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MUDANÇA DE STATUS DO DOENTE NA HISTÓRIA

43 LE GOFF, 1989 44 CONDE,

45 LÉVI-STRAUSS, 1979

46 CAPRETTINI; FERRARO & FILORAMO, 1987 47 DOUGLAS, Edições 70

48 DOUGLAS, 1991: 723

49 "(…) Nuer, eles nem sempre sabem ao certo se cometeram incesto ou não, mas acreditam que o incesto traz o

infortúnio na forma de uma doença de pele, que, aliás, se pode evitar fazendo um sacrifício. Se acharem que se arriscaram demasiado, poderão recorrer ao sacrifício. Se acharem que o grau de parentesco é de fato muito afastado (…) deixarão o problema em suspenso até que a doença de pele apareça. Assim as regras de pureza permitem, por vezes, resolver questões morais dúbias." – DOUGLAS, Edições 70: 155

contagiosa50. A doença estava em um corpo, mas seu simbolismo de impureza ia além da

fronteira da pele.

O que isso pode nos dizer sobre nossas noções higiênicas ? Não são elas também, em certa medida, produto da imaginação social ? Um corpo analisado pelos humores aristotélicos, contém humores; um corpo analisado por órgãos, contém tecidos; um corpo analisado por funcionamento psicossocial, é um objeto psicossocial51. Eliminar a impureza é um gesto positivo

para organizar o meio, é um modo de impor unidade à experiência humana52. Seja na magia, na

religião53 ou na medicina científica, a visão de certos objetos como impuros e de certas ações

como ameaças ao bem-estar, é uma forma de interdição higiênica, contém máximas utilitárias54.

Em qualquer rito (como o de separação e purificação) os símbolos são eficazes quando inspiram confiança; mais importante que serem "verdadeiros" ou não é que o doente e a sociedade creiam neles55.

Declínio da lepra no continente europeu:

O declínio da lepra na Europa se deu gradualmente a partir do século XV. Os "lazaretos" foram desativados aos poucos até 187056. Entre as hipóteses para a menor importância da doença

neste território podemos citar três. Houve uma crise demográfica européia depois que a peste e a fome reduziram a população drasticamente (levando consigo inclusive os leprosos) entre 1430- 1450; uma microbactéria vizinha, a da tuberculose, teria saído vencedora na concorrência biológica57; por fim, a hipótese mais aceite é a de que foi significativa a melhoria das condições de

50 Como em qualquer sociedade os fenômenos são percebidos através de observação direta e representações

herdadas. A nossa ciência também opera com o conceito de poluição quando se empenha ao máximo em evitar os germes. Há poucas décadas, em algumas regiões do Brasil, os leprosos não podiam vender alimentos produzidos por eles e suas cartas eram desinfetadas antes de serem enviadas com a correspondência dos funcionários "saudáveis" dos leprosários. - BORGES, 2000

51 ARMSTRONG, 1994

52 "(…) o mito fracassa em dar ao homem mais poder material sobre o meio. Apesar de tudo, dá ao homem a ilusão,

extremamente importante, de que ele pode entender o universo e de que ele entende, de fato, o universo" - LÉVI- STRAUSS, 1979: 32

53 A noção de impureza e o perigo pressentido frente aos objetos considerados impuros não estão apenas nos

discursos religiosos. No próprio domínio religioso, não são exclusivos de um dogma ou crença.

54 "(...) Jewish dietary rituals (kosher food) were principally expressions of precepts about pollution and purification.

Nevertheless, cleanliness rites indirectly spurred public health (...)."- PORTER, 1997

55 DOUGLAS, Edições 70

56 Um dos últimos países a possuir a doença no continente europeu foi a Noruega. "The reasons for the

disappearance of leprosy from northern Europe and the failure to observe secondary transmission of the disease on much of the industrialized world have never been fully understood, but clearly suggest that the multiple and complex changes associated with improvement of socioeconomic conditions is one of the factors associated with leprosy control and even erradication." - ULRICH, 1993: 451

57 NUNES SARNO, 2003. - O bacilo da lepra está no fim de seu processo evolutivo, 1/3 do seu genoma não

funciona. O sucesso do atual tratamento à doença se deve ao fato de que o bacilo não cria resistência à poliquimioterapia (embora com o tratamento anterior, com sulfona, tenha havido problemas deste gênero).

vida e higiene nesta época58. Apesar do declínio constante da doença no continente europeu, o

imaginário negativo da lepra sobreviveu muitos séculos depois na mentalidade do Velho e do Novo Mundo. Exemplo disso são as descrições da doença nos dicionários portugueses dos séculos XVIII e XIX.

"Lepra : Mal contagioso, & afecto venenoso, originao de uma depravada sanguificação, que corrompe o estado natural do corpo. Avicenna lhe chama Doença Universal, & cancro universal. (…) Constantino Magno, depois da vitória que teve de Maxencio, dispondo-se para ter outra de Maximino, que perseguia aos Cristãos, foi ferido deste mal, os Médicos Gregos lhe deram por remédio que tomasse banhos de sangue de meninos, à imitação dos Reis do Egito que (segundo Plinio, livro 26.cap.1.) recorrem a este bárbaro lavatório; mas o piedoso Imperador, tendo horror dele, buscou ao Papa Sylvestre, conforme a ordem, que em uma visão noturna lhe deram os Apóstolos S. Pedro, & S. Paulo, & depois de receber com seu filho Cristo o Sacramento do Batismo, milagrosamente sarou. Nicephor. Liv. 7. Cap.33. Cedreu"59

.

"Lepra : (do lat.; e do gr. Lepra, de lepros, aspero) Espécie de sarna, que cobre a pelle com costras mui feias, brancas, e pretas, a qual vai comendo a carne, com estranha comichão. Fig. Cousa mui nociva : ´a lepra das sedas´ (como luxo máo) Lc.5.3. ´limpas as almas da lepra do peccado´ Vieir.16.120. ´a do peccado original´ Mart.Cat. Leproso, osa : adj. (do lat. leprosus,a,um) Doente de lepra, gafo. Brit.C.f.414.Luc.fig. Viciado : ´alma leprosa´ com peccado"60.

As representações medievais da lepra, baseadas tanto nos discursos do pecado e da impureza, quanto no combate e invisibilização do doente, marcaram as mentalidades dos povos americanos recém-descobertos.

A lepra no Brasil colonial

Tratamos da construção do imaginário da lepra na Idade Média porque foi no fim deste período que os portugueses chegaram à América, levando consigo não só a doença, como parte relevante de sua representação coletiva61. A lepra foi introduzida aos poucos no território colonial

brasileiro, através dos seguintes contatos : dos colonizadores portugueses, do tráfico de escravos africanos e pelas "fronteiras" da época com as colônias espanholas62. A infecção teria

acompanhado os passos da colonização63, o que se explica pela teoria do Virgin Soil64. A América

colonial, de modo geral, sofreu as conseqüências dos descobrimentos através das doenças, pois a

58 Antes da revolução farmacológica várias doenças cederam ao desenvolvimento urbano, à nutrição superior e à

organização da saúde das populações. - PORTER, 1997

59 BLUTEAU, 1712-1718