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Fonte: Partitura – Primeira parte de Asa Branca em ritmo de baião. Asa Branca, Luiz Gonzaga, 1920. Disponível em: https://www.youtube.com/watcg?v=aC4wa-LK-Q. Acesso em: 12 nov. 2018

Nesse contexto, a cultura musical do Sertão, produzida sob essas influências, transformou-se naquilo que viria ser sua característica: a relação entre o homem e sua terra, aliada aos cantos e rituais africanos, dando originalidade à região. Sobre a influência ibérica moura, essa teve forte influência na música cantada no interior dos sertões nordestinos, sobretudo, as da região do Alentejo português, observada nos cantos dos camponeses32. As

que chegaram ao Sertão também se aproximam das melopeias mouras da África setentrional com uma impressão indefinível de sons que se misturam com palavras faladas (CASCUDO, 2001).

A esse respeito, Cascudo (2001, p. 35) relata o som como sendo “uma voz aguda, seca e vertical, com guincho nos agudos e o ronco nos baixos, emitidos na imperturbável

32 Durante o período de doutoramento sanduíche na Universidade de Évora (2018-2019), localizada na região do Alentejo, tivemos a oportunidade de ouvir os tradicionais corais masculinos de canto alentejano. Ao ouvirmos, identificamos as semelhanças com o canto sertanejo. Ambos consistem em uma entonação lastimosa, 7ª

abaixada, modulação lenta e finais com rallentandos intermináveis, comparado com os relatos de Câmara

nasalação comum”. Trata-se de uma disposição do desenho musical que sugere arabescos em um sucessivo encadeamento surpreendente, nostálgico como a paisagem austera e desolada do deserto, numa aproximação com a região. Essa característica era indispensável no velho canto sertanejo, considerando a entonação intencionalmente lastimosa, a modulação lenta, que fazia suspeitar um quarto de tom, com finais rallentandos intermináveis, sob um timbre nasal, infalível, natural, perfeitamente compreensível, como comenta o autor:

Todo cantador era fanhoso. Recordo meu primo Políbio Fernandes Pimenta, excelente cantor sertanejo, vindo para Natal prestar serviço militar, nosso hóspede: exigiu meses para adaptar-se ao diapasão normal. Era um oriental, afeito às neumas, livres de compasso maquinais, com o ad libitum de elevar a voz quando o motivo o empolgava ou recorrer a um surdo declamado, querendo salientar a emoção enamorada (CASCUDO, 2001, p. 35).

Não é possível conhecer-se o verdadeiro canto sertanejo pela simples leitura da solfa, que “moura” seria apenas a maneira de cantar. Um aspecto a ser mencionado é a ausência dos contracantos, comuns na música de tradição oral, como nos romances medievais ibéricos encontrados nos cantos das rendeiras de Alcaçus, no litoral do estado do Rio Grande do Norte (MEDEIROS, 2014). O tradicional canto nessa região dá-se em uníssono e o contracanto aparece como um leve fortuito, uma resposta dada pelo instrumento musical nas serenatas de festinhas familiares, os instrumentos a imitar a voz.

Dessa forma, a música sertaneja foi considerada um canto com resposta de instrumento, tomando outros gêneros no momento em que a região era habitada por diferentes povos. Assim, foi-se tecendo uma diferenciada música, a partir de festas e danças que representavam o cotidiano, que, mantida pela tradição oral, teve forte característica dos ritmos do baião e das emboladas também conhecidas como “repentes”, e temas melódicos de cantigas, toadas e romances, com características ibéricas mais definidas (GURGEL, 1996). “Em Alcaçus foram encontrados os romances medievais ibéricos em canções versificadas e poemas musicados, neles são descritas ocasiões palacianas, histórias galantes de amores e intrigas da nobreza, permeadas de aventuras de cavalaria e tragédias” (GURGEL, 1996, p. 11).

Segundo Gurgel (1996), esses romances estão em forma de canções de trabalho entoado por mulheres rendeiras locais, que caíram nas raízes do gosto popular. No relato das rendeiras, os cantos são transmitidos de mãe para filha pela tradição oral, sem qualquer registro de notação musical, mas guardado em sua memória individual e depois na memória coletiva durante seu ofício de “rendar na almofada”.

Os romances cantados e relembrados pelas rendeiras durante sua arte são elementos vivos das canções romanceadas e da tradição de literatura oral, como parte de suas lembranças de caráter afetivo, de contos da infância, sendo mantidos vivos na coletividade. “É na memória coletiva que esses romances são trazidos e alimentados pela memória individual de cada rendeira, contribuindo para manter presentes e vivos a cultura popular, com traços da canção medieval ibérica” (MEDEIROS, 2014, p. 97). Foram esses gêneros que se tornaram motivos e inspiração na (re)descoberta da cultura sertaneja (MARIZ, 1977; NÓBREGA, 1971). A cultura musical do Sertão compete com as das sub-regiões do Nordeste, como os carnavais e o maracatu rural da Zona da Mata; as festas de São João do Agreste; e, as cantigas de jangadeiro, do Litoral Semiárido. Entre todos esses ritmos, o forró, derivado do baião, posiciona-se como o mais característico (ALBIN, 2003).

3.2 O BAIÃO E OUTROS GÊNEROS MUSICAIS PRESENTES NAS PEÇAS (ALLEGRETO)

Como o baião é um dos ritmos mais característicos do Sertão, exploraremos um pouco mais esse gênero musical como também outros que estão presentes em partes das Bachianas Brasileiras. O nome baião surgiu aproximadamente nos anos de 1920, em festas e reuniões de violeiros, sendo amplamente difundido a partir da década de 1940 por Luiz Gonzaga, que trabalhou em parceria com o letrista Humberto Teixeira, advogado e músico amador. A música Asa Branca de sua autoria (Partitura 3), em ritmo de baião, tornou-se um hino do Nordeste ao expor o cotidiano e o sofrimento dos sertanejos e as dificuldades da vida em função da seca (MORAES, 2009).

Quando olhei a terra ardendo, qual fogueira de São João Eu perguntei a meu Deus do céu, ai!

Por que tamanha judiação

Que braseiro, que fornalha, nem um pé de plantação Eu lhe asseguro, não chore não, viu,

Q’eu voltarei, viu, pr’o meu Sertão33.

Do baião, com origem no lundu, derivou-se o forró, ganhando popularidade em todo o Brasil por seu apelo menos dramático e mais festivo no período das festas juninas. Para

33 Asa Branca (Luiz Gonzaga). Disponível em:

https://www.google.com.br/url?sa=i&rct=j&q=&esrc=s&source=images&cd=&ved=2ahUKEwiKj_C17rThAh WtyoUKHdoYB4kQjRx6BAgBEAU&url=https%3A%2F%2Fflashmusicpartituras.loja2.com.br%2F1584572- Asa-branca&psig=AOvVaw0nKVkV0mYdGcexhfw9Hgna&ust=1554413141251525. Acesso em: 12 abr. 2018.

Cascudo (1978), a palavra forró é derivada de “forrobodó”, que foi usado na corte portuguesa para definir uma festa desorganizada, bagunçada e aborrecida. No entanto, na tradição popular, é muito comum descrever o forrobodó como um evento divertido, mas quase depravado. Outra explicação para a palavra forró é que ela é derivada da expressão inglesa for all, uma vez que, no início dos anos 1939, era o termo dado às festas promovidas por soldados norte-americanos que estavam na Base Naval em Natal, Rio Grande do Norte, durante a Segunda Guerra.

Com o forró, outros gêneros são cultivados na música do Sertão, associados às festas, à dança e também à poesia popular, de grande habilidade na rima e na arte de improvisar versos. Além do baião, outros gêneros são marcantes na descrição da paisagem e da fauna, presente nas músicas Luar do Sertão (Figura 10), em marcha rancheira e toada.

Figura 11 – Fragmento de “Luar do Sertão”

Fonte: Festas Juninas34

Não há, ó gente, ó não luar como esse do Sertão Não há, ó gente, ó não luar como esse do Sertão Oh! que saudade do luar da minha terra

Lá na serra branquejando folhas secas pelo chão Este luar cá da cidade tão escuro

Não tem aquela saudade do luar lá do Sertão35

Dos gêneros musicais ligados à religiosidade estão as “Incelenças”, que são cantigas de “guarda”, benditos (Figura 11) ou cantigas de defuntos, numa expressão musical típica do Sertão do Ceará e do Rio Grande do Norte. Esses cantos confundem-se com orações, em tristes canções repetitivas “tiradas”, na tonalidade mais conveniente, por mulheres com vozes agudas e nasaladas, que acompanham o cortejo fúnebre em canto (CASCUDO, 2001, p. 26).

34Catulo da Paixão Cearense e João Pernambuco (Luar do Sertão). Disponível em: https://www.google.com.br/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fpt.scribd.com%2Fdoc%2F306580015%2FLuar-Do Sertao&psig=AOvVaw2wNRCVXBil3lGRURnAFpLj&ust=1588701654499000&source=images&cd=vfe&ved =0CAIQjRxqFwoTCJDLg4flmukCFQAAAAAdAAAAABAQ

35 Fragmento de Luar do Sertão. Em marcha rancheira. Disponível em: https://youtu.be/KzR9R5-6fBk. Acesso em: 10 nov. 2018.

Figura 12 – Fragmento do canto “Bendito”

Fonte: Cantos sertanejos. Disponível em:

https://www.google.com.br/url?sa=i&url=http%3A%2F%2Fwww.cchla.ufpb.br%2Fppgl%2Fwp-

content%2Fuploads%2F2012%2F11%2Fimages_MariaLaura.pdf&psig=AOvVaw3VKa77oYTAHXoEIPrnwN9 h&ust=1588705701695000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCLjfpJr0mukCFQAAAAAdAAA AABAD. Acesso em: 6 maio 2019.

O termo “Incelença” remete à ampla coletânea de pequenos cânticos executados especialmente em virtude de falecimentos, também executados em substituição da Extrema Unção na ausência do sacerdote. De acordo com a origem popular para as Incelenças, acredita-se que esses cânticos têm a propriedade de despertar nos agonizantes o remorso sobre os pecados, incitando-os ao arrependimento, sendo, por isso, muito respeitado. Doutra forma, são executados para amenizar as duras estiagens que castigam a região do semiárido (CASCUDO, 2001).

Na temática do trabalho está o aboio (Figura 12), um canto típico do Nordeste, mas também comum no interior dos estados de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, que se dá na forma de um canto sem palavras, dolente e compassado que se assemelha a um lamento do boiadeiro que tange, ordena e acalma o gado, com a mesma forma sonora e vocálica entoada pelos mouros em suas orações (CASCUDO, 2001). Segundo o autor, “misteriosamente (porque não vive noutras regiões da pastorícia brasileira) reside no Nordeste o aboio, documento impressionante do canto oriental, marcado por vogais, ondulante, intérmino de grafação em pentagrama, mas reduzível às notas melismáticas” (CASCUDO, 2001, p. 25). Esse canto ainda resiste na forma e no estilo, “longo assombroso testemunho da legítima melodia em neumas, recordando a prece da tarde, caindo do alto dos minaretes” (CASCUDO, 2001, p. 26).

Figura 13 – Fragmento do canto em aboio

Fonte: Cantos Sertanejos. Disponível em:

https://www.google.com.br/url?sa=i&url=http%3A%2F%2Fwww.cchla.ufpb.br%2Fppgl%2Fwp-

content%2Fuploads%2F2012%2F11%2Fimages_MariaLaura.pdf&psig=AOvVaw3VKa77oYTAHXoEIPrnwN9 h&ust=1588705701695000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCLjfpJr0mukCFQAAAAAdAAA AABAD. Acesso em: 6 maio 2019.

Tal como o baião, o xote e o xaxado, os ritmos de coco e embolada, são também chamados de coco de improviso ou coco de repente, que no Sertão tomam amplitude com a arte do improviso e a execução consiste em uma dupla de cantadores que, ao som enérgico e batucante do pandeiro, montam versos rápidos e improvisados com métrica precisa, em que os parceiros estabelecem um desafio para quem der a resposta mais precisa e ritmada, por isso também ser chamado de Desafio de cantadores com pandeiro ou viola36.

A música Vida de Viajante, de Luiz Gonzaga (Partitura 4), é iniciada com um apelo de aboio, seguindo em ritmo de baião. Na música sertaneja, é comum a presença de dois ou mais ritmos próximos, como xote e baião; toada e marcha rancheira, aboio e baião, coco e embolada, não interferindo na música como um todo. Nesse caso, encontram-se os ritmos de baião e xote.

36 ENCICLOPÉDIA da música brasileira: popular, erudita e folclórica. 2. ed. São Paulo: Art Editora Publifolha, 1998. p. 846.