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2 HOMENS EM DIFERENTES ESPAÇOS DE INTERLOCUÇÃO

2.2 Parte 2 Contextualizando

2.2.1 Breve Histórico das (Trans)sexualidades após as Scientias Sexualis

Entre os séculos XVIII e XIX, houve um crescente aumento de poder dos saberes científicos, enquanto as ideias religiosas foram perdendo lugar para explicar sobre a vida e os fenômenos sociais - no entanto, não perderam sua influência (FOUCAULT, 2007). Isso fez com que esse período fosse marcado por inúmeras transformações sociais, culturais e políticas.

A ciência passou a estudar os corpos sexuais e definiram elementos fundamentais para estabelecer o que era considerado a normalidade ou uma patologia sexual. As relações afetivo-sexuais entre pessoas com sexo biológico e gênero diferentes, o que hoje entendemos como heterossexualidade, passou assim a ser vista como a única prática e vivência sexual "normal". As manifestações sexuais que “fugiam às leis naturais”, passaram a ser estudadas pela ciência e foram vistas como uma ameaça à saúde pública e também, é claro, uma ameaça à 'moral e aos bons costumes' (BRASIL, 2015).

Esses discursos sobre a sexualidade foram responsáveis pela constituição do saber psiquiátrico no século XIX, baseado no que era naturalizado sobre o sistema sexo-gênero, sustentando o modelo 'heteronormativo'. Algumas teorias consideraram a homossexualidade como doença ou perturbação resultante de disfunções psíquicas ou desequilíbrios hormonais, muitas vezes a homossexualidade apresentava também o que se entendia por “inversão sexual”. Acreditar que uma pessoa era “invertida” significava que por ela desejar sexualmente pessoas de seu mesmo sexo/gênero ela se identificava de alguma forma com o sexo/gênero oposto, isso fazia com que acreditassem que homossexuais desejavam ter o sexo oposto. O que hoje é considerado como homossexualidade e transexualidade, era visto antes como

17 Para escrever essa parte do trabalho, além das leituras citadas durante os tópicos, foi importante a minha

participação como aluna do Curso da Universidade Aberta do SUS- UNA SUS, “Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais”, produzido pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), um curso na categoria de qualificação profissional, com carga horária de 45 horas (BRASIL, 2015).

manifestações de um mesmo fenômeno (BRASIL, 2015).

Essa visão científica da época estimulou a descriminalização da homossexualidade em vários países ocidentais, pois existiam leis punitivas e de reprovação moral - como até hoje ainda existem em alguns países orientais. Porém esses saberes continuavam considerando a homossexualidade como algo que precisasse de tratamento ou correção. Os homossexuais saíram das prisões para os hospitais e hospícios. Esses procedimentos para tratar a homossexualidade incluíam a administração compulsória de hormônios, de medicamentos ou até mesmo choques elétricos (BRASIL, 2015).

As práticas sociais desempenham papel de organizar, regular e legitimar práticas sexuais, inclusive por meio da ciência, da medicina, da pedagogia e do direito. E essa legitimação na saúde se expressa nas práticas, nas ideias dos profissionais de saúde e na medicalização dos corpos. Parker (2000) enfatizou que as práticas de saúde têm sido um espaço de medicalização do cuidado a partir do saber médico e da visão do corpo biológico. Não reconhecendo práticas de cuidado inerentes ao cotidiano das pessoas, e isso reforça os modelos de assimetria de classe, gênero, raça/etnia numa perspectiva subordinadora e não emancipatória, não integrativa, faz com que esses saberes muitas vezes se tornem autoritários e prescritivos - como principalmente o eram nos séculos passados. As primeiras experiências cirúrgicas com transexuais aconteceram na segunda metade do século XIX, após a descoberta dos hormônios sexuais. A partir disso, os cientistas passaram a pesquisar a essência do sexo, do gênero e da sexualidade. Houve, em 1910, as primeiras experiências de mudança de sexo, em animais, pelas pesquisas do fisiologista austríaco Eugen Steinach. Nesse mesmo ano, o professor de Steinach, Magnus Hirschfeld, inaugurou as publicações sobre o tema da mudança de sexo, em humanos, com o livro intitulado “Die Transvestiten”. Neste livro, ele separou as formas de homossexualidade e caracterizou o transvestismo como uma prática não homossexual. Já em 1923, ele utilizou a formação transexual-psíquico (CASTEL, 2001).

Antes dos anos 1920, as cirurgias experimentais, de modificações sexuais foram escassas e se concentraram principalmente na Europa. As cirurgias completas de transformação genital foram iniciadas entre as décadas de 1920 a 1930 e são atribuídas a

Hirschfeld e à equipe do Instituto de Ciência Sexual, em Berlim (CASTEL, 2001). No artigo intitulado “Psychopatia Transexuallis”, de David O. Cauldwell, de 1949,

ele utilizou, pela primeira vez, uma referência à palavra transexual para identificar o indivíduo que demanda uma mudança de sexo. Ele acrescentou que a transexualidade seria caracterizada por um desejo mórbido-patológico de pertencer ao sexo oposto e pela necessidade de realizar

a cirurgia para modificação do sexo. Segundo o autor, esta condição era fruto da pobreza e de um ambiente desfavorável na infância. Em sua opinião, o desejo de ser membro do outro sexo deveria ser definido como uma doença mental. De acordo com Meyerowitz (2002), outra novidade de Cauldwell, é que esse entende a psychopathia transexualis, como uma categoria sexual independente da intersexualidade e de outras patologias glandulares (CASTEL, 2001). Harry Benjamim, em 1953, herdeiro da tradição européia, iniciada por Hirschfeld e Steinach, volta a utilizar o termo “transexual”. Mas Benjamin diferencia o fenômeno transexual das perversões e psicoses, e afasta da possibilidade de esse ser um transtorno psíquico. Benjamin recomenda a cirurgia de redesignação transexual, que seria a saída terapêutica para o conflito entre corpo biológico e corpo psíquico. Ele cria uma definição para o transexual autêntico que, entre outras coisas, deveria incluir: “a vivência de uma inversão psicossexual total”, “ódio pelos órgãos masculinos”, “um intenso mal-estar de gênero”, e

“uma urgência pela cirurgia” (BENTO, 2006, p. 152). Berenice Bento (2006) apontou dois teóricos que apresentaram critérios para o

diagnóstico do que seria o “transexual verdadeiro”, um que se fundamenta na estrutura biológica, o já citado, Harry Benjamin, que foi endocrinologista e psiquiatra, e outro, que se fundamenta na psicanálise, Robert Stoller.

Houve muito empenho científico em separar características sexuais primárias, caracteres biológicos, das características sexuais secundárias (roupas, maneirismos, diferenças de caráter). Na época, essa separação foi denominada como sexo anatômico e sexo funcional, que esteve por algum tempo em voga (ARAÚJO, 2010). Antes disso, práticas e desejos masculinos e femininos eram definidos pelo conceito de sexo e referidos ao processo anatomobiológico, que afirmava a lógica heteronormativa (BUTLER, 2004).

Nessa época, alguns estudos antropológicos estavam sendo realizados e questionavam essa suposta determinação da natureza, em se tratando do sexo biológico e da vivência da pessoa enquanto pertencente àquele sexo/gênero, como os estudos de Margaret Mead, em 'Sexo e Temperamento' (1935)18, 'Adolescência, Sexo, Cultura em Samoa' (1928)19, entre outros, como os relatórios Kinsey, 'Sexual Behavior in the Human Female'' (1953, reeditado em 1998), ou mesmo, Simone de Beauvoir, com 'O Segundo Sexo' (1949), a ideias de “roteiros sexuais” e as críticas aos relatórios Kinsey, desde 1973, por Gagnon (SIMMON e GAGNON, 1984), entre outros. Alguns desses livros são marcos nos estudos de gênero e feminismo.

18 Sexo e Temperamento. São Paulo, Perspectiva, 1969.

Desde 1952, a Associação Americana de Psiquiatria (APA), publica o 'Diagnostic and

Statistical Manual of Mental Disorders' (DSM). Na primeira versão, o DSM – I, de 1952,

desvio sexual foi apresentado como um comportamento patológico, classificado em “transtorno de personalidade sociopática” do grupo dos “transtornos de personalidade”. O comportamento patológico é que definiria o desvio: a homossexualidade, o travestismo, a pedofilia, o fetichismo e o sadismo sexual. O DSM-I se orientava por uma vertente da psiquiatria inspirada na teoria psicanalítica (BRASIL, 2015). Já no DSM – II, de 1968, os “desvios sexuais” se dividem em quatro subgrupos: a desordem de personalidade; os desvios sexuais; o alcoolismo; e a dependência de drogas. A descrição do subgrupo “Desvios Sexuais” é explicitada de forma mais clara e tem a heterossexualidade como padrão de normalidade (SAMPAIO, 2012).

No DSM-III, em 1980, o termo „desvio sexual‟ foi substituído por “transtornos psicossexuais”, subdivididos em: transtornos da identidade de gênero, parafilias, disfunções psicossexuais e outros transtornos psicossexuais. Já o DSM-IV, de 1994 e atualizado em 2000, continuou patologizando a transexualidade, classificando-as dentro do diagnóstico de "transtorno da identidade de gênero”, a homossexualidade não se inclui mais como doença (SAMPAIO, 2012).

No DSM-V, publicado em 2013, voltou a ser “Disforia de Gênero”, porém, nesta última versão, ressalta-se que “é importante notar que a não conformidade de gênero não é, em si, uma desordem mental. O elemento crítico de disforia de gênero é a presença de sofrimento clinicamente significativo associado à condição” (APA, 2013, p. 1). Mesmo com essa modificação para ter acesso à saúde, ainda hoje, são necessários laudos e um tratamento que não reconhece a autonomia dos sujeitos. Ou seja, não houve efetivamente a despatologização.

As categorias distintas - sexo, gênero e sexualidade - se apresentaram no final do século XX. O sexo biológico é constituído pelas características fenotípicas (órgãos genitais e órgãos reprodutores), fisiológicas (distribuição diferencial dos hormônios sexuais) e genotípicas (genes) presentes nos corpos, e a partir dessas características que esses são assignados como de homem ou mulher, ou macho ou fêmea; o gênero diz respeito à masculinidade, à feminilidade e aos comportamentos associados e construídos histórico, social e culturalmente e a sexualidade se refere mais à conotação erótica do sexo. Para Castel (2001), a visão atual tira da transexualidade o atributo patológico, uma vez que as condutas transexuais não podem ser consideradas anômalas ou patológicas, pois as pessoas transexuais têm consciência de sua condição.

Pode-se dizer que a fundamentação deste fenômeno na atualidade está baseada em dois dispositivos distintos. O primeiro diz respeito ao avanço da biomedicina na segunda metade do século passado - principalmente no que se refere ao aprimoramento das técnicas cirúrgicas e ao progresso da terapia hormonal - que faz do desejo de “adequação” sexual uma possibilidade concreta. O segundo concerne a forte influência da Sexologia na construção da noção de “identidade de gênero” como sendo uma “construção sócio-cultural”, independente do sexo natural ou biológico (ARÁN, 2006, p. 7).

Hoje, pode-se afirmar que transexuais e travestis são sujeitos que se constituem subjetivamente como indivíduos pertencentes a um gênero oposto àquele que foi assignado ao nascer, ou seja, tem o gênero diferente do que foi naturalizado para o seu sexo de nascimento. Considera-se sexo, gênero e sexualidade como construções históricas, que dependem de um determinado modelo de cultura e concordar que deve haver, como uma norma, a linearidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo, seria desconsiderar as condições históricas, culturais e políticas que produzem/produziram as patologias. E que com o tempo, além de concepções biomédicas, se transformam em opinião pública, sendo adotados por sistemas

jurídicos, científicos e educativos no contexto ocidental. A diferença fundamental - para alguns teóricos e militantes LGBTs - entre transexuais

e travestis, reside no fato dessas últimas sustentarem uma ambiguidade ou duplicidade de gênero na própria afirmação identitária. Porém, pesquisas etnográficas com travestis apontam para o fato de que muitas optam por transformações nos caracteres sexuais secundários, de maneira permanente e se auto-identificam como pertencente ao gênero feminino, também de maneira permanente, podendo optar por realizar ou não cirurgias de transgenitalização20. O presente trabalho adota uma visão de que as experiências são singulares, e o mais importante é valorizar a autonomia e reconhecer a autodeterminação de gênero, seja nas instituições de saúde ou na sociedade de forma geral.

2.2.2 Sobre o Processo Transexualizador no Brasil

As cirurgias de transgenitalização no Brasil ocorreram antes mesmo da sua

20 Também chamada de cirurgia de redesignação genital/sexual, é o procedimento cirúrgico por meio do qual

se altera o órgão genital da pessoa para criar uma neovagina ou um neofalo, que comumente vem acompanhada de procedimentos complementares sobre gônodas e caracteres sexuais secundários. De acordo com informações fornecidas pelo Ministérios da Saúde (http://www.portalsaude.saude.gov.br), já foram feitos 6.724 procedimentos ambulatoriais e 243 procedimentos cirúrgicos nos serviços do PTSUS do Brasil. Há 5 centros que fazem o processo transexualizador no país, além do Hospital das Clínicas- HC da Universidade Federal de Pernambuco, há no HC de Goiás, Porto Alegre, São Paulo e Rio Grande do Sul. A idade mínima para iniciar o processo é de 18 e para realizar a cirurgia de 21 anos.