar sermos o que realmente somos.

As declarações – que não sabemos serem espontâneas ou construídas para o filme – dão uma medida das ideias subjacentes ao Cinema Marginal, passando pelos aspectos de crítica e ruptura com o Cinema Novo. E o comentário de Sganzerla elogiando Mojica complementa essa ideia:

Mojica é um cineasta sem compromisso com o cinema contemporâneo moderno e exatamente por isso ele é um cineasta moderno, na medida que é um bárbaro, radical, com um grande sentido de poesia, com um grande sentido de cinema e com um efeito crítico avassalador diante dos problemas do homem brasileiro, que é um homem recalcado, um homem submisso, um homem pretensioso, um homem dos mil defeitos.

Além das declarações citadas e das imagens da Boca, o filme traz também imagens dos bastidores das filmagens de O profeta da fome de Maurice Capovilla, apresentando o projeto, a equipe e os métodos de trabalho. O filme, que gira em torno de um faquir que faz da fome seu meio de vida, foi protagonizado por José Mojica Marins e guarda diversos pontos de contato com os elementos característicos do Cinema Marginal, entre os quais a fragmentação narrativa e a presença do grotesco e do absurdo. O filme contou com recursos da Cinedistri, de Oswaldo Massaini, veterano da Boca, para a finalização e distribuição. O depoimento de Capovilla sobre o apoio da Cinedistri é interessante para a compreensão das condições de produção em São Paulo na época. Ele, que é considerado parte de um “segundo círculo ampliado do movimento”115 do Cinema Novo, afirma que, a despeito

de suas relações de amizade, quem viabilizou a conclusão de seu filme foi a produtora da Boca do Lixo: “eu faço O Profeta [da fome], circulo no meio das pessoas que estão fazendo filmes naquele momento, mas quem me dá condições de terminar esse filme é o [Oswaldo] Massaini”” (CAPOVILLA apud TOSI, 2006, n.p.).

As ligações de Capovilla com o Cinema da Boca incluem ainda a participação como ator/figurante nos filmes O bandido da luz vermelha (Rogério Sganzerla,1968) e Ritual

dos sádicos/O despertar da besta (José Mojica Marins, 1969)116 e é curioso encontrá-lo como

porta-voz do movimento futuramente conhecido como Cinema Marginal na reportagem “Boca do lixo dá cinema também” de A crítica (1970). O artigo é conduzido inteiramente pelo depoimento de Capovilla que explica o “movimento de autoprodução surgido no Bocão”. Ele descreve a sistemática que consiste em fazer filmes de baixo ou no máximo médio orçamento com recursos conseguidos mediante empréstimos, associação com pequenos produtores e créditos em laboratórios de revelação. Entre os envolvidos havia cooperação, com cessão de câmeras, moviolas e mesmo empréstimo ou doação de filme virgem. Com os rendimentos de um filme investia-se prontamente no próximo, como fez Sganzerla com O bandido da luz

vermelha (1968) e A mulher de todos (1969). A ideia era produzir “loucamente, sem parar, um

filme atrás do outro. Pois a gente quer chegar à media de dois filmes por ano pra cada diretor.” (CAPOVILLA apud BOCA, 1970, p.26). Quanto às propostas estéticas, conforme o cineasta, mais do que uma unidade de pensamento buscava-se a unidade nas questões econômicas que garantiriam a independência e o desenvolvimento das visões particulares, o que em si já seria um fator de unidade do grupo uma vez que era um dado aceito por todos. Como um fator estético comum, ele aponta, entretanto, “a fuga do realismo”: “Todos os filmes que estão sendo produzidos (ou foram) nesta fase, fogem do realismo convencional.