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EXPERIÊNCIA DA DOENÇA, GÊNERO MASCULINO E REDE SOCIAL FAMILIAR

64 BOLTANSKI, 2004: 141 65 DETREZ,

66 Sobre a utilização dos diferentes capitais (financeiro, social e humano) e suas vantagens em momentos de

enfermidade, veremos mais a seguir.

No caso da presente pesquisa, encontramos um relato representativo dos cuidados masculinos com o corpo. O paciente Vanildo relatou que há muito tempo não tinha sensibilidade em grandes partes do corpo, se queimava e não sentia. No entanto, não julgou necessário buscar ajuda médica. Enfim, ao ser atendido por causa de um sangramento constante que sofria (devido a uma outra doença), aproveitou a ocasião de internamento no hospital para perguntar aos alunos de medicina que o tratavam o que poderia ser a falta de sensibilidade na pele. Vanildo não procurou o médico por causa dos incômodos provocados pela hanseníase. Ele só foi ao hospital devido à uma situação de necessidade extrema, em que aproveitou para se informar sobre seu problema de pele. Outros pacientes, ao notar sintomas estranhos, também demoraram a buscar ajuda em um serviço de saúde. Isso pode ter ocorrido por não terem valorizado os sintomas da doença como motivo de preocupação, por não terem sentido dor ou porque a doença não atrapalhava o trabalho.

"Olha, apareceu uma mancha, uma pequena mancha, algumas pessoas falam em ´inpinge´. ´Inpinge´, entendeu? Eu conheço sobre isso. Então às vezes a gente cerca ela com tinta e desaparece e apareceu na minha perna esquerda. Eu acredito que já há alguns anos, talvez uns 15 anos talvez. Só que eu não dei muito valor a essa… Às vezes até sumiu, só que no último… um ano atrás mais ou menos aquela coisa começou a me incomodar." (entrevista Chapolim) "Não, eu também não falava mais nada, porque também não doía, não atrapalhava a trabalhar. Quando ela chegou num extremo grave foi que…eu já tava ruim mesmo já. Aí que foi com o médico lá embaixo, na rua de M., ali no posto, aí me explicou, aí eu vim correndo…" (entrevista Edilson)

Não apenas nesses dois relatos, mas em outras entrevistas, confirmamos os dados apresentados anteriormente sobre a identidade masculina, especialmente no que se refere à busca de ajuda médica em casos extremos de dor ou quando os sintomas da hanseníase passam a atrapalhar o rendimento laboral.

Trabalho e hanseníase

Como vimos, o trabalho é a fonte de renda (e sobrevivência) do homem e sua família. No estudo dos homens hansenianos, consideramos importante analisar este aspecto específico de suas vidas, pois como toda doença, a hanseníase atinge em algum grau a disposição física. Apesar de a maioria dos pacientes não ter reclamado de diminuição da disposição para trabalhar, os que viveram este problema muitas vezes preferiram ignorá-lo a ter que deixar sua fonte de renda68.

68 Para tornar os relatos dos pacientes mais compreensíveis, vale a pena dizer que aposentar-se no Brasil é o mesmo

que entrar em reforma em Portugal, ou seja, é quando o trabalhador atinge a idade ou tempo de trabalho suficientes para deixar a vida laboral, recebendo um salário mensal como recompensa à sua contribuição durante toda a vida. A instituição pública responsável por distribuir as aposentadorias e benefícios sociais no Brasil se chama Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Antigamente a instituição se chamava Instituto Nacional de Previdência Social

Outros pacientes, como veremos a seguir, não tiveram oportunidade de escolher entre manter a atividade laboral ou não.

"Eu tava trabalhando. Aí quando descobriram(...) não me quiseram mais, eu já estava reformado. (...) Eu era revoltado porque atrapalhou minha carreira.(...) eu tava pra ser promovido na ocasião, não fui promovido.(...) Então, trabalhei 25 anos só na polícia, e interrompeu um ciclo de 30 anos por causa que eu perdi essa promoção.(...) Foi a doença que uma das minhas revoltas foi essa." (entrevista João)

"Mas mudança… eu tive que parar de estudar, larguei a faculdade na época, de direito, não pude praticar mais nada. Não podia fazer mais nenhum tipo de exercício, até hoje não posso, fazer nenhum tipo de exercício. Não posso fazer muito esforço. (...) Eu não posso trabalhar por causa do meu problema…" (entrevista Alex)69

"Fui aposentado por invalidez. (...) É… A única coisa que me afetou, eu sempre digo, que eu não tive uma oportunidade de crescer, de evoluir na profissão, uma coisa assim né? Porque você no INPS, põe pra benefício, aí não tem como porque você não pode ter uma carteira (de trabalho), você não pode nada. Então você não tem chance de vir à frente, né ? Só fica naquilo ali mesmo.(...) A vida teria que ser assim." (entrevista José)

Esses pacientes viveram a doença como um evento de ruptura em suas carreiras, em seus projetos de vida profissional, seja pela perda de uma promoção, pela impossibilidade de praticar atividades físicas ou pelo benefício devido à invalidez. Em alguns casos de hanseníase, pessoas consideradas inválidas para o trabalho recebem como benefício a aposentadoria precoce. A hanseníase teve assim conseqüências sócio-econômicas significativas na vida de cada um deles, mas teve também conseqüências em suas identidades.

O paciente hanseniano pode temer que o diagnóstico signifique ter que pedir demissão no emprego, ser demitido ou se aposentar. Infelizmente, se aposentar significa em geral uma queda no nível de salário, no nível da vida financeira. Alguns pacientes, que estão desempregados, ficarão aliviados em receber a aposentadoria precoce como uma garantia de sobrevivência; porém, de modo geral, os pacientes relataram enxergar na mesma um prejuízo, uma fatalidade indesejável.

"Houve uma possibilidade até em cortar, no INPS, entendeu ? Eu não quis. Até mesmo porque, poxa, eu quis mostrar que não tinha nada comigo. Entendeu ? Eu tô trabalhando, não tô bem não, às vezes eu sinto… Mas pelo menos eu tô fingindo que estou bem. (...)Porque eu acho que as pessoas…a pessoa às vezes vai fazer tratamento e quer ´se encostar´. Eu, do meu ponto de vista, acho isso um grande erro, poxa, porque você vai ´encostar´, primeiro, seu salário cai ´pra danar´. Você vai ficar em casa, sem dinheiro, doente, não dá né…" (entrevista Chapolim)

(INPS), que quando transformou algumas de suas filosofias, substituiu sua sigla por INSS. Por isso, alguns dos entrevistados ainda se referem à sigla antiga. Outro ponto importante é que uma expressão popular frequentemente utilizada para se referir ao ato de se aposentar é "se encostar".

"Não, no meu trabalho, vou ser franco contigo, até agora eu não comuniquei que eu tenho ´hansenia´ não. Não comuniquei não. (...) Eu sei lá, eu não sei nem como chegar e conversar ´olha só, tô com hansenía´, eu não sei nem o que vai sentir. Eu não quero me ´encostar´ agora, eu não quero porque se tiver problema de ´encostar´ né… Mas aí eu não quero porque eu vou perder muita coisa. (...) E pago muitas coisas, tenho muitas coisas a pagar e se eu perder esse dinheiro… Mas eu sei, eu tô me tratando, não tô prejudicando ninguém, entendeu ?" (entrevista Ivan)

A análise da relação do paciente homem com o trabalho nos permite compreender melhor a experiência específica da doença segundo o gênero. A hanseníase pode questionar e ameaçar o papel masculino como provedor da família. Como vimos, em alguns casos será necessário dissimular ou omitir a vulnerabilidade física para manter um status sócio-econômico; em outros casos, não será possível garantir o emprego ou o nível de renda. Mas os homens, com todas as vulnerabilidades ligadas ao comportamento e posição social de gênero, não estão sozinhos nessa luta contra o evento da doença. Não podendo sempre contar com sua atividade física, podem pelo menos contar, em muitos casos, com seus contatos sociais e os capitais que os mesmos provêem.