• Nenhum resultado encontrado

Partitura 5 – Vem Morena (em ritmo de Coco/ Embolada) – Luiz Gonzaga e Zé Dantas

2.1 O SERTÃO IMAGINADO

Além dos aspectos físicos e sociais, as artes, em geral – como a literatura, a pintura e o cinema do início a meados do século XX –, contribuíram para a construção de um Sertão imaginado. Vimos isso principalmente em algumas obras como Grande Sertão: Veredas (1986), de Guimarães Rosa; na série pictórica Os Retirantes11, de Cândido Portinari; e no

filme Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha. Em todas essas obras, é possível identificar, em suas diferentes narrativas, como ampliam o olhar para a região a partir de uma visão exógena, em sua maioria, e de conceitos previamente estabelecidos, contribuindo para as definições de um “lugar irremediável”.

11 Os Retirantes é uma pintura de Candido Portinari, pintada na cidade de Petrópolis no ano de 1944, período do expressionismo, sob a técnica de óleo sobre tela. A obra faz parte do acervo do Museu de Arte de São Paulo.

São as condições físicas e sociais que despertaram o interesse e a curiosidade pelo Sertão, como área potencialmente explorável. Por estar localizado por trás das terras altas, em boa parte do planalto da Borborema, o Sertão é considerado o Nordeste “profundo” (ORTIZ, 2006; HOLANDA, 1982), no entanto, não estático em sua condição, mas dinâmico e profuso.

Em Grande Sertão Veredas, Guimarães Rosa, como um dos intérpretes do Brasil no século XX, faz um retrato realista da vida social e política do país na Velha República. Apesar de a obra ser escrita em um período em que o rádio e o cinema contribuíram para a afirmação de uma nova identidade nacional, ela também reflete o desenvolvimento getulista e as transformações econômicas e institucionais que ocorreram (ROCARI, 2002).

O olhar de Guimarães Rosa para o Sertão confere seu caráter universal dado à realidade brasileira, que se funde entre o contexto no qual as esferas políticas e privadas formam ordens distintas de fatos, que, em sua obra, recebem tratamentos diferenciados. É visto como o Brasil profundo e real, retratado pelo romancista e cujos ecos persistem na realidade contemporânea. O Sertão mapeado pelo autor tem o propósito de apresentar um vasto lugar de ficção, que, incorporado à sua escrita, foi transmitido oralmente. Sua descrição toma parte dos sertões que abrangem desde o estado de Minas Gerais até o Nordeste. Esse se constitui um dos registros passados pela voz e pela experiência de viajantes estrangeiros, principalmente europeus, durante o século XIX, os quais além de documentarem a flora e a fauna, construíam histórias e estórias sobre a paisagem da região.

Ainda tomando como exemplo a construção do seu imaginário, Guimarães Rosa retrata o Sertão do ponto de vista do homem daquele lugar, e não do interlocutor, nem do estrangeiro. Apesar de ser esse um retrato alegórico do país, teve sua importância em apresentar uma região ao visitante que veio de fora para conhecê-lo, baseado no esforço de rememoração e na história oral. Ele adverte: “Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arroio de autoridade” (ROSA, 1986, p. 7).

Na contribuição desse Sertão imaginado, não irreal, outros temas permeiam essa construção. Em O Quinze, Raquel de Queiroz (1930) expõe os dramas e desafios de sobreviver em meio à paisagem da seca; em São Bernardo, Graciliano Ramos (1936) relata os tempos vividos de coronelismo, entre proprietários e trabalhadores na luta pela sobrevivência. O autor apresenta a região em momento da falta de oportunidade decorrente da seca, que resultou no êxodo rural e, consequentemente, no inchaço das grandes cidades. Explorado em riqueza de detalhes, o romance Vidas Secas (RAMOS, 1938) traz o tema do cangaço,

abordando os bandos armados rebelados contra um sistema precário de ascensão social no Nordeste.

Face ao exposto, a literatura não poupou detalhes e criatividade em apresentar uma emergência social. Dessa forma, o Sertão foi ainda ricamente imaginado como uma “vasta região ensolarada, cheia de vida, de calor humano e de musicalidade” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p. 13). Trata-se de um espaço sociopolítico diferenciado e contrastante, carente e pesado, mas vivo e em mudança nem sempre observável.

A referência à região, seja na literatura, seja na descrição naturalista, como interesse nacional de um momento histórico, o enquadramento dado o localiza como um lugar nem sempre vantajoso. Inclusive, durante a história política, desenham-se sofisticados enunciados discursivos estrategicamente construídos e agenciados (PRADO, 1928; HOLANDA, 1982), nos quais são conferidos um imaginário, como um campo fixo e irrecuperável da natureza; bem como aspectos físicos, além de ser atribuídos inúmeros mecanismos culturais.

Parafraseando Euclides da Cunha (1987, p. 83), “apesar das agruras do tempo, da terra e do homem”, o Nordeste e, em particular o Sertão, tem resistido também por sua arte como representação simbólica e forma singular de ver o mundo. Sendo esse, provavelmente, um dos motivos ou interesses de se visualizar a região. Apesar de ser essa uma ênfase subjetiva, traz consigo indicações que apontam para um regionalismo socialmente visível, trata-se de um dis-cursus de tramas e redes de imagens e falas tecidas nas relações sociais, criando-lhe uma forma de representação difundida e aceita, seja cientificamente, seja na literatura e na arte, que chega até o século XXI, com ações e práticas inseparáveis, inscritas e divulgadas que pressupõem sua legitimação.

O que se vê ser construído é que esse dis-cursus regionalista não é emitido pela objetividade da região, mas a partir da leitura que se tem dela, que a demarcou como espaço fadado a ser como é. A problemática da identidade regional presente nesse contexto como construção mental se estabelece sob conceitos sintéticos e abstratos que procuram generalizar uma enorme variedade cultural e artística. É a construção desse Sertão imaginado que subjetiva a região por meio da educação, dos contatos sociais, dos hábitos, da arte, da música, que contribuem a pensar o real como totalização abstrata. É com base nesses diversos discursos desse Sertão imaginado que se tem a ideia individualizada da região, sempre vista de fora dela.

Vimos que o discurso regionalista assegurou, desde meados do século XIX, um apego a questões locais com separatismos claros num Brasil dividido entre o Norte e o Sul. A ideia de região não nasce apenas na mudança de sensibilidade em relação ao espaço mas

também na disposição de saberes sobre o lugar, de um novo olhar para o objeto, aberto a outros que igualmente surjam. É nessa disposição de saberes que estão nas Bachianas Brasileiras, como forma alternativo-discursiva de propor um novo/outro olhar para a região. Na obra, essa ação apresenta-se por uma disposição de temas, em que esses, necessariamente, não estão aprisionados ao que estava anteriormente estabelecido.

Apesar de considerar as obras literárias e artísticas em geral, entre outras que tomam o tema, vimos como a Série Bachianas Brasileiras vem contribuir ou apresentar outro Sertão imaginado. É nesse contexto, histórico, político e cultural que o compositor Heitor Villa- Lobos, como “alguém de fora” desse processo, deparou-se com a música de cantadores cearenses que o inspiraram à reflexão sobre aquele lugar.

Muito mais que uma definição de regionalidade, uma diferente “brasilidade” o atraía, desde o acorde maior – que não precisava ser perfeito, mas um pouco frouxo na sua afinação para poder soar “local” – até a paisagem dramática e diversa. O resultado desse olhar é o que trouxe para sua música, como ele mesmo explica: “não escrevo para parecer moderno, de maneira nenhuma. O que escrevo é a consequência cósmica dos estudos que fiz, da síntese a que cheguei para espelhar uma natureza como a do Brasil” (MAIA, 2000, p. 15).

Ao trazermos o tema do Sertão nas Bachianas Brasileiras de Heitor Villa-Lobos, como obra musical de diversificada brasilidade, “temperada” de nacionalismo e neoclassicismo, identificamos que seu solo epistemológico se abre a novos conceitos de formação discursiva nacional-popular. Dessa identificação, reforçamos a importância em como construir uma retórica musical sobre o Sertão sem necessariamente estigmatizá-lo sob um antigo regionalismo, mas como música brasileira.

Com base nesse perfil, não descartamos um antigo regionalismo inscrito no interior da formação discursiva, entretanto, ele não permanece fechado em relação às descrições da natureza, das variações do clima e da vegetação como fonte para explicar suas diferenças. Para as Bachianas Sertanejas, buscamos apontar possíveis aspectos além dos que já se determinam, e que se sustentam politicamente.

Considerando os aspectos anteriores, como o regionalismo, um dado construído e também abstrato, tratar as Bachianas Sertanejas como um reflexo desse regionalismo significa percebê-las como “objeto” musical que é entendido cognitivamente, ao trazer luz a aspectos da região, do compositor, do contexto, por meio do seu status de arte. Isso não significa apresentar a sua “verdade”, mas sua interpretação, que não precisa ser exatamente regionalista, mas, sobretudo, artística e livre de estereótipos.

Nesse processo, o que se almeja, e que provavelmente aparece na obra, são traços de uma região, não mais entre recortes naturalistas, mas com fisionomia aberta a interpretações, com ritmo e harmonia próprios. O Sertão proposto, ou imaginado nesta pesquisa, aparece em sua expressão cultural, não como um reflexo do meio, das raças ali representadas, ou das relações sociais, mas uma região como um ente cultural, uma personalidade, um ethos (FREYRE,1985). É a partir desse outro (ou novo) olhar que a investigação se debruça em acurada audição e observação de peças das Bachianas Brasileiras.