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Antes de se verificar o que Henfil quis exprimir em seu cartum, ao fazer com que Simonal questionasse o que Chico Buarque tinha, e que faltava a ele, é preciso passar àquilo que se constitui como o alicerce deste esforço de pesquisa: a atuação d‟O Pasquim como um agente construtor de memória a respeito de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Wilson Simonal.

Retomando-se o que já foi apresentado na introdução a este trabalho, a título de fundamentação teórica, defende-se que a memória, esse saber incorporado, adquirido pelos seres humanos em meio ao contato que travam entre si, vai-se forjando à medida que eles, valendo-se da predisposição biológica que sua condição humana lhe assegura, acumulam conhecimento e se desenvolvem culturalmente.

Há uma produção incessante de conhecimento e, com isso, produz-se memória. Já vimos que a língua permite aos seres humanos não apenas uma possibilidade de comunicação, mas, sobretudo, assegura-lhes a sobrevivência. Por isso, Elias (2002) a elege para um lugar de destaque entre os sistemas de representação simbólica, dada sua possibilidade de garantir que conhecimentos sejam armazenados na memória das pessoas e transmitidos de uma geração à outra, mantendo assim a coesão dos grupos.

Bourdieu (1998) também se detém sobre a língua para ressaltar sua dupla potencialidade, a depender dos interesses a que pode servir: ao mesmo tempo em que age de forma ativa e até mesmo impositiva, como instrumento estruturante, a língua pode ser também considerada do ponto de vista contrário, estruturado. Esse caráter dúbio da língua se manifesta nas relações entre os agentes inseridos no mundo social: uma permanente série de lutas simbólicas, nas quais estes se insurgem entre si, em busca de impor ou legitimar o seu poder de definição do mundo social. E, dessa forma, fazer com que se legitime o seu poder simbólico, o qual já foi definido aqui, anteriormente: aquele que, sendo reconhecido por outros agentes e, portanto, ignorado enquanto arbitrário, permite aos que o possuem desfrutar da capacidade de “produzir efeitos reais sem dispêndio aparente de energia”.

Portanto, as relações entre os agentes sociais não são simples relações humanas. Justamente por essa condição, são disputas, embates, lutas, nas quais está em jogo a posse do poder simbólico e de suas vantagens, como a possibilidade de contar com a crença alheia que lhe permite estabelecer definições acerca da “realidade”. Bourdieu sintetiza:

[...] as relações de comunicação são, de modo inseparável, sempre, relações de poder que dependem, na forma e no conteúdo, do poder material ou simbólico acumulado pelos agentes (ou pelas instituições) envolvidos nessas relações e que, como o dom ou o potlatch, podem permitir acumular poder simbólico. É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os “sistemas simbólicos” cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica) dando o reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a “domesticação dos dominados” (BOURDIEU, 1998, p. 11).

É com base em tal ótica que aqui são analisados os embates entre O Pasquim, Caetano, Gil e Simonal, descritos no capítulo anterior e que, neste terceiro e último, são acrescidos da análise teórica e de mais algumas contribuições empíricas. Trata-se das relações de força entre esses agentes, nas quais cada um acumulou capital simbólico e dele se utilizou. E, se o capital simbólico geralmente se traduz por “prestígio, reputação, fama, etc. que é a forma percebida e reconhecida como legítima das diferentes espécies de capital” (BOURDIEU, 1998, p. 134-135), depreende-se que todos eles o tiveram num mesmo momento, simultaneamente e de diferentes maneiras. Cada agente, no seu respectivo campo de produção simbólica – aqui nos interessam, de forma preponderante, o campo jornalístico e o campo cultural –, num determinado momento – as décadas de 1960 e 1970 –, acumulou capital suficiente para ser visto como detentor de poder simbólico, e o utilizou em seus domínios. Em cada campo, as posições e a hierarquização dos agentes dependeu dos ganhos que ele obteve com seu capital (BOURDIEU, 1998). E, como veremos, nas disputas de sentido em que esses agentes se enfrentaram diretamente, nem todos os capitais simbólicos revelaram seu valor na dimensão que, naquele momento, talvez fosse mais útil a seu detentor.

Retornando à língua como potente sistema simbólico de produção de conhecimento e construção de memória, consideramos que essa potencialidade na produção de sentidos não se limita a seus padrões sonoros. Ela também se faz presente em sua modalidade escrita. E, nessa forma, suas dimensões podem ser multiplicadas. Informações publicadas num jornal como O

Pasquim, cuja influência – e cujo capital simbólico – atingiu níveis surpreendentes no período

analisado aqui, permanecem presentes de forma a transcender o som produzido pela voz de um agente. Adquirem ares de “verdade” mais sólidos e permanentes, pois continuam ali, arquivadas e presentes, enquanto o som da palavra falada se extingue no instante posterior ao momento em que é dita – a não ser que tenha sido gravada de alguma forma. Se não, permanecerá presente apenas na memória de quem a tenha ouvido. E, nesse caso, estará

sempre sujeita aos efeitos reinterpretativos e ressignificantes do tempo, ao sabor das circunstâncias em que o agente está inserido.

O contato desse agente com outros de seu grupo – e também de outros grupos – manterá “vivo” esse conhecimento. Cria-se, assim, a memória que, a princípio, será intrageracional. Posteriormente, esse conteúdo também será absorvido por agentes da geração seguinte, no que passará a ser conhecido como a transmissão intergeracional de conhecimento. É esse o processo de acúmulo de conhecimento e de construção de memória, do qual participam os agentes envolvidos nas lutas simbólicas cotidianas.

Aqui, com base no arcabouço teórico que ampara este trabalho, considera-se O

Pasquim um eficiente produtor de sentidos, principalmente durante o período em que dispôs

do capital simbólico que já descrevemos aqui. Inicialmente, essa característica foi reconhecida de forma intrageracional. Quando publicou o boato, ainda restrito a certos círculos da Zona Sul do Rio de Janeiro, de que Simonal seria supostamente um informante de órgãos de repressão política, o jornal contribuiu para que se inculcasse no cantor o estigma de “delator”.

Armazenado na memória dos que leram o jornal naquele momento, e também dos que, embora não o tenham lido, incorporaram essa informação através do contato com outros agentes (considere-se, aqui, a considerável influência que o jornal tinha naquele momento), esse conhecimento foi transmitido à geração seguinte. Dessa forma, cristalizou-se. E acabou por se estandardizar socialmente a versão segundo a qual Simonal era, de acordo com O

Pasquim e praticamente toda a imprensa da época, um “dedo-duro”.

Detendo-nos agora sobre o capital simbólico d‟O Pasquim, notamos que foi se solidificando e se robustecendo à medida que seu prestígio se ampliava junto aos leitores e, principalmente, ao público de oposição ao regime militar. Isto foi mostrado no segundo capítulo deste trabalho. Com o gradual crescimento nas vendas em bancas, e também por conta do conteúdo que veiculava semanalmente, o jornal se constituiu como um agente de grande respaldo entre um determinado grupo. Assim, conquistou seu capital simbólico e garantiu sua “importância social reconhecida” (BOURDIEU, 2001).

Os agentes que atingem esse estágio livram-se de qualquer sentimento de insignificância, algo notável na condição humana. Nessas condições, afastam-se da “contingência de uma existência sem necessidade” (BOURDIEU, 2001, p. 294) e garantem “uma função social conhecida e reconhecida” (BOURDIEU, 2001, p. 294).

[...] O capital simbólico [...] não constitui uma espécie particular de capital, mas justamente aquilo em que se transforma qualquer espécie de capital quando é desconhecida enquanto capital, ou seja, enquanto força, poder ou capacidade de exploração (atual ou potencial), portanto reconhecida como

legítima. Mais precisamente, o capital existe e age como capital simbólico [...] na relação com um habitus predisposto a percebê-lo como signo e como signo de importância, isto é, a conhecê-lo e a reconhecê-lo em função de estruturas cognitivas aptas e tendentes a lhe conceder o reconhecimento pelo fato de estarem em harmonia com o que ele é. Produto da transfiguração de uma relação de força em relação de sentido, o capital simbólico nos livra da insignificância, como ausência de importância e de sentido (BOURDIEU, 2001, p. 296).

Essa legitimidade, extraída da harmonia entre o jornal e seu público, que o percebia como “signo de importância”, foi o que garantiu a O Pasquim o poder de que o jornal desfrutou – e que utilizou em nome da construção de seu consenso e da sua “verdade”. Por perceber que aquele jornal dizia algo que estava em sintonia com o que eles desejavam, esses leitores reconheceram seu capital político e o elegeram como uma espécie de “porta-voz”. Estabeleceram, assim, uma relação de crença e reconhecimento e outorgaram ao tabloide humorístico o status de representante político (BOURDIEU, 1998).

Não há como analisar as lutas simbólicas presentes neste trabalho sem que se recorra à ideia de habitus, também com base em Bourdieu (1998). O autor a utilizou para se referir a um sistema de disposições que o agente acumula ao longo das experiências sociais nas quais se envolve. Tal sistema é incorporado tanto no aspecto material quanto simbólico: está presente, de forma simultânea, em seu corpo, em seus gestos, na posição que ocupa dentro do campo e nos capitais que adquire. Para além do aspecto estritamente relacionado ao indivíduo, o habitus também está vinculado às circunstâncias e ao contexto em que ele se insere. Ao adotar essa definição de habitus, Bourdieu (1998) tem o objetivo de superar o dualismo conceitual que opunha, num extremo, o poder absoluto das estruturas sociais sobre as ações do indivíduo; e, no outro, a prevalência do indivíduo sobre as estruturas sociais.

Portanto, o conceito de habitus, em Bourdieu (1998), refere-se ao conhecimento construído e acumulado. Em suma, é memória incorporada socialmente, e trazida em si por qualquer agente, como uma espécie de “segunda pele” a envolvê-lo. É algo estruturante e, ao mesmo tempo, estruturado. Pode-se recorrer a esse conceito para se compreender as trajetórias desses agentes: escolhas, preferências políticas, estéticas ou de qualquer outra ordem, julgamentos morais, posicionamentos diversos (e até mesmo a revisão ou reavaliação desses mesmos posicionamentos), enfim, qualquer comportamento que for manifestado de forma coletiva ou individual. É o próprio autor quem explica quais eram suas intenções ao criar o conceito:

[...] tal noção permitia-me romper com o paradigma estruturalista, sem cair na velha filosofia do sujeito ou da consciência, a da economia clássica e do seu homo economicus que regressa hoje com o nome de individualismo

metodológico. Retomando a velha noção aristotélica de hexis, convertida pela escolástica em habitus, eu desejava reagir contra o estruturalismo e a sua estranha filosofia da acção que, implícita na noção levi-straussiana de inconsciente, se exprimia com toda a clareza entre os althusserianos, com o seu agente reduzido ao papel de suporte [...] da estrutura; e fazia-o arrancando Panofsky à filosofia néo-kantiana das “formas simbólicas” em que ele ficara preso [...] (BOURDIEU, 1998, p. 61).

Ainda a falar sobre a constituição abrangente de seu conceito, Bourdieu define o

habitus como “um conhecimento adquirido e também um haver, um capital (de um sujeito

transcendental na tradição idealista)” (BOURDIEU, 1998, p. 61), e revela que, com tal conceito, pretendia “sair da filosofia da consciência sem anular o agente na sua verdade de operador prático e construções de objeto” (BOURDIEU, 1998, p. 62). Por meio da ideia de

habitus se pode traduzir, por exemplo, as trajetórias de agentes que, a um só tempo, estão

próximos e imensamente distantes, como Henfil, Paulo Francis, Caetano, Gil e Simonal. Antes de passar para o próximo item, um adendo com relação à língua: sua potência quando veiculada por intermédio da música. Consideramos que, na linguagem musical, da mesma forma que na escrita, há uma potencialidade que tem origem na “permanência”. Se o conteúdo publicado pel‟O Pasquim teve respaldo e permaneceu relevante para os agentes que integravam os campos de produção simbólica em que o jornal exerceu sua dominação, há muito mais a se falar quando se trata da música popular e seu poder de construção de memória, levando-se em consideração o fato de que ela pode ser acessível a um número incomparavelmente maior de pessoas, em qualquer época.

Essa característica torna a música um trunfo considerável nas lutas simbólicas, por possuir maior poder para garantir que o conhecimento acumulado seja armazenado, a fim de atingir a própria geração e as que vierem em seguida. É notável que uma música gravada por Caetano, Gil ou Simonal seja acessível a um número bem maior de pessoas do que qualquer edição d‟O Pasquim. Em parte por isso, esses artistas são, hoje, mais lembrados pelo grande público do que o tabloide humorístico.

Para que as potencialidades comunicativas da música sejam melhor compreendidas, é necessário que se entenda o lugar que a música brasileira ocupava dentro do campo cultural, durante o período em que aconteceram os eventos tratados nesta pesquisa. Há especificidades, principalmente o momento em que a sigla MPB foi criada, assim como os artistas que ela abarcava e o público a que ela se dirigia. Essas aparentes limitações tornaram a MPB ainda mais eficiente como meio de transmissão de conhecimento e de construção de memória. E, sobretudo, contribuiram para se analisar a permanência da memória construída por ela.