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Para analisar o que o golpe militar de 1964 e a posterior imposição do AI-5 representaram para certos aspectos do Brasil, façamos aqui um parêntese para relembrar a maneira como Elias (2006) considera o processo de formação de Estados e de construção de nações. O autor rejeita a tendência a tratar as nações como “sistemas”, por considerar que pode haver aí a aplicação de um mesmo olhar imutável a diferentes e peculiares formações populacionais – ou, ainda, a evocação de uma imagem, que ele considera simplista, de determinada sociedade como um organismo em perfeita harmonia social. O autor prefere descrever o processo de desenvolvimento de uma nação como algo de longo prazo, classificando-o como algo sui generis, e não evolutivo. E em permanente continuidade – daí a sua rejeição à ideia de que certos países podem ser chamados de “desenvolvidos”, acepção que, em sua análise, dá a entender que essas nações já atingiram seu estágio final de desenvolvimento.

Aliás, a própria ideia de estado-nação, para Elias (2006), é apenas o estágio mais recente desse processo, tendo-se iniciado somente a partir da segunda metade do século 18, e à custa de seguidas modificações e recomposições nos estratos sociais das populações envolvidas. Nesse processo de formação do estado-nação, é óbvio que está inserido o

processo de desenvolvimento dos seres humanos que formam a população dessa determinada sociedade. Elias identifica, como elemento-chave a denunciar o grau de desenvolvimento de uma nação, a integração entre sua população e o equilíbrio de poder e de comunicação entre os agentes que tomam decisões e os que serão afetados pelos efeitos dessas decisões. Aí, como exemplo prático, o autor cita o surgimento dos partidos políticos como meios de estabelecer essa comunicação e esse equilíbrio.

Normalmente as pessoas deixam de perguntar que desenvolvimentos que estruturas da sociedade dão conta da emergência, nos séculos XIX e XX, de partidos políticos nacionais e governos chefiados por partidos como instituições regulares. Eficazes ou não, os partidos são sintomáticos de um estágio do desenvolvimento das sociedades no qual a integração da população do Estado se tornou maior e não é mais possível adotar medidas que digam respeito às vidas dos habitantes de um país sem recorrer a canais regulares de comunicação entre os tomadores de decisão e os que são afetados por elas. (...) A relação entre o partido de massa e as características do Estado-nação é evidente. As sociedades se fazem nações quando a interdependência funcional entre suas regiões e seus estratos sociais, bem como entre seus níveis hierárquicos de autoridade e subordinação, torna-se suficientemente grande e recíproca para que nenhum desses grupos possa desconsiderar completamente o que os outros pensam, sentem ou desejam (ELIAS, 2006, p. 163).

Se Elias identifica um estágio do processo de desenvolvimento de uma sociedade no avanço da integração e do equilíbrio democrático entre os diversos estratos sociais e seus representantes institucionais, há que se considerar que não era isso o que nascia no Brasil em 1º de abril de 1964. O golpe militar abortou um processo de formação que estava em curso e avançava de forma gradual, porém visível a ponto de provocar receios e dar margens às reações que culminaram com essa intervenção – que, no entender dos golpistas, não teria sido um golpe, mas uma “revolução” em defesa da “democracia”.

O processo de formação, abortado pelos militares, vinha em andamento no país desde o final dos anos 1950, e se intensificara na primeira metade da década de 1960. Havia um universo de propostas cujas respostas encontravam ecos, sobretudo, nos meios artísticos e intelectuais, nos quais predominava uma espécie de hegemonia cultural de esquerda. O teatro, o cinema, a música brasileira e a imprensa, principalmente, foram campos em que essa tendência se manifestou de forma perceptível.

Ridenti (2000, p. 11) aponta que, para os agentes que atuavam nesses campos:

[...] era central o problema da identidade nacional e política do povo brasileiro; buscava-se a um tempo suas raízes e a ruptura com o

subdesenvolvimento, numa espécie de desvio à esquerda do que se convencionou chamar ultimamente de era Vargas, caracterizada pela aposta no desenvolvimento nacional, com base na intervenção do Estado.

Esse clima foi classificado pelo mesmo autor como “o florescimento das mais variadas formas de romantismo revolucionário” (RIDENTI, 2000, p. 33). E, a servir como referência para atividades artísticas, intelectuais e políticas nesse período, havia por trás de tudo a influência do Partido Comunista do Brasil (PCB), apesar de sua ilegalidade oficial. Em meio às buscas revolucionárias, havia um personagem central, cujas raízes e origens estavam permanentemente envolvidas numa operação de resgate: o povo brasileiro. Ridenti explica: “Tratava-se de procurar no passado uma cultura popular genuína, para construir uma nova nação, anti-imperialista, progressista – no limite, socialista” (RIDENTI, 2000, p. 12).

Algumas inspirações vinham do plano internacional, como os processos de libertação nacional ocorridos em vários países – caso da Revolução Cubana, de 1959, da libertação da Argélia, em 1962, da guerra em curso que opunha os Estados Unidos e o Vietnã, das lutas de libertação de colônias africanas, etc. Esses movimentos revolucionários apontavam para o questionamento do modelo soviético de socialismo e abriam caminho para o que Ridenti (2000) classifica como alternativas terceiro-mundistas, algo como uma opção à esquerda que trazia consigo a emancipação nacional sem que isso significasse a adesão ao burocrático sistema de Moscou.

Internamente, o Brasil vivia o Governo de João Goulart, herdeiro político direto de Getúlio Vargas e filiado ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), tido como a legenda de maior respaldo popular dentro da legalidade partidária de então – já que o PCB, embora tivesse sua atuação tolerada pelo Governo Jango, encontrava-se oficialmente proscrito. Era o momento da expectativa popular provocada pelo Governo Federal, que se mostrava disposto a pôr em curso uma série de reformas estruturais em vários setores – as chamadas “reformas de base”. As instâncias de participação política, levando-se em consideração os postulados eliasianos (integração populacional; equilíbrio de forças; canais de comunicação entre instituições e seus representados), mostravam que a população brasileira se aproximava de um estágio mais avançado de um desenvolvimento político-sociocultural de inspiração nacional- popular, em sintonia com as aspirações das esquerdas. No entanto, havia no meio do caminho, a abortá-la, a intervenção militar que provocou a interdição desse processo, levando ainda à deposição, cassação e exílio do presidente constitucional e de mais de uma centena de figuras políticas, intelectuais e artísticas. E, consequentemente, a um período de exceção, no qual as aspirações que se ensaiavam sob Jango seriam neutralizadas.

O processo de democratização política e social, com a crescente mobilização popular pelas chamadas “reformas de base” - agrária, educacional, tributária e outras que permitissem a distribuição mais equitativa da riqueza e o acesso de todos aos direitos de cidadania –, foi interrompido pelo golpe de 1964. Ele deu fim às crescentes reivindicações de lavradores, operários, estudantes e militares de baixa patente, cuja politização ameaçava a ordem estabelecida. A versão dita populista da hegemonia burguesa já não era suficiente para organizar o conjunto da sociedade em conformidade com os interesses do capital, ameaçados pelo questionamento dos de baixo, que tomaram a iniciativa política” (RIDENTI, 2000, p. 36).

Jacob Gorender, ex-militante do PCB que, posteriormente, destacou-se como um importante memorialista desses tempos, descreve o período entre 1960 e 1964 como “o ponto mais alto das lutas dos trabalhadores neste século [20], até agora” (GORENDER, 1987 apud RIDENTI, 2000, p. 36). Para reforçar a imagem das dimensões da ruptura provocada pelo golpe militar, Ridenti toma o depoimento de outra testemunha participante desse período, o escritor, roteirista e dramaturgo Izaías Almada. O testemunho aponta que o impacto da interrupção foi sentido tanto na arena política quanto nos meios culturais, nos quais, como vimos, predominava a hegemonia do pensamento de esquerda e de seu discurso nacional- popular:

Eu comecei a participar ao mesmo tempo em política e em cultura, numa fase efervescente, em que eu queria participar, fazer alguma coisa. Era mesmo uma procura de identidade cultural para o país; todo mundo gostava de ser brasileiro porque a Bossa Nova, o Cinema Novo, o mundo inteiro conheceu. O Brasil ganhou a Palma de Ouro em Cannes, em 1962, com O pagador de promessas; o teatro estava sempre cheio, aquilo dava uma alegria muito grande. Havia um orgulho em ser brasileiro naquele momento. […] E o pior é que cortaram esse Brasil, deceparam-no ao meio e meteram aí uma outra coisa que a gente não sabe bem o que é, uma espécie de hidra política, cultural, que deu neste Brasil de hoje. […] O espírito que favoreceu o florescimento daquela atividade política e cultural devia ser recuperado nos modelos de hoje, discutido na realidade atual (ALMADA s.d. apud RIDENTI, 2000, p. 38).

Com o AI-5, esse processo de interdição se institucionalizou e chegou ao ápice. A escalada rumo a um estágio de maior desenvolvimento na construção do país como nação foi abatida em pleno voo. Em meio às lutas simbólicas, prevaleceu a versão dos militares, que, ao se aboletarem no poder e assumir o controle do Estado brasileiro, tornaram-se os detentores oficiais do monopólio da violência simbólica. Estabeleceram-se o obscurantismo, o arbítrio, o despotismo.

Mas, cumpre registrar que, se o golpe militar de 1964 foi um momento de interdição e ruptura – e o ponto de vista desta análise o interpreta dessa forma –, há que se lembrar de que

foi também a interrupção de uma luta simbólica que vinha se desenvolvendo, pelo menos, desde o suicídio de Vargas. Nessa luta, disputavam a hegemonia dois projetos distintos de construção de nação no Brasil: o de inspiração nacional-popular, sob as bênçãos das esquerdas, e que a partir dos anos 60 pareceu tomar a dianteira na disputa, por ter encontrado relativo respaldo institucional a partir de determinado momento do Governo Jango; e o defendido pelos militares, baseado num modelo de desenvolvimento que impunha a concentração de renda e o alinhamento direto aos Estados Unidos e à sua política externa.

Vimos que os processos de desenvolvimento de uma sociedade geram, em determinados momentos, embates nos quais a sociedade chega a um estágio de avanço mais intenso e causa impacto maior entre os grupos – o que, naturalmente, dá margem a que surjam reações contrárias que possam anular ou atenuar as consequências daquele primeiro avanço. Assim, aqui se interpreta o golpe militar como o ápice da reação contra o consenso que vinha sendo construído pelo modelo desenvolvimentista “romântico-revolucionário”. Ambos os projetos de nação eram defendidos por brasileiros – mas brasileiros com diferenças ideológicas, que apresentavam concepções diferentes a respeito das mudanças que queriam para o país – e, sobretudo, a respeito de quais seriam os grupos sociais que protagonizariam essas mudanças.

Não custa relembrar aqui, por suas próprias palavras, o entendimento de Elias sobre possíveis formas de se identificar o estágio de desenvolvimento de uma sociedade, a ponto de ser possível considerá-la como nação:

As sociedades se fazem nações quando a interdependência funcional entre suas regiões e seus estratos sociais, bem como entre seus níveis hierárquicos de autoridade e subordinação, torna-se suficientemente grande e recíproca para que nenhum desses grupos possa desconsiderar completamente o que os outros pensam, sentem ou desejam. O governo chefiado por líderes de partidos e a adoção de ideologias elaboradas para convencer a massa da população de que se pretende a melhoria das suas condições e o avanço do bem-estar da nação são sinais da pronunciada mudança no equilíbrio de poder entre governantes e governados, da qual falei (ELIAS, 2006, pp. 163- 164).

Com os militares no poder, ao qual chegaram sem que houvesse guerra civil ou derramamento de sangue (o que, de certa forma, foi algo surpreendente para ambos os lados), uma sensação de aturdimento e surpresa tomaria os que eram favoráveis ao projeto de desenvolvimento agora interditado. O poder oficial de nomeação e de construção da “realidade” passou a ser utilizado em nome de outras prioridades – e valendo-se de métodos bem diferentes. Derrotados na luta simbólica, os adeptos do “romantismo revolucionário”

veriam que a ideia de “desenvolvimento”, tocada pelo Estado recém-militarizado, privilegiaria elementos bem contrastantes com os que pareciam consensuais até pouco tempo antes do golpe. Em lugar do horizonte nacional-popular, quase “socialista” e protagonizado pelo “homem novo”, viria a “modernização conservadora”, em sentido inverso ao que apontavam os sintomas que vieram à tona durante os fatos do Governo Jango. Assim, o curso do desenvolvimento brasileiro passaria a tomar outra direção:

As esquerdas enganaram-se, ao supor que o golpe implicaria a estagnação econômica. Ao contrário, representando as classes dominantes e setores das classes médias, os governos civil-militares promoveram a modernização conservadora da sociedade brasileira, o desenvolvimento econômico desigual e combinado, compondo indissoluvelmente aspectos modernos e arcaicos. Houve crescimento rápido das forças produtivas, o chamado milagre brasileiro, acompanhado da concentração de riquezas, do aumento das distâncias entre os mais ricos e os mais pobres, bem como do cerceamento às liberdades democráticas. O regime buscava sua legitimação política com base nos êxitos econômicos, sustentados por maciços empréstimos internacionais, que colocariam nos ombros das gerações posteriores o peso de imensa dívida externa (RIDENTI, 2000, p. 42).

No entanto, esse novo direcionamento que passava a ser trilhado pela sociedade, que a levaria a um desenvolvimento de inspiração “conservadora”, também não seria implantado sem quaisquer formas de reação – ou, neste caso, de resistência. Por mais que contrariasse a lógica eliasiana e continuasse a impor o desequilíbrio entre os níveis hierárquicos de autoridade e subordinação (demonstrando, assim, desconsiderar o que os outros “pensavam, sentiam e desejavam”), o regime militar seria incomodado por outros canais de expressão, por meio dos quais as esquerdas – agora reconfiguradas – passariam a desempenhar sua função de resistir à “realidade” que os novos protagonistas do poder tentariam construir. Chegamos, agora, à imprensa alternativa, que se constituiria como um desses canais de expressão e daria a senha para a criação d‟O Pasquim.