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2 A LINGÜÍSTICA COGNITIVA NO CONTEXTO DA LINGÜÍSTICA

2.1 BREVE HISTÓRICO DA LINGÜÍSTICA COGNITIVA

A lingüística cognitiva surge no final da década de 70 e princípio dos anos 80, como uma reação às impropriedades constatadas nos modelos de gramática estritamente formais, em particular, a versão padrão da gramática gerativa (CHOMSKY, 1965). Dois fatores impulsionaram inicialmente sua origem: por um lado, o interesse pelo fenômeno da significação (já evidenciado, aliás, pelo movimento da semântica gerativa) e, por outro, o interesse pela investigação psicolingüística de Eleonor Rosch sobre o papel fundamental dos protótipos no processo de categorização (cf. ROSCH; 1978; ROSCH; MERVIS, 1975). Constitui-se institucionalmente como paradigma científico no início da década de 90, com a criação da International Cognitive Linguistics Association e a realização da primeira International Cognitive Linguistics Conference, além da edição da revista Cognitive Linguistics e da coleção Cognitive Linguistics Research. Mas é ainda durante os anos 80 que nasce e se desenvolve, em diferentes locais e de diferentes formas, graças, sobretudo, aos trabalhos dos norte-americanos George Lakoff (LAKOFF; JOHNSON, 1980; LAKOFF, 1987), Ronald Langacker (1987, 1990, 1991) e Leonard Talmy (1983, 1988). Precisamente duas publicações constituem o marco inaugural desse novo paradigma: o livro Women, Fire and Dangerous Things: What Categories Reveal about the Mind, de autoria de George Lakoff (1987), e, no mesmo ano, o primeiro volume do livro Foundations of Cognitive Grammar de Ronald Langacker. Sinal de sua maturidade é o extenso (e em rápido crescimento) conjunto de publicações e, naturalmente, as obras mais recentes dos três fundadores da Lingüística Cognitiva – Lakoff (LAKOFF; JOHNSON, 1999), Langacker (1999) e Talmy (2000).

A lingüística cognitiva contrasta com a abordagem formalista pela visão da linguagem como parte integrante da cognição, não como uma “faculdade mental” ou “módulo” separado.

Em decorrência, rejeita igualmente um conjunto de princípios atrelados à visão autônoma da linguagem, a saber: (a) a separação entre conhecimento lingüístico (semântico) e conhecimento extralingüístico (pragmático); (b) o postulado saussureano da arbitrariedade do signo lingüístico; (c) a afirmação da discrição e homogeneidade das categorias lingüísticas; (d) a idéia de que a linguagem é gerada por regras lógicas e por traços semânticos “objetivos” e (e) a tese chomskyana da autonomia e da não-motivação semântica e conceitual da sintaxe.

A visão de que a linguagem é uma entidade autônoma remonta ao estruturalismo (SAUSSURE, 1969; BLOOMFIELD, 1933). Nesse modelo, o significado de uma palavra é determinado pelo sistema lingüístico em si, enquanto a percepção, a conceitualização e a interação entre as pessoas são fatores extralingüísticos. Na abordagem gerativa (CHOMSKY, 1986), a linguagem também é vista como autônoma, mas de um modo diferente. A mente humana é concebida como uma estrutura modular e a faculdade de linguagem (um dispositivo computacional que gera as sentenças de uma língua através de regras recursivas sobre séries estruturadas de símbolos, atribuindo sintaxe e semântica) é um módulo específico, um componente autônomo, independente de outras faculdades mentais.

Cabe aqui ressalvar que o embate entre a lingüística cognitiva e a gramática gerativa relaciona-se, sobretudo, ao questionamento dos postulados da versão padrão dessa gramática, em grande parte superados atualmente dentro do próprio gerativismo. A esse propósito, Cuenca e Hilferty (1999) advertem que, para evitar uma simplificação excessiva do panorama lingüístico, é importante considerar que a evolução do gerativismo chomskyano tende a dar uma maior importância aos aspectos do significado e a incorporar em seu objeto de estudo – a partir do conceito de parâmetro – fenômenos relacionados à variação e à tipologia lingüística. Os autores lembram ainda, por outro lado, que o cognitivismo pode se relacionar a outros modelos de gramática gerativa que se caracterizam, desde o seu início, por conferir uma maior importância aos aspectos léxico-semânticos e, em muitos casos, por não aceitar o mecanismo das transformações. Exemplificam essa tendência a ‘gramática de casos’ de Fillmore (1968), a ‘gramática léxico-funcional’ de Bresnan (1978, 1982) e a ‘semântica conceitual’ de Jackendoff (1982, 1990, 1992), entre outras propostas. Acrescente-se que o gerativismo se caracteriza também como uma lingüística cognitiva, no sentido em que aborda a linguagem como fenômeno mental. Nesse aspecto, a diferença entre as duas perspectivas consiste no fato de que, enquanto a lingüística cognitiva toma a linguagem como meio da relação epistemológica entre sujeito e objeto e procura, assim, saber como é que ela contribui para o conhecimento do mundo, a lingüística gerativa considera a linguagem como objeto da relação epistemológica e quer saber como esse conhecimento da linguagem é adquirido (cf.

SILVA, 2004).

Pela importância que atribui aos aspectos funcionais dos fenômenos lingüísticos – em particular, à função categorizadora da linguagem – e por desenvolver uma análise baseada na observação da língua em uso, opondo-se, assim, ao abandono chomskyano da “performance”, a lingüística cognitiva é um tipo de lingüística pragmaticamente orientada, tanto teórica como metodologicamente. Sintoniza-se, de modo particular, com as teses da tradição lingüística funcionalista, de inspiração em Givón, Thompson, Hopper, Traugott, entre outros, que freqüentemente adotam uma perspectiva pragmática para a análise dos fenômenos gramaticais (cf. LANGACKER, 1998). Reciprocamente, essas perspectivas funcionalistas, umas mais, outras menos, também compartilham com a lingüística cognitiva a idéia fundamental de que a linguagem é parte integrante da cognição (e não um “módulo” separado), fundamenta-se em processos cognitivos, socio-interacionais e culturais e deve ser estudada no seu contexto de uso e no âmbito da conceitualização, da categorização, do processamento mental, da interação e da experiência individual, social e cultural. Por essa convergência de idéias, a lingüística cognitiva também se define, de modo geral, como uma teoria funcional, não formal e baseada no uso, daí porque alguns estudos recentes têm-se rotulado como cognitivo-funcionais1.

É funcional porque, ao contrário das gramáticas baseadas em categorias, ante a dicotomia categoria-função, privilegia esta última e não a primeira. Para os cognitivistas, em geral, bem como para os funcionalistas, é a função e o significado que condicionam a forma e não o contrário. Defende-se, pois, que a linguagem é moldada e delimitada pelas funções para as quais serve e por uma variedade de fatores inter-relacionados: ambientais, biológicos, evolutivos, históricos e socioculturais. Nesse sentido, pode-se dizer que tanto os modelos cunhados historicamente como funcionalistas quanto as diversas correntes da lingüística cognitiva representam tentativas de explicar a forma da língua através do uso que se faz dela. Langacker (1998, p. 1) afirma que o movimento da lingüística cognitiva “pertence à tradição funcionalista” e dentro dela se sobressai por enfatizar a função semiológica da língua e o papel central da conceitualização na interação social.

A lingüística cognitiva é um modelo ‘não formal’ – o que não implica que não seja ‘formalizável’ – na medida em que não considera a gramática como “um conjunto de princípios para manipular símbolos sem relação com seu significado” (LAKOFF 1987, p. 462-463). Ao contrário, um dos seus principais objetivos é precisamente determinar como

1 Neste trabalho, optei por realizar uma abordagem cognitivista das construções deverbais X-DOR e, em minha análise, não utilizo categorias específicos do funcionalismo.

aspectos do significado (semânticos e pragmáticos) se inter-relacionam ou se projetam em aspectos formais (fonéticos, morfológicos e sintáticos); daí, o caráter central do conceito de motivação. Os cognitivistas consideram que muitas características da forma lingüística nem são arbitrárias nem são sempre previsíveis a partir do significado, mas são motivadas, na visão de Lakoff (1987), pela estrutura de modelos cognitivos.

Por fim, a lingüística cognitiva é baseada no uso porque sua fonte de dados são as produções reais e não a intuição lingüística. Interessa-lhe estudar a língua real e não uma idealização que pretenda dar conta da capacidade de linguagem. Por essa razão, incorpora em seu objeto de estudo as construções idiomáticas e todos os demais fenômenos que parecem não seguir os princípios “gerais” da gramática, aspectos que no modelo gerativista se consideram como pertencentes ao domínio da performance.

Em síntese, o foco de interesse do cognitivismo são a função, o significado e o uso, o que não implica que se desconsidere a forma, uma vez que esta é o veículo através do qual se manifestam e se concretizam os aspectos do significado. Vê-se, pois, que os estudos autodenominados cognitivistas, assim como os funcionalistas, correspondem a uma inspiração comum e compartilham muitos interesses epistemológicos.

O cognitivismo lingüístico alinha-se às outras ciências cognitivas (Psicologia, Neurociência, Inteligência Artificial, Antropologia, Filosofia etc.), na medida em que assume igualmente que a nossa interação com o mundo é mediada por estruturas mentais. No entanto, a lingüística é por natureza mais específica, já que se ocupa unicamente da linguagem como um dos meios de conhecimento.

A concepção de linguagem como parte integrante da cognição e em interação com outros sistemas cognitivos – percepção, atenção, memória, raciocínio etc. –, favorece a interdisciplinaridade com as outras ciências cognitivas. A lingüística cognitiva incorpora dados relevantes dessas ciências na teorização e descrição da linguagem e, em contrapartida, contribui para o estudo da cognição humana. Através da análise sistemática da estrutura e do uso da língua, procura-se desvendar os conteúdos da cognição humana, e não propriamente a sua estrutura ou arquitetura. Com efeito, a investigação cognitiva da linguagem tem descoberto uma série de estruturas conceituais e pré-conceituais importantes, entre as quais estão o que os lingüistas caracterizam como modelos cognitivos idealizados, metáforas e metonímias conceituais (LAKOFF, 1987), protótipos e esquemas imagéticos (JOHNSON, 1987; TAYLOR, 1995).

De modo mais específico, a lingüística cognitiva caracteriza-se, ainda no quadro da ciência cognitiva, pela importância que atribui à semântica na análise lingüística e por tentar

demonstrar a natureza enciclopédica e perspectivante da significação (LANGACKER, 1993). A primazia da semântica decorre da própria perspectiva cognitiva: se a função primária da linguagem é a categorização, então a significação é o fenômeno primário. A natureza enciclopédica da significação, ou seja, o fato de ela estar intimamente associada ao conhecimento do mundo, é uma conseqüência da função caracterizadora da linguagem: se a linguagem serve para categorizar o mundo, então a significação lingüística não pode ser dissociada do conhecimento do mundo, e, conseqüentemente, não se pode postular a existência de um nível de significação que pertence exclusivamente à linguagem (distinto do nível em que a significação das formas lingüísticas está ligada ao conhecimento do mundo). Por outro lado, dada a sua função caracterizadora, a linguagem não reflete objetivamente a realidade, mas impõe uma estrutura no mundo, o interpreta e o constrói; daí o caráter perspectivante da significação lingüística.

Essas características da lingüística cognitiva fundamentam-se numa orientação filosófica e epistemológica que Lakoff e Johnson definem como experiencialismo, por oposição ao objetivismo ou positivismo (cf. LAKOFF; JOHNSON, 1980; LAKOFF, 1987; JOHNSON, 1987). Sob a visão experiencialista, a cognição (e conseqüentemente a linguagem) é determinada pela nossa própria experiência corporal e pela experiência individual e coletiva. A experiência individual determina o conhecimento, mas a interpretação e a aquisição de novas experiências se faz à luz de conceitos e categorias já existentes, que, por isso mesmo, funcionam como modelos interpretativos, como paradigmas ou protótipos.

A consolidação da lingüística cognitiva nos últimos quinze anos reflete-se num estimulante pluralismo de teorias, métodos e agendas e ainda na recepção e, em alguns casos, complementação mútua de outras perspectivas lingüísticas atuais, particularmente da vasta tradição funcionalista já referida anteriormente.

A lingüística cognitiva constitui, portanto, um modelo integrador e heterogêneo que não pode ser entendido como uma proposta unitária, mas como o resultado de uma confluência de diferentes linhas de investigação que partem de alguns postulados comuns sobre a linguagem e o estudo das línguas. Cuenca e Hilferty (1999) situam em dois grupos as principais linhas de investigação da lingüística cognitiva: o das “teorias gerais”, que desenvolvem algum conceito básico que se aplica a aspectos mais ou menos concretos das línguas, e os “modelos gramaticais”, que, incorporando em grande medida todas ou algumas das teorias gerais, pretendem construir um sistema articulado e global de estudo da linguagem e das línguas. Entre as teorias gerais, os autores apontam a teoria dos protótipos, a semântica cognitiva (com suas diversas linhas de trabalho) e a teoria da metáfora, que constituem a base

do cognitivismo lingüístico. Entre os modelos gramaticais, dois deles têm-se desenvolvido amplamente nos últimos anos: a gramática cognitiva e a gramática de construções.

Este trabalho toma como referência básica os princípios da gramática de construção (GOLDBERG, 1995; FILLMORE; KAY; O’CONNOR, 1988) que, por sua vez, incorpora, principalmente, noções gerais da gramática cognitiva, da teoria dos protótipos e da teoria da metáfora. Vou apresentar essa proposta adiante.