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2 HOMENS EM DIFERENTES ESPAÇOS DE INTERLOCUÇÃO

3.3 Narrativas sobre Corpo

A pergunta inicial do roteiro de entrevista foi uma pergunta disparadora, relacionada ao corpo: “O que levou você a tomar a decisão de fazer modificações corporais?” (feita se o interlocutor respondeu positivamente, nas perguntas de contextualização, se está inserido no PTSUS), é uma questão que se relaciona a vários temas. Entretanto, a principal intenção foi entender os motivos sobre a decisão de masculinizar o corpo e qual seria essa visão sobre masculinização do corpo, além de, também, iniciar a temática sobre a auto-identificação como (trans) e os desafios para serem reconhecidos na sociedade como homem (trans). Notou-se que essa masculinização se refere às modificações corporais que tornem o homem (trans) com uma maior passabilidade cis, ou seja, para que ele seja reconhecido pelas pessoas no gênero em que ele se identifica. Então, para isso a masculinização seria o processo de transexualização, em modificando principalmente caracteres secundários do sexo, tornando a aparência reconhecida como masculina; o uso da Testosterona, a realização de algumas cirurgias, a utilização de algumas tecnologias - como binders46, packers47 - entre outras

coisas, se mostram cruciais para alguns homens (trans) no processo de transexualização.

“Aí quando foi em 2010, eu acho eu comecei a procurar na internet onde é que a gente se adequava, o corpo à mente né, o corpo... “eu não me sinto bem com o peito, eu não me sinto...”, o genital, não é que eu não me sinta bem, ehh eu trato ele como se tivesse amputado uma perna eu tento me adequar ao que eu tenho, você tá entendendo... Eu não tenho uma perna, eu vou usar uma prótese né, pra suprir a necessidade da perna, pronto, eu faço a mesma coisa com meu genital. Já o peito me incomodava pra ****, aí foi quando eu procurei saber como é que faria, procurei médicos aí, foi que eles me indicaram “olhe, não pode ser assim que vai tirar o peito logo não, você vai ter que participar de um processo”, aí ele me explicou todo o processo, foi quando eu procurei na internet, o primeiro trans que eu conheci assim foi o *******, que é lá do Espaço Trans” (Matheus, 35 anos).

“O que me levou foi a vontade de ter realmente essa aparência mais masculina né, dita masculina, porque antigamente a voz antes de iniciar o tratamento, é muito complicado, porque você passa... você não passa por um homem, tipo assim, nas ruas, se você comprar alguma coisa, alguma comida, pedir alguma informação, sempre te tratam como senhor, sei o que lá, também pela voz, pelas características realmente que

46 Peça de roupa que altera, minimizando, a aparência das mamas. A prática do binding, se usado de forma

errônea pode causar sequelas no corpo da pessoa, dores, sangramento entre outras, por isso, o binder deve ser usado com cuidado.

ainda são bem ditas femininas, é meio complicado, o que me levou... e também a questão de querer ter aquela aparência né, além da questão social também que me chateava muito, que é ter sempre o tratamento no feminino, questões de querer ter a aparência, de querer ter barba, de querer ficar um pouquinho menos magro do que era e a aparência mais masculina mesmo” (Roberto, 29 anos).

“Porque assim, você fica né, com aquela coisa né, que é lésbica né, pra sociedade, a sociedade vê que você é como lésbica e eu não sou lésbica, eu não me acho assim, tá entendendo? Aí você fica naquela, “ahh não sei o quê” é muito chato isso. Então, você entrando pra fazer essa coisa toda, você muda aparentemente e se reconhece melhor né” (Lélio, 39 anos).

A maioria dos homens (trans) expressou a vontade de ter características físicas consideradas masculinas pela sociedade, encontradas em homens cisgênero, que muitas vezes são consideradas expressões de masculinidade: ter barba, músculos desenvolvidos, ter um peitoral masculino, voz com um timbre mais grave, cabelo curto, entre outras. Apesar de todos desse contexto estarem no Processo Transexualizador do SUS, alguns começaram o acompanhamento há pouco tempo e não fizeram uso da Testosterona ainda. Para ter essas características, são necessárias cirurgias, como a mastectomia ou mamoplastia48 e a faloplastia ou a metoidioplastia49, a histerectomia e/ou a ooforectomia50. Contudo, mesmo sem fazerem tais cirurgias, alguns interlocutores afirmaram que é comum se referirem aos próprios órgãos sexuais e genitais com o nome dos órgãos designados como masculinos, muito por conta das mudanças que ocorrem após o uso da Testosterona sintética51, para os que já a utilizam.

Mas nem todos os homens (trans) sentem o desejo de passar por todo esse processo, pois afirmam não precisar dessas modificações para se sentirem bem consigo mesmos ou realizados com sua aparência física e nem acham necessário passar por esse processo para ser reconhecido como homem socialmente, isso depende da vontade, biotipo, decisão e autonomia de cada um. Assim como também há questões de saúde que interditam o uso da testosterona: problemas no fígado, problemas cardíacos, estando em tratamento de doenças como câncer, obesidade mórbida, entre outras. Nesses casos, não se costuma permitir que o

48 Retirada das mamas, em sendo a mamoplastia uma técnica cirúrgica mais preocupada com o resultado

estético, do que a mastectomia.

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Técnicas de construção de neofalo, já citada no presente texto.

50 Histerectomia é a remoção cirúrgica do útero, a histerectomia total é a retirada do corpo e do colo do útero.

A ooforectomia ou ovariectomia é a remoção cirúrgica de um (unilateral) ou ambos (bilateral) ovários.

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Também chamada de “T”. Existem várias origens, laboratórios, preços, e produtos relacionados, alguns bastantes apontados nas entrevistas foram: Durateston, Nebido, Deposteron e Cipionato. O preço do hormônio geralmente é caro existem laboratórios que interditam preços promocionais a homens (trans), permitindo apenas a homens cisgêneros. Há poucas pesquisas sobre o efeito desses hormônios em homens (trans), esses dependem do compartilhamento das experiências de outros e de seus próprios insucessos e sucessos no uso, para orientar suas buscas, uma vez que o atendimento específico no PTSUS não é acessível a todos.

indivíduo faça uso de hormônio, porque há risco de comprometer a sua saúde. Houve interlocutores que relataram ter alguns desses problemas.

“Pretendo fazer tudo, histerectomia, mamoplastia, mas a faloplastia não. E também tomar a T, contando os dias para acontecer isso, quanto mais rápido, melhor será pra mim, né” (Lélio, 39 anos).

“[…] eu até falei com os meninos que tão fazendo cirurgia de “meta...”, eita nem sei falar o nome, aí fica complicado (risos), de faloplastia, que se for para ficar daquele jeito, aquele 'trem' mixuruca, com dois ovinhos pendurados, melhor ficar com essa bostinha que está aqui (risos). E tem uns de Portugal que estavam com o pênis todo retalhado, parecia um Frankstein, não quero não. Nasceu com o natural já né... Mastectomia, histerectomia, esses dois, eu vou fazer com certeza” (Waldir, 38 anos).

“Mas assim a questão de fazer cirurgia peniana, não porque não é a mesma coisa, pode ser que daqui para frente as coisas melhorem, mas por enquanto as que eu já vi, não me agradou não, eu prefiro só a mastectomia” (Jorge, 29 anos).

“É incrível como a gente se amarra tanto, e eu falo do binder, e tem meninos que tiveram a sorte de não nascer com tanto e quase não, e como a gente se amarra tanto para esconder uma coisa que tem homem cis que tem, cara, eu vejo homem cis que tem peitinho, mas peito que eu e tão ali, tão, sabe, de boa assim... já a gente tem que se amarrar pra se sentir mais confortável tal e ser passável né […]” (Roberto, 29 anos).

Todos os homens (trans) expressaram o desejo de fazer a mastectomia ou mamoplastia.

Como disse um interlocutor, Manuel, “a retirada das mamas nos homens é como a retirada do pênis para as mulheres trans”, pois as mamas são uma característica que atribui o estatuto de “mulheridade” aos olhos de quem vê. Chamadas também, na pesquisa, de intrusos, volume, pêndulos, ou seios e peitos mesmo - ou não eram nomeadas - as mamas causam muito desconforto nos homens (trans). E a permanência com essas é apontada como algo que pode deixá-los vulneráveis a violências movidas pela transfobia, seja com um insistente tratamento por 'senhora' - mesmo quando esse se pronuncia no masculino - ou por agressões físicas, estupro corretivo ou a morte. O Brasil, como já apontado, é um país extremamente perigoso à população (trans) e travesti.

Nos trechos acima, é possível observar que os interlocutores têm muitas ressalvas em relação à faloplastia e metoidioplastia. Como ainda são experimentais no Brasil, as cirurgias não são plenamente eficazes. O órgão construído não mantém a sensibilidade, pode ter perda considerável de prazer no ato sexual, dificuldade em ter orgasmo, entre outras questões. Os homens (trans) desse contexto que afirmaram ter vontade de realizar essa cirurgia, disseram que só fariam com a garantia da eficácia do órgão construído. Mas não é só a ineficácia da cirurgia de construção do pênis que é o motivo de alguns interlocutores não quererem fazer:

“Não, não, porque eu passei grande parte da minha vida, que eu pensei “ah não, eu queria ter um pênis”, por que eu pensava que era isso que se formava um homem, só que depois eu fui vendo que não, que tipo, minha vida vai ser muito diferente e realmente não me faz falta, “que massa”, e também a cirurgia é super precária, eu até que se não fosse precária eu não iria fazer, mas em geral tudo isso conta muito, a precariedade, a não eficácia, não é prático, não é usável, é aquele negócio assim pra conformar os teus desejos assim mais crus, tá ligado, “é isso mesmo que tem, ah eu tou **** mesmo, qualquer um...” e como eu não tou nessa situação, aí eu não faço questão. Realmente, eu não pretendo não” (Yuri, 18 anos).

“Seria bom mostrar também que o homem trans não é obrigado a fazer de forma alguma (cirurgia), a entrar no hormônio, e isso não vai fazer com que ele seja menos homem, ele vai ser homem independente de hormônio ou não, a ideia é essa. Porque tem muita gente, principalmente dentro do mundo trans, que tem essa discórdia, entendeu. 'Que os homens trans legítimos são os que tomam T', e nós ainda não” (Manuel, 29 anos).

“É como eu disse lá naquele blog 'uma genitália não me define', porque muita gente fala né, “ah, mas tu é homem, mas na hora que...”. O povo fica se prendendo a isso, se o cara for lá, teve um câncer de próstata e tirou, ele vai deixar de ser homem? […] a mulher teve um problema no útero tirou, vai deixar de ser mulher? Não deixa... […] pra eu ser homem, me sentir homem eu nem tenho que tomar hormônio, só que eu quero que as pessoas enxerguem o que eu enxergo. Isso é a maneira de fazer com que elas enxerguem. Eu ainda não me sinto 100% porque quero fazer algumas coisas, eu quero poder andar sem camisa, eu quero poder tomar um banho de piscina sem camisa, então, às vezes me incomoda ter que usar binder […]” ( Pedro, 33 anos).

A ideia errônea de que toda pessoa transexual deseja fazer a “adequação entre o sexo psicológico e biológico”, influencia em uma série de esteriótipos e preconceitos em relação à vivência das pessoas (trans), e, muitas vezes, cria um modelo de homem (trans) que pode gerar certas hierarquias internas, em que os homens (trans) considerados legítimos, mais verdadeiros, são os que se hormonizam, fizeram mastectomia, histerectomia - ou estão para fazer - ou usam binders, entre outras características, causando tensões entre os que são chamados de “pré-T” e os “em-T” - os que ainda não usaram a “T” e os que estão em uso - pois nunca deixarão de usar se quiseram manter as características físicas consideradas masculinas, dificultando a inserção dos que ainda não fizeram ou não podem fazer o uso. Isso será novamente tratado no quarto capítulo.

3.3.2 Auto-percepção

Essa secção trata principalmente da relação que os interlocutores têm consigo e com o corpo, depois da autodefinição como trans e do processo de transição, que aqui não se refere apenas a masculinização do corpo e modificações corporais, e sim, ao processo de mudança como um todo.

“Eu me sinto bem melhor, eu me sinto mais seguro, confiante, eu tou viajando muito nessa vibe porque quando eu comecei a transicionar, eu viajava muito eu tava sempre no espelho, admirando “caramba, que cara bonito do ****”, eu ficava pensando “Meu Deus, será que tipo, eu sou superegocêntrico, narcisista ou alguma coisa assim?”, foi, é porque realmente, eu sempre me odiei assim, quando passava um espelho, num carro na rua, “caramba, só de olhar pra minha cara assim... ”, eu achava “eu sou terrível, uma pessoa feia”, aí depois eu me liguei que eu me acho muito bonito, me amo, tá ligado, mas depois eu vi que eu não tou me olhando só para simplesmente me admirar, mas é porque eu finalmente eu vi o meu rosto […] aí eu passei 16 anos da minha vida, sem ver a minha cara, “aí eu caramba, que massa”, eu finalmente, eu vejo a minha cara agora […] é como se tivesse usando uma máscara a vida toda e você tira e “caramba” (risos) e eu estou realmente feliz por conta disso […] era como se outra pessoa tivesse vivendo a minha vida e eu não tivesse vivendo, como se minha vida fosse uma peça de teatro e eu esperando o ator principal […] e eu finalmente me vejo e vejo que eu sou o ator principal porque essa é minha vida e as pessoas me veem como o ator principal” (Yuri, 18 anos).

Todos os interlocutores mostraram que o fato de estarem realizados depois de se

reconhecerem como homem e estarem no processo de transição. Muitos interlocutores tinham dificuldade para se verem no espelho e aceitarem sua imagem. Isso dificultava demais a relação intra e interpessoal deles.

Eles mostram que após esse processo, se sentem mais belos, confiantes, têm mais entusiasmo para viver. A percepção sobre si melhorou e isso contribui para o empoderamento desses sujeitos, porque além do nível estrutural e coletivo, é necessário que no nível individual os sujeitos também conquistem confiança e poder para exercerem sua autonomia (LISBOA, 2008; FRIEDMAN, 1996).