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Essa nova forma de manifestação da imprensa, também chamada de “nanica”, surgiu como consequência direta dos métodos que o regime autoritário empregara para assegurar a disseminação de sua visão da “realidade” entre a população. Com a chamada grande imprensa submetida à censura – sem contar os órgãos de comunicação que eram abertamente simpáticos à nova ordem e, por isso, praticavam a autocensura, sem que o Estado precisasse

intervir para garantir sua subserviência – os jornalistas mais críticos se viram na necessidade de buscar outros caminhos para se expressar, alternativos àquele representado pela imprensa convencional. Dessa forma, de acordo com Kucinski (2003), cerca de 150 publicações alternativas surgiram e desapareceram entre 1964 e 1980.

Em sua maioria, essas publicações adotavam o formato tabloide, bem menor que o tamanho standard6 utilizado pelos jornais convencionais – que, talvez por isso, eram pejorativamente chamados de “jornalões”. Além do formato, tinham em comum a oposição visceral ao regime militar – o que os tornava vítimas em potencial da censura e de outras formas de ameaça explícita por parte do Estado – e o fato de terem quase que a totalidade de suas receitas provenientes das vendas em bancas.

Além disso, era comum entre esses jornais a retratação da ditadura como uma representação do “imperialismo” norte-americano e, portanto, do sistema capitalista internacional. Outra característica notável: uma aversão a qualquer forma de busca por lucros a partir dessa militância jornalística. Kucinski explica: “Era algo que se originava do imaginário mesmo das esquerdas e da juventude da época, na sua oposição geral, não só ao regime militar, mas ao próprio capitalismo. Movia-os, ao contrário, um espírito anticapitalista” (KUCINSKI, 2003, p. 19).

De sua parte, o regime militar, amparado pela Doutrina de Segurança Nacional, levava às últimas consequências a estratégia de eliminar tudo o que pudesse ser identificado como “inimigo interno”, – definição que abarcava também os jornais alternativos. Exercendo seu poder de nomeação oficial, o Estado militar classificava-os como “'organizações de frente' do comunismo internacional, que tinham por tarefas 'isolar o governo' e 'difundir o marxismo'” (KUCINSKI, 2003, p. 14).

A dependência crônica dos jornais alternativos às vendas avulsas seria identificada por terroristas de direita como uma eficiente estratégia de combate a esses “inimigos internos”. Já no fim da década de 70, em meio ao arrefecimento da censura, o processo de “abertura” controlada transcorria em meio a uma disputa de poderes na caserna. Contrários a essa tendência liberalizante, e favoráveis a um novo recrudescimento do regime, militares da linha dura encontraram no terrorismo uma forma de sabotar os planos de Geisel: passaram a promover atentados a bomba contra bancas de jornal que comercializassem publicações alternativas. Com isso, muitos donos de bancas começaram a se recusar a receber essas

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No formato standard, que costuma ser utilizado por jornais de maior circulação, a área total do papel, depois de impresso, é de 56 por 32 centímetros. O formato tabloide possui exatamente a metade desse espaço. Disponível em: http://diagramaacao.blogspot.com.br/2009/12/formatos-de-jornais.html. Acesso em: 30 de julho de 2015.

publicações, por receio de serem atingidos por esse tipo de violência. A opção terrorista decretou o fim da linha para muitos jornais alternativos – e apressou, por conseguinte, o fim do ciclo alternativo propriamente dito.

Kucinski (2003, p.13) identifica na palavra alternativa quatro significados fundamentais para se definir esse tipo de imprensa:

O de algo que não está ligado a políticas dominantes; o de uma opção entre duas coisas reciprocamente excludentes; o de única saída para uma situação difícil e, finalmente, o do desejo das gerações dos anos de 1960 e de 1970, de protagonizar as transformações sociais que pregavam.

O autor classifica os jornais alternativos em dois grandes grupos, de acordo com suas linhas editoriais. De um lado, havia aqueles predominantemente políticos, fortemente influenciados pela ideia de “nacional-popular”, a mesma que conhecemos há pouco como o fio condutor do pensamento de esquerda que predominou nos meios intelectuais e artísticos brasileiros no período pré-1964. Possuíam linguagem pedagógica e dogmática, por meio da qual exprimiam um “marxismo vulgarizado dos meios estudantis nos anos de 1960” (KUCINSKI, 2003, p. 14). Em tom sério, denunciavam o endividamento externo provocado pela política econômica do regime militar e o agravamento das desigualdades sociais – os quais, como já dissemos por intermédio de Ridenti (2000), eram dois dos principais reflexos da modernização conservadora prezada pelos militares. A postura contestadora em relação ao discurso oficial se manifestou até mesmo nos momentos em que o governo, por meio de campanhas publicitárias triunfalistas, apregoava os indicadores supostamente positivos do crescimento econômico do país.

No outro grupo de jornais alternativos, podiam ser incluídas as publicações mais ligadas aos movimentos de contracultura, então em voga em países como os Estados Unidos e a Inglaterra, e incipientes no Brasil. Traziam influências orientais, anarquistas e existencialistas e rejeitavam o discurso dogmático e ideológico presente nos jornais classificados no primeiro grupo. Os jornalistas que os produziam incorporavam as experiências que relatavam nessas publicações, e se deixavam influenciar por experimentações com drogas como o LSD, à procura de “novas formas de percepção” (KUCINSKI, 2003). No entanto, apesar de não adotarem o dogmatismo panfletário manifestado pelas esquerdas mais ortodoxas, esses jornais mantinham a mesma postura de oposição intransigente à ditadura.

É nesse contexto, o da luta pela liberdade de expressão por meio da imprensa alternativa, que surge a publicação mais longeva do período, e que posteriormente se

afirmaria também como a mais emblemática: O Pasquim, tema a partir do qual se desenvolve este trabalho de pesquisa. O tabloide destacou-se de forma tão intensa por diversos motivos, que conheceremos nas próximas páginas, mas entre os quais podemos adiantar a capacidade de sintetizar características que podiam ser atribuídas aos dois grandes grupos descritos por Kucinski (2003). Ao mesmo tempo em que continha raízes no “nacional-popular”, também foi pioneiro em divulgar elementos da então desconhecida contracultura por meio da coluna

Underground, sob a responsabilidade de Luiz Carlos Maciel. Mas seu principal chamariz era

o discurso humorístico, possibilitado por uma mescla de jornalistas e cartunistas.

O grupo de profissionais que atuava no jornal foi também responsável por promover inovações que seriam levadas em consideração pelas gerações posteriores do jornalismo – e que acabariam sendo absorvidas, até mesmo pela chamada “grande imprensa”, que, naquele momento histórico, não era vista como uma aliada dos alternativos. Kucinski (2003, p.15) defende que O Pasquim, em contraposição ao moralismo e à seriedade que caracterizavam os jornais brasileiros naquele final dos anos 60, “detonou um movimento próprio de contracultura, transformando as linguagens do jornalismo e da publicidade, e até a linguagem coloquial”.

O Pasquim mudou hábitos e valores, empolgando jovens e adolescentes nos anos de 1970, em especial nas cidades interioranas que haviam florescido durante o milagre econômico, encapsuladas numa moral provinciana (KUCINSKI, 2003, p. 15).

Tendo antecipado o contexto no qual foram dadas as condições para o surgimento d'O

Pasquim, veremos agora como se deu a fundação desse jornal de humor que, dentro de pouco

tempo, ocuparia um lugar de grande destaque em meio às lutas simbólicas ocorridas num ambiente que, a julgar pelos acontecimentos que relatamos aqui, não se mostrava convidativo ao riso. Nascia, assim, um tabloide debochado e disposto a reunir um grupo de jornalistas e cartunistas para ridicularizar o moralismo da classe média e, na medida em que fosse possível (indiretamente), falar mal do governo, em plena vigência do AI-5. Essa atitude seria descrita, décadas depois, por Jaguar, com fina ironia: “Só tem uma explicação: privação coletiva dos sentidos” (AUGUSTO; JAGUAR, 2006, p. 8).

Analisando o jornal que ajudou a fundar, décadas depois, Claudius Ceccon (1999) ainda demonstra surpresa com a ousadia da turma da qual fez parte:

Estávamos no ano de 1969, em plena vigência do AI-5, que havia suspendido todos os direitos das pessoas. Podia prender quem quisesse, não

dar nenhuma satisfação, desaparecer com as pessoas, censurar, torturar, matar, que ninguém ficaria sabendo. É nesse clima que um bando de malucos resolve fazer um jornal de oposição7.