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EXPERIÊNCIA DA DOENÇA, GÊNERO MASCULINO E REDE SOCIAL FAMILIAR

44 GOMES, 2003 45 CONNEL,

A saúde dos homens

A vivência prática de certos valores apreendidos na socialização resultará em uma vulnerabilidade específica do gênero masculino. Os problemas de saúde evidenciarão, em parte, esta vulnerabilidade. No que se refere à questão específica do masculino no âmbito geral da saúde, vemos que o interesse das ciências sociais cresceu nos últimos anos46.

O homem, há muitos anos e em muitos países, tem uma vulnerabilidade maior que as mulheres relativamente a vários tipos de acidentes, ao alcoolismo, à violência urbana e aos problemas naturais de saúde. São eles os que menos freqüentam consultórios médicos47, não

porque tenham uma saúde melhor, mas por terem a responsabilidade ainda majoritária de prover bens à família (discutiremos mais à frente sobre esta hipótese). A mortalidade masculina é maior do que a de mulheres em muitos países, tanto na infância quanto na vida adulta. No Rio de Janeiro, a diferença de esperança de vida entre homens e mulheres era de 12 anos em 200448. As

mulheres brasileiras em geral têm expectativa de vida de 75 anos, e os homens, de 68 anos. As mulheres de todo o mundo vivem, em média, quatro anos a mais que os homens, sendo a expectativa de vida delas de 68 e a deles de 64 anos49. A mortalidade masculina tem um caráter

biológico (diferença de sexo), se pensamos que são os homens que morrem mais, desde novos, em qualquer idade. Porém, uma larga gama de processos sociais podem criar, manter ou exacerbar diferenças biológicas. Logo, é preciso integrar estudos sociológicos e biológicos, ao invés de assumir que as doenças são processos neutros em relação às circunstâncias sociais50. A

mortalidade masculina é maior não só em números absolutos, como também relativamente a quase todas as causas (com exceção das doenças exclusivas das mulheres). Muitas dessas causas são doenças não transmissíveis (circulatórias, câncer de pulmão e cirrose hepática) ou causas externas (violência e acidentes de trânsito). Outras causas com acentuada mortalidade masculina são os transtornos mentais e comportamentais, que englobam aqueles devido ao alcoolismo e uso de drogas51. Em 2006, no Brasil, de 1.020.211 de óbitos registrados, 907.109 eram naturais,

enquanto 103.062 eram mortes violentas. No que diz respeito às mortes naturais, homens (497.402) e mulheres (409.589) não demonstraram vulnerabilidades tão distintas. No entanto, no que diz respeito às mortes violentas, essa diferença é significativa, sendo 86.360 para homens e

46 BIRD & RIEKER, 1999

47 VIANA, A., "Na hora de ir ao médico ou de tomar remédio, os homens relutam mais que as mulheres", Veja On-

line, set./1999

48 LAURENTI; JORGE & GOTLIEB, 2005

49 Relatório de Estatística Sanitária Mundial 2007, divulgado pela OMS - http://noticias.uol.com.br 50 BIRD & RIEKER, 1999

16.678 para mulheres52. "O aspecto comportamental influi significantemente na saúde humana,

sendo que a expressão estilo de vida vem sendo cada vez mais utilizada, e o estilo do homem, sob várias óticas, se diferencia daquele da mulher"53.

As oportunidades e escolhas de homens e mulheres não são tão livres de coerção social quanto se pode pensar a princípio. Essas condições de vida distintas expõem a riscos específicos de saúde e, além disso, tais diferenças são cumulativas ao longo de uma biografia. Os homens têm vantagens e desvantagens relacionadas justamente à sua posição social e recursos. Eles se envolvem em mais situações de risco como trabalhos perigosos, migração (ocorre aí, muitas vezes, a perda do apoio da rede social) e guerras; além disso, se envolvem com mais facilidade em estilos de vida não saudáveis como o uso do álcool e tabaco54. O papel social masculino como

breadwinner ("ganha-pão") leva a maior stress social em épocas de desemprego e dificuldades econômicas55. Há muitas vezes, entre os homens, noções de invulnerabilidade, a busca de risco

como um valor cultural e a crença na sexualidade instintiva (incontrolável). Assim, pode ficar a impressão de que nada adianta tentar socializá-los em condutas preventivas através dos serviços de saúde56.

As diferenças de morbidade entre gêneros é ainda mais evidente quando pensamos que em uma mesma classe social, em um mesmo ambiente e condições sanitárias, a saúde não é a mesma entre homens e mulheres. Simultâneo a tudo isso está o fato de que os homens, nas sociedades ocidentais, tendem a tolerar e ter tolerados seus estilos de vida arriscados. A contradição, entre os dados epidemiológicos que falam em uma vulnerabilidade masculina e o senso comum que vê o homem como sexo forte, revela na verdade idéias complementares. Os homens, por se sentirem invulneráveis ou desejarem mostrar-se como tal, se expõem mais, tornando-se vulneráveis57.

Gênero masculino e cuidados com o corpo

O paciente de hanseníase, como os outros homens, sofrerá as dificuldades relacionadas ao seu papel de gênero, do desenvolvimento da doença à procura por ajuda médica. Descreveremos

52 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) - http://www.ibge.gov.br/home/ 53 Grifo dos autores - LAURENTI; JORGE & GOTLIEB, 2005: 44

"(...) men´s higher rates of risk-taking behavior continue to put them at greater risk of injury. Men are also more likely than are women to be violent both with women and with other men." – BIRD & RIEKER, 1999: 750

54 SUNDIN & WILLNER, 2007 55 SUNDIN, 2004

56 KEIJZER, 2001

as relações dos homens em geral com os serviços de saúde no Brasil para falarmos do homem hanseniano.

Confirmando outros estudos que apontaram uma menor freqüência dos homens nos serviços básicos de saúde, a pesquisa de Araújo, Nascimento e Gomes58, publicada em 2007, ligou

este fato ao modelo hegemônico de masculinidade. A atividade laboral é uma das principais preocupações dos homens e uma das mais fortes explicações para a baixa procura de serviços básicos de saúde. A falta de tempo para enfrentar filas e fazer várias visitas ao médico vem se unir ao receio de que a descoberta de uma doença signifique a perda do emprego, causando problemas econômicos à família. Gomes59 veio somar a estes dados o fato de que os homens em

geral não se sentem à vontade para expor o corpo aos médicos, especialmente se essa exposição envolve os órgãos sexuais. Além disso, associam muitas vezes o cuidado ao âmbito feminino, sendo a verbalização sobre a doença e a procura do serviço de saúde vividas como uma demonstração de fraqueza, medo e insegurança. Um fator importante no cuidado masculino é o horário de funcionamento dos centros e postos de saúde, em geral abertos quando tanto homens quanto mulheres trabalham60. Outra importante variável a considerar é a reclamação de alguns

pacientes sobre a ausência de unidades básicas de saúde voltadas a eles, não se reconhecendo alvo dos programas de ações preventivas. Por essa razão, há pesquisadores que sugerem que os programas de saúde se voltem aos dois gêneros, deixando de focar apenas nas abordagens feministas, para chegar à uma satisfação das necessidades humanas. As necessidades dos pacientes, hansenianos ou não, devem ser sentidas na prática, na interação dos profissionais de saúde com os mesmos61.

Devido a todos os fatores que vimos, os homens brasileiros de modo geral costumam procurar ajuda médica em casos extremos de dor ou se auto-medicam, sendo mais freqüente a presença masculina nas farmácias e pronto-socorro. Os hospitais são um último recurso em caso extremo de desenvolvimento da doença ou simplesmente são bem vistos pelos homens porque o atendimento é mais rápido, sendo mais fácil expor suas dificuldades.

Evidentemente a preocupação com o corpo não se resume à procura de serviços médicos62. As necessidades de cuidado corporal, materiais como intelectuais (conhecimento e

conselhos), são culturalmente construídas. Nas sociedades ocidentais medicalizadas, o cuidado com o corpo doente está estreitamente ligado à procura do médico, como se esta procura fosse

58 Idem

59 GOMES, 2003

60 PINHEIRO et al., 2002 61 FIGUEIREDO, 2005

um sinal do cuidado de si. Quando percebemos, por parte dos homens em geral, uma ausência de preocupação com sinais menores da doença ou a falta de tempo para cuidar do próprio corpo, podemos pensar como as condições de vida do gênero masculino influenciam na experiência da doença. As atitudes e mentalidade dos homens relativamente aos cuidados com o corpo doente encontram muitas semelhanças qualquer que seja o grau de escolaridade dos mesmos63. Porém, se

o trabalho, por exemplo, é um valor para o gênero masculino em geral, podemos pensar em um peso maior do mesmo entre as classes desprivilegiadas. Os membros da classe popular "muitas vezes esperam, antes de consultar o médico, que a sensação de doença tenha atingido uma intensidade tal que os impeça de fazer uso normal do corpo, como se esperassem sempre que aquilo ´passasse sozinho´ "64. Indivíduos em situações sócio-econômicas desprivilegiadas podem

enumerar coerções cotidianas e pressões da necessidade para justificar suas condutas médicas. Entre essas coerções está o trabalho físico que exige sua atividade laboral. Para as classes populares, segundo Detrez65, o corpo é visto antes de tudo como um instrumento de trabalho,

logo, a doença é mais evidente quando perturba o funcionamento normal do trabalhador. Podemos refletir sobre o peso que tem a vida imediata para aqueles que dependem do corpo para trabalhar e que não têm tantos recursos a recorrer em caso de doença66. Assim, defende-se aqui

que não se trata de ter menos atenção aos sintomas da doença devido à classe social a que se pertence, como se fosse uma questão de cultura de classe. Trata-se antes de estar em uma posição social desfavorável para buscar ajuda médica nos horários de atendimento do posto, arcar com a ausência no trabalho, comprar medicamentos, etc.

O cuidado com o corpo parece ter estreita relação com o comportamento de gênero, unindo os valores masculinos de demonstração de força e não verbalização dos problemas de saúde, com seu papel social como provedor da família. Entre os pacientes de hanseníase, estes valores estarão também presentes. Araújo e Oliveira67 pretenderam identificar os principais

motivos da irregularidade dos homens portadores de hanseníase em um determinado posto de saúde. Os pacientes do posto tinham entre 20 e 49 anos, 70% deles casados. Por vezes os pacientes questionavam a cura, reclamavam dos efeitos colaterais e longo período de tratamento, ou relatavam prejuízos financeiros em decorrência da ausência de um dia de serviço (para tomar a dose mensal supervisionada no posto).

63 Idem

64 BOLTANSKI, 2004: 141