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Como costumava fazer semanalmente, o jornal transmitiu para o restante do país algo que já se comentava nas rodas boêmias de Ipanema. Na edição número 114, de 7 a 13 de setembro de 1971 – que foi às bancas menos de duas semanas após a denúncia do sequestro de Viviani pelos policiais do Dops –, o tabloide ilustrou metade de uma das páginas internas com a enorme figura de uma mão negra cujo dedo indicador apontava para a direita (figura 18). Logo abaixo, um texto dizia:

O Pasquim, num esforço de reportagem superior ao dos descobridores do corpo de Dana de Teffé, conseguiu também exumar a mão de Wilson Simonal e aqui apresentar – naturalmente em primeira mão – a fotografia de seu magnífico e erecto dedo. Como todos sabem, o dedo de Simonal é hoje muito mais famoso do que sua voz. A propósito: Simonal foi um cantor brasileiro que fez muito sucesso no País ali pelo final da década de 6082.

Figura 18 – Um dedo aponta para o ostracismo.

Nota-se que o jornal trata o cantor como um morto. E a imagem é bem apropriada para o que lhe ocorreria daí por diante: algo como sobreviver para testemunhar, passo a passo, a própria “morte”. Mas esse testemunho apenas começava. A ojeriza à prática da “deduragem” era anterior a O Pasquim: vimos que Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, já a encampava antes do AI-5, em seus Febeapás. E, como o jornalista era para a “patota” um patrono, o tabloide de Ipanema tornou-a uma de suas bandeiras. Dessa forma, Simonal transformou-se, nas páginas do jornal, em sinônimo de “delação”.

A edição número 115, de 14 a 20 de setembro, já trazia Henfil – nosso já conhecido “ponta-esquerda” d‟O Pasquim – empenhado em combater o regime militar tendo, como estratégia, a sátira a Simonal. Seu personagem Tamanduá, descrito como “a besta do apocalipse que assola o nosso torrão”, dedicava-se a sugar o cérebro de pessoas identificadas como defensoras ou aliadas do regime. Sua vítima, nesse número, foi Simonal. Dizendo ter vontade de tornar-se um cantor, o Tamanduá decide sugar o cérebro do artista com essa finalidade: tornar-se igual a ele e poder cantar “Meu limão, meu limoeiro”.

Para conseguir seu intento, o personagem arma uma emboscada: esconde-se atrás de uma esquina e atira uma moeda na direção de Simonal – o que lhe desperta, subitamente, o impulso de se jogar para apanhá-la. Aproveitando-se de sua distração, o bicho lhe suga o cérebro pelo ouvido. Só que, ao invés de obter-lhe o talento vocal, o cérebro sugado tem um efeito diferente: endurecem-lhe os dedos, a língua, os braços, as pernas, enfim, todas as extremidades do corpo (figura 19).

Figura 19 – Um cérebro „sugado‟ e subjugado.

Além do evidente estigma de “dedo-duro”, Henfil debocha do interesse de Simonal por dinheiro. Afinal, até bem pouco tempo antes, ele mantinha um fabuloso contrato com a Shell, o que o tornou um dos artistas mais “caros” do país.

Henfil volta a citar Simonal na mesma história em quadrinhos devido a um episódio ocorrido em 8 de novembro no Teatro Opinião, no Rio de Janeiro. Convidado para se apresentar numa noite de samba, Simonal recebeu uma sonora vaia do público. Alexandre sustenta que o motivo das vaias não foi político, e sim estético. Relata o autor:

As vaias, apesar de sectárias, não tinham nada a ver com política. “Isso aqui é um terreiro do samba e fica aparecendo esses cantores de iê-iê-iê”, reclamou um jovem a O Jornal. Nenhum grito de “dedo-duro” foi ouvido da plateia, mas sim coisas como “fora, Shell!” (ALEXANDRE, 2009, p. 210).

No entanto, Henfil publicou uma nova história, em que as vaias são associadas diretamente à fama de “delator”: o cantor corre em direção ao Tamanduá e lhe pede socorro, enquanto o “povo” – a plateia – lhe vaia e atira objetos. A “besta do apocalipse” relembra de

quando lhe sugara o cérebro, pois tivera “uma intoxicação” de quinze dias. O cantor chora e lamenta que o público não tenha querido lhe ouvir, nem lhe tenha deixado cantar.

Tamanduá diz não acreditar, já que o artista era um “ídolo”, e o empurra de volta ao palco, pois quer “ver pra acreditar”. O artista faz um comentário simbólico: “Ô meu Deus, o que o Chico Buarque tem que eu não tenho?” Simonal tenta cantar “Meu limão, meu limoeiro” e “País tropical”, mas as vaias não deixam que ele continue. De repente, a plateia irrompe em aplausos efusivos. Tamanduá comemora, pois Simonal conseguiu “o aplauso do povo”. Mas, como está de costas para o cantor, não percebe que o público o aplaude porque ele está com uma arma apontada para a própria cabeça... (ALEXANDRE, 2009).

Naquele mesmo ano de 1971, na edição número 117, de 28 de setembro, Simonal tornou-se garoto-propaganda do Detran – pelo menos nas páginas d'O Pasquim. Claro que era um novo deboche, desta vez por parte de Ziraldo. Como o órgão responsável pelo trânsito havia iniciado uma campanha que incentivava cidadãos comuns a entrar em contato com sua equipe para denunciar motoristas que cometiam infrações, informando-lhe os números das placas dos automóveis, o cartunista mineiro “desenhou cartuns nos quais a mão negra de Simonal apontava para motoristas desrespeitosos” (ALONSO, 2011, p. 292).

Na edição de 28 de dezembro, que fez uma espécie de retrospectiva de 1971, a “patota” voltou à carga contra Simonal: elegeu-o entre “os piores do ano” e tascou-lhe o nome de “Wilson Simancol” (ALONSO, 2011, p. 292). E, em outra edição, a de número 155, lançada em junho de 1972, Henfil continua a se valer do capital simbólico d'O Pasquim para estigmatizar Simonal. Desta vez, com outro personagem: o Cabôco Mamadô, cuja missão era enterrar, em seu “Cemitério dos Mortos-Vivos”, somente pessoas vivas, que tinham em comum uma postura considerada colaboracionista diante do regime militar – fosse apoiando- o, prestando-lhe elogios, participando efetivamente ou optando pela indiferença. Na opinião de Henfil e d'O Pasquim, Simonal poderia ser encaixado em todos esses pré-requisitos – e, pior ainda, por estar, segundo as acusações, “dedurando” colegas. No caso dessa edição, Simonal foi “enterrado” ao lado da apresentadora de TV Hebe Camargo e de “inimigos” permanentes da “patota”, como Flávio Cavalcanti, Nelson Rodrigues e Gustavo Corção (HENFIL, 1972, apud AUGUSTO e JAGUAR, 2007, p. 44).

Espero, a esta altura, já ter deixado suficientemente claro que o objetivo desta pesquisa não é estabelecer a quem caberia a maior parcela de culpa pela decadência da carreira de Simonal – se O Pasquim ou o próprio cantor, ou os militares ou quem quer que seja. Reitero que não há aqui a pretensão de dar uma resposta definitiva sobre se o artista foi realmente um “dedo-duro” ou apenas um homem que se julgou esperto demais. O objetivo é desenvolver

uma análise para se compreender as lutas simbólicas aqui apresentadas – a de Gil e Caetano e a de Simonal, ambas com O Pasquim – sob o referencial teórico já mencionado. É o que continuará a ser feito no terceiro e último capítulo, no qual passaremos a uma espécie de balanço de tudo o que foi pesquisado. É também neste momento que resgataremos a frase que definimos como “simbólica” no cartum de Henfil: o questionamento feito por Simonal – “Meu Deus, o que o Chico Buarque tem que eu não tenho?”

A partir de um olhar sobre esse período histórico, tendo como base o que ocorria na cena musical brasileira, defendemos que Chico Buarque não era o único a ter, naquele momento, algo que faltava a Simonal.

4 A CONSTRUÇÃO DE MEMÓRIA