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Com o intuito de analisar o discurso39

dos jornais Público e Expresso sobre o Brasil e os brasileiros, comparativamente, entre os anos de 2000 a 2005 e de 2010 a 2015, tomamos nota de todos os textos, independentemente de serem editoriais, artigos de opinião, reportagens, notas e afins (apenas as cartas dos leitores ficaram de fora), em que aquele país e o seu povo aparecem em posição de destaque. O interesse em analisar estes dois periódicos deve-se ao facto de se apresentarem como veículos de referência em Portugal, com caráter generalista e circulação por todo o território nacional40. A sua

escolha também se deveu ao facto de serem veículos de grande circulação – tanto em formato físico de papel, quanto digital – no país41

.

O objetivo da recolha de imprensa foi tanto obter um panorama sobre a presença brasileira nos jornais e compará-la nos dois períodos, quanto, a partir deste primeiro filtro, selecionar alguns textos para serem objeto de uma análise crítica do discurso. Assinalamos que a despeito do interesse inicial em quantificar a incidência de notícias sobre o Brasil e os brasileiros, o objetivo maior sempre foi a análise mais aprofundada de alguns textos, tanto que, por ter sido uma ação executada individual e manualmente (durante alguns meses debruçámo-nos sobre os exemplares, em versão física, na Biblioteca Nacional de Portugal), percebemos que a documentação coligida não poderia ser caracterizada em termos exatos, pois, provavelmente, alguns textos podiam ter-nos escapado. A ideia, portanto, foi obter uma visão geral sobre a presença brasileira nos jornais, mas sem atentar a números como primeiro critério.

A seleção de textos para uma análise crítica do discurso incidiu em momentos específicos, e significativos, da relação entre Portugal e Brasil ou do fluxo migratório entre ambos os países; além de – aqui o mais importante – se tratar de textos que evidenciam mais exemplarmente, por assim dizer, os enquadramentos adotados pelos

39 Compreendemos este no sentido mais geral de “evento comunicativo” que, como indica van Dijk (2005),

também engloba conversações, gestos associados, expressão facial, arranjo tipográfico, imagens e afins.

40 O Expresso tem periodicidade semanal e o Público apresenta uma parte do seu jornal voltada para a

cobertura regional. No âmbito desta investigação, debruçámo-nos sobre a edição vendida em Lisboa.

41 Segundo dados compilados sobre circulação impressa e digital pela Autoridade Portuguesa de Controlo

de Tiragem – APCT e referentes ao ano de 2017, o Expresso é o jornal de maior circulação em Portugal, com o Público em terceiro lugar, todavia, o diário é o segundo em circulação digital. Informação disponível em: http://www.meiosepublicidade.pt/2018/02/apct-diarios-generalistas-venderam-menos-15-831- exemplaresdia-2017-encerram-ano-quebra-9/

jornais para expor esses referidos momentos. Assim, a partir do interesse inicial em empreender uma análise crítica do discurso, progressivamente a investigação foi-se aproximando de uma framing analysis. Estes dois instrumentos teóricos conjugados – e a partir dos contributos de autores como van Dijk (2002a, 2002b, 2005, 2008), Norman Fairclough (2001), Peter Teo (2000), Robert M. Entman (1993) e Zhongdang Pan & Gerald M. Kosicki (1993) – foram utilizados para analisar o conjunto de textos e, assim, consolidar a nossa reflexão sobre o contexto sociocultural relacionado com a presença brasileira em Portugal.

Diante do vasto material que tínhamos em mãos e após passado pelo primeiro filtro, retendo os textos que se destinariam a análise mais aprofundada, julgámos importante separá-los tematicamente. Em ambos os períodos, três grandes tópicos relacionados com o Brasil e os brasileiros destacaram-se nos dois jornais: a emigração portuguesa para o Brasil, a imigração brasileira em Portugal e a mulher brasileira em Portugal. Eles definem as partes que compõem este capítulo, embora esses tópicos não abranjam a totalidade da cobertura dos jornais sobre o país e a sua população.

Como observámos durante a sua consulta, há também uma farta cobertura das atividades da IURD em Portugal, em que é notório um discurso crítico e de suspeição sobre os seus membros e as ações realizadas42

. Segundo Igor Machado (2003), a instalação desta Igreja no país, em finais da década de 1980, correspondeu à afirmação de um novo imaginário relacionado com o Brasil: como país produtor de religiões, este foi lido pela imprensa, a partir de processos de ancoragem, com os estereótipos da malandragem, corrupção e ganho fácil. Estes processos de ancoragem, contudo, são anteriores ao período abrangido pela presente investigação, logo na década de 1990, quando a IURD se envolveu em polémicas de grande reverberação mediática, como a tentativa de compra do Coliseu, no Porto. Se a utilização de estereótipos sobre o país e a sua população foram notórios no discurso jornalístico desse período (Machado, 2003), já assim não nos pareceu nas peças sobre a IURD publicadas no período do nosso estudo,

42 Durante o período abrangido pela investigação, identificámos os seguintes textos sobre a IURD: “Crime

na Igreja” (Revista do Expresso, 6/1/01, p. 40-53), sobre a denúncia de um ex-pastor português do envolvimento da Igreja em ações criminosas; “‘Crime na Igreja’ – Direito de Resposta” (Expresso, 17/2/01, p. 23), relativo à carta enviada ao jornal pelos porta-vozes da IURD, na sequência da denúncia; “Fé e dinheiro na ‘Ilha de Deus’” (Público, 12/8/02, p. 2-3), acerca de dois megacultos em Lisboa e no Porto para celebrar os 25 anos da IURD; e por fim, “Chegou o tempo das catedrais” (Expresso, 6/3/10, p. 28) e “IURD entrou na era das catedrais” (Público, 8/8/10, p. 7-9), ambos sobre a construção e inauguração de uma

em que se manteve um discurso crítico, mas não uma ligação explícita a representações sociais sobre o Brasil e os brasileiros. Por este motivo decidimos deixar este material de lado.

O tópico da emigração portuguesa para o Brasil, enquadrado por textos construídos segundo uma perspetiva epopeica, com uma clara evocação da era dos descobrimentos, foi o que esteve mais presente no segundo período. Todavia, pelo facto de o Brasil ter sido o principal destino da diáspora portuguesa até meados de 1950, este assunto também esteve presente em alguns textos do primeiro período. Assim, considerando a importância deste movimento migratório para o estabelecimento de um imaginário social sobre o Brasil, conforme abordado em capítulo anterior, e o diálogo com o mesmo estabelecido nos textos que tratam a recente emigração portuguesa para o Brasil no contexto de crise económica, julgamos importante analisar este conjunto de textos num subcapítulo à parte.

A imigração brasileira em Portugal, por sua vez, foi o tópico com maior número de peças jornalísticas, constituindo assim o subcapítulo mais longo. Aí incluímos, porém, não apenas peças relacionadas com a problemática da imigração brasileira, mas também textos que têm por personagens imigrantes brasileiros. A razão para selecionarmos também este material tem a ver com o facto de as representações sociais sobre o Brasil e os brasileiros que dele emergem, e que assim se sedimentam e reforçam na sociedade portuguesa, apresentarem um impacto direto na vida dos imigrantes, conforme diversos estudos já demonstraram (Machado, 2003; Padilla, 2007; Malheiros, 2007 e outros) e nós próprios também observámos durante as entrevistas e as reuniões dos grupos de foco com os imigrantes; e ainda mais o facto de essas representações terem sido utilizadas no enquadramento de outros fenómenos e acontecimentos dessa época. No início do séc. XXI, as notícias relacionadas com migrantes e minorias étnicas tendiam a concentrar-se na secção de polícia (Ferin et al., 2009), o que, relativamente aos brasileiros, considerando a representação social habitual do país como lugar altamente violento, serviu para reforçar a sua associação com a criminalidade.

As notícias sobre “imigração brasileira em Portugal” foram em maior número durante o primeiro período, mas a diminuição verificada no período seguinte não foi drástica, como supúnhamos, considerando que a comunidade brasileira esteve em decréscimo entre os anos de 2011 e 2016. Para a manutenção deste equilíbrio foram fundamentais não apenas as notícias que se debruçaram, justamente, sobre esta

diminuição, mas também as que abordaram fenómenos recentes, como o aumento de estudantes brasileiros no ensino superior português, e as que – para nós, inusitadamente – focaram os imigrantes que permaneciam em Portugal ou os que continuavam a vir para o país, não obstante as estatísticas oficiais demonstrarem um movimento contrário. A imagem do imigrante brasileiro que emerge desta cobertura oscila entre representações positivas e negativas, ora salientando-se, por exemplo, a malandragem dos brasileiros em notícias sobre burlas e afins, ora o reverso deste estereótipo: a simpatia que, com a evasão da comunidade, deixava de se fazer notar nos serviços.

Relativamente à imagem da mulher brasileira, como se discorreu em capítulo anterior, a exploração de uma sensualidade pretensamente inata decorre a partir do regime de representação elaborado pelo colonizador português – como vimos, a exploração deste viés já se encontra presente na carta de Caminha; o qual, conforme explica Stuart Hall (1990), acabou por ser interiorizado como identidade cultural do colonizado, já que tanto o Estado como a cultura popular brasileiros, depois, também acabaram por explorar essa imagem. Neste sentido, identificamos tais estereótipos em notícias sobre diferentes temáticas, conforme apresentaremos neste subcapítulo, todavia, houve um acontecimento mais em particular em 2003 que acabou por atualizar a imagem da mulher brasileira em Portugal, passando a associá-la à prostituição.

A partir da intensa cobertura mediática do movimento “Mães de Bragança”, emergiu um padrão de representação mediática em que a imigração brasileira passou a estar associada, sobretudo, a casos de prostituição e tráfico de pessoas (Correia, 2014). Se no primeiro período de análise, esta cobertura abrangeu textos mais voltados para a exploração de um sensacionalismo e de estereótipos relacionados com as brasileiras, no segundo período observamos uma atenuação desse padrão. Todavia, identificamos um processo de ancoragem ao longo dos dois períodos, em que a representação social da brasileira como uma mulher de exacerbada sensualidade – representação hegemónica e já com séculos... – é utilizada para retratar casos de prostituição de brasileiras em Portugal, o que acabou por dar origem a uma nova representação com características hegemónicas, considerando a sua presença em alguns textos publicados já nos anos de 2010 a 2015: a brasileira como metonímia para prostituição em Portugal.

Embora não diretamente (ou mesmo em nada) relacionados com o Brasil e os brasileiros, alguns textos foram selecionados para análise por permitem abordar

cobertura do caso brasileiro. Há um interesse justificável, portanto, em procurar comparar, quando possível, a evolução desta com outras congéneres, de outros grupos migratórios, ainda que esse não seja o nosso objetivo primeiro.

A escolha de uma análise crítica do discurso para os textos selecionados justifica- se por, como diz van Dijk (2002a), o discurso jornalístico consistir num tipo específico de texto – com especial incidência na construção da opinião pública, conforme discorreremos mais à frente – cujo significado requer atenção ao contexto sociocultural e cognitivo da audiência, considerando a sua relação com o facto narrado. Norman Fairclough (2001) expõe uma visão similar ao considerar, também, a linguagem mediática como um tipo específico de discurso, cuja análise não se deve prender apenas aos textos, mas ter em atenção, igualmente, as práticas socioculturais e discursivas. Estas últimas dizem respeito aos modos como os textos são produzidos, recebidos e socialmente distribuídos pelas audiências; etapas que se relacionam com vários níveis de práticas socioculturais, o que leva também o autor a considerar a análise crítica do discurso como uma forma de compreensão das relações entre textos, práticas discursivas e práticas socioculturais.

Grande parte de nossas crenças e conhecimentos sociais e políticos sobre o mundo derivam das inúmeras reportagens que lemos ou assistimos todos os dias. Provavelmente, não há nenhuma outra prática discursiva, ao lado da conversação quotidiana, que gere tão frequente engajamento por parte de tantas pessoas quanto a imprensa e a televisão. (van Dijk, 2002a, p. 110)

Como é possível observar pelo excerto acima, há uma similitude entre as ideias de van Dijk e Gabriel Tarde (1903, 2005) – um dos pilares teóricos desta investigação. Ainda que Tarde considere a conversação como um meio mais efetivo de engajamento entre as pessoas, determinante para que atos de imitação – entre os quais ele inclui a opinião – se estabaleçam entre elas, o autor não deixou de notar já no final do séc. XIX que a grande especificidade dos jornais residia no facto de, na sua quase interação mediada com os leitores, eles permitirem a emergência do que denominou “consciência de unanimidade simultânea”.

Segundo o autor, essa realidade advém do facto de os jornais – assim como os outros meios de massa – proporcionarem a cada membro do público a consciência de que tomam ao mesmo tempo, ou quase, conhecimento sobre uma notícia. Isto é o que, consequentemente, permite a emergência e fortalecimento de uma opinião pública, pois

para que esta se estabeleça é necessário que as pessoas tenham consciência da similitude dos seus juízos com os juízos de outrem. Por este motivo, para Tarde (2005), o pleno estabelecimento de um público e do seu substrato, a opinião pública, só foi possível em meados do séc. XIX quando, com os avanços tecnológicos representados pelo telégrafo e as linhas ferroviárias, a transmissão instantânea da informação e a difusão mais rápida dos jornais se tornaram possíveis.

Se a consciência de unanimidade simultânea permite que as pessoas se sugestionem mutuamente, proporciona também que elas transmitam umas às outras as sugestões recebidas dos media, o que levou Gabriel Tarde, no momento em que este fenómeno começou a generalizar-se, a alertar para a enorme força que se estava a depositar nas mãos do jornalismo (com a sua influência sobre o poder persuasivo dessa consciência). Esse poder, por sua vez, vem do facto, intuído pelo autor, das pessoas quererem inconscientemente que as suas opiniões, juízos e gostos se assemelhem aos da maioria ou aos de uma elite. Algo verificado quase um século mais tarde na investigação conduzida por Elisabeth Noelle-Neumann e intitulada The Spiral of Silence: Public

Opinion ̶ our social skin; em que a autora chegou à conclusão de que as pessoas não se

sentem confortáveis estando “sozinhas” nas suas opiniões e, até conseguirem ajustar-se ao juízo da maioria, tendem a ficar em silêncio e a deixar transparecer conformidade.

A investigação aqui desenvolvida não parte do pressuposto, porém, de que as mensagens dos meios de massa seriam as únicas responsáveis pela imagem pública construída sobre o Brasil e os brasileiros em Portugal. Como os autores associados à teoria dos enquadramentos fazem questão de enfatizar (Entman, 1993; Pan & Kosicki, 1993), não é por se utilizar determinado enquadramento numa notícia que se tem logo garantida a forma como o facto narrado será interiorizado pela audiência. Como assinala Fairclough (2001), a investigação desenvolvida no âmbito da receção dos produtos mediáticos tem revelado que os textos não possuem significados estritos, em contrapartida, a sua interpretação varia de acordo com as diversas audiências e os seus membros. As leituras variam, pois elas são sempre o resultado da interface entre as propriedades do texto e o conjunto de práticas e recursos interpretativos da receção, que é único para cada leitor.

Como afirma Louis Quéré (2015), o foco da experiência pública é a atenção pública, geralmente criada e sustentada pelos media e na qual se inscrevem acontecimentos, iniciativas, “escândalos” e afins. Todavia, é apenas por meio da conversa

Erving Goffman sobre quadro e estatuto de participação, o autor afirma que há diversos estatutos de participação nesta focalização: aqueles que emergem como organizadores ou mediadores – “Por exemplo, quando um problema público [é] instituído, há estatutos oficiais de participantes sancionados, correspondendo a uma certa organização institucional do inquérito público e colectivo” (p. 6) – e os que se mantêm como sujeitos de atenção.

Estes sujeitos de atenção, no entanto, não são necessariamente passivos. Como Louis Quéré (2015) argumenta, desta vez utilizando por mote observações de Jacques Rancière, contemplar algo não é ser passivo, mas agir por meio de observações, comparações, seleções e interpretações, em que os agentes sociais fazem associações e dissociações. Cada um, pois, pode envolver-se em acontecimentos e situações públicas em diferentes graus, sendo pouco provável que esta atenção permaneça íntima ou privada. Segundo este autor, mas também Gabriel Tarde e outros, tudo sugere que a atenção se fixe na e pela conversação social, que emerge como uma forma de apropriação de acontecimentos e de participação na determinação coletiva do significado destes.

Segundo esta perspetiva teórica, na análise das notícias ou bloco de notícias (aquelas que remetam a um mesmo tópico), será tido também em consideração o contexto sociocultural da problemática em questão, de modo a relacionar este com as implicações políticas e ideológicas dos textos. Como indica João Carlos Correia (2014), a análise crítica do discurso é um precioso auxiliar teórico e metodológico para compreender como o jornalismo se relaciona com a esfera pública e a vida quotidiana, ainda que o próprio recorra também aos contributos da análise de enquadramentos e a reflexões socio lógicas sobre a estruturação do debate público.

Na abordagem multidisciplinar própria da análise crítica do discurso, a ideologia, conforme discorremos em capítulo anterior, não é vista como um simples conjunto de ideias que refletem a infraestrutura económica de uma sociedade. Deve ser sim relacionada com a estrutura e as cognições sociais, o que permite estabelecer uma ponte entre os pressupostos teóricos da análise crítica do discurso e os esquemas cognitivos designados por enquadramentos, as rotinas profissionais que interiorizam valores ideológicos e os esquemas cognitivos correspondentes nas práticas profissionais quotidianas.

Por fim, assinalamos que a análise crítica do discurso que aqui empreendemos não corresponde à aplicação de nenhum modelo estanque (van Dijk, 2005), mas é antes uma perspetiva de compreensão crítica com a qual se pretende identificar nas estruturas do discurso, entre o dito e o não dito, as ideologias e as suas respetivas representações sociais, que subjazem a certas opções retóricas, estilísticas e afins. É neste sentido que o autor afirma ser necessário, para uma análise discursiva completa, empreender uma análise teórica tanto quanto possível exaustiva do assunto social que o discurso em questão trata. Apenas desta forma será possível correlacionar as estruturas discursivas com o respetivo contexto social. Assim, neste capítulo os pressupostos da análise crítica do discurso e da framing theory são utilizados mais como um referencial, a partir do qual estabeleceremos a triangulação discurso, cognição e sociedade, para compreender as imagens mobilizadas na representação do Brasil e dos brasileiros nos jornais.