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A partir do século XVI, o racismo começa a se delinear com a sistematização de valores, ideias da civilização europeia. Assim sendo, o racismo é interpretado como construção ideológica necessária para certificar o processo de hierarquização dos povos europeus, ou seja, a superioridade da raça com base na racionalidade científica do século XIX, justificando, assim, a sociedade escravista, o processo de colonização, a ampliação do capitalismo e a ideia de raça pura (que resultou na morte de judeus durante a Segunda Guerra Mundial) (SCHUCMAN, 2012).

De acordo com Guimarães (2004), a palavra “racismo” tem vários significados diferentes na linguagem do cotidiano, na literatura, na mídia. Refere-se a uma doutrina; sendo essa científica, não científica, afirma a existência das raças humanas diferenciando as habilidades das mesmas num processo hierárquico de qualidades psicológicas, físicas, morais e intelectuais. Para as doutrinas que tratam o racismo na ótica da superioridade ou inferioridade entre as raças, pode-se dizer que essa crença é interpretada como “racialismo”. Além disso, o racismo também se reporta às atitudes, preferências, gostos que são ensinados na concepção da superioridade racial, de acordo com o plano moral, físico, estético, intelectual; consequentemente, constrói o caráter e a personalidade da população negra, bem como a determinação dos seus espaços sociais.

Afirma Souza (1983, p. 5):

Ela, a brancura, permanece branca. Nada pode macular esta brancura que, à ferro e fogo, cravou-se na consciência negra como sinônimo de pureza artística; nobreza estética; majestade moral; sabedoria científica etc. O belo, o bom, o justo e o verdadeiro são brancos. O branco é, foi e continua sendo manifestação do Espírito, da Ideia, da Razão. O branco, a brancura, são os únicos artífices e legítimos herdeiros do progresso e desenvolvimento do homem. Eles são a cultura, a civilização, em uma palavra, a “humanidade”. Segundo Rodrigues (2012), o corpo do(a) negro(a) foi considerado uma mercadoria, isto é, vendido, alugado, emprestado, hipotecado ou violentado; logo, esse corpo foi manipulado de acordo com as ambições, pretensões e interesses do dono branco, já que o mesmo tinha o direito legal. A partir do século XVI, características biológicas, físicas do(a) negro(a), o cabelo crespo, o nariz achatado, os lábios grandes

e a pele negra foram características associadas a seres primitivos e bárbaros que habitavam a África, um lugar repleto de magia. Igualmente, houve a construção da imagem do homem negro africano (da mulher negra africana) relacionado a “demônios bíblicos”. No entanto, foi no século XIX, de acordo com as teorias – por exemplo, o positivismo, darwinismo e o evolucionismo – que essas características físicas e biológicas começam a definir o caráter e a personalidade da população negra.

Segundo Souza (1983, p. 21),

[...] naquela sociedade, o cidadão era o branco, os serviços respeitáveis eram os “serviços-de-branco”, ser bem tratado era ser tratado como o branco. Foi com a disposição básica de ser gente que o negro organizou-se para a ascensão, o que equivale dizer: foi com a principal determinação de assemelhar-se ao branco – ainda que tendo que deixar de ser negro – que o negro buscou, via ascensão social, tornar-se gente.

O racismo foi um valioso componente para os Estados-Nação exercerem o poder contra a população, principalmente a população negra, difundindo a ideia de purificação conforme o pensamento dito “moderno” para alcançar a normalização social. Diante disso, a medicina e a biologia ganham destaque nesse cenário, considerando a tomada de poder em relação à vida humana, isto é, “estatização do biológico”, o que permite manter a vida e ter o direito de matar aqueles e aquelas que não correspondem com a sociedade moderna. “É justamente isso que o racismo possibilita, pois embora ele já existisse há muito tempo em outras esferas, o que permitiu sua inscrição nos mecanismos de Estado foi justamente a emergência do biopoder” (SCHUCMAN, 2012, p. 35).

Afirma Kreutz (1999), do ponto de vista histórico-cultural do século XIX, que a cultura europeia é considerada uma cultura superior a partir de uma pretensa fundamentação científica, de caráter biológico; logo, determina-se a relação arbitrária entre as competências culturais e as características biológicas legitimando essa cultura “eurocêntrica”. Nessa perspectiva, a biologia tem um papel fundamental para constituir a teoria a respeito do étnico e sua diferenciação nos grupos humanos, pois anula a história na sua rigidez e compreende a diferença biológica, física, como consequência para a distinção cultural. Sendo assim, no momento em que a diversidade humana foi percebida no campo da cultura virou tema de interesse para a ciência determinista no século XIX.

A partir desse determinismo biológico, dessas doutrinas, a superioridade é destinada ao homem branco que equivale ao topo do desenvolvimento humano. “Os

seus traços caucasoides, como a alvura da pele, os cabelos loiros e os olhos azuis se tornam o referencial de beleza ocidental” (RODRIGUES, 2012, p. 62). Sendo assim, para o corpo negro é adotada a ideia de “feiura e sujeira”, na condição de mercadoria. Portanto, o racismo brasileiro, que inviabiliza, desvaloriza e inferioriza o corpo negro na presença do corpo branco, marca profundamente a trajetória de vida da população negra, principalmente a construção da sua identidade étnico-racial.

Segundo Guimarães (2004, p. 19),

Chama-se, ainda, de racismo o sistema de desigualdades de oportunidades, inscritas na estrutura de uma sociedade, que podem ser verificadas apenas estatisticamente através da estrutura de desigualdades raciais, seja na educação, na saúde pública, no emprego, na renda, na moradia, etc. Tal sistema, ainda que não existia independente dos seus agentes − os cidadãos de um Estado −, não pode ser confundido, seja com a doutrina, seja com o sistema de atitudes, seja com os comportamentos individuais e concretos. O ápice das teorias racistas perpassou o século XIX e marcou o corpo da população negra com o determinismo biológico evitando perceber a construção da identidade étnica no processo histórico, pois o sistema de desigualdade racial se encarregou de reproduzir a inferioridade social. Em concordância com Kreutz (1999), a identidade étnica não deve ser percebida equivocadamente como algo pronto, estabelecido, naturalizado que era possível de ser construída, até porque a mesma é sempre construída no processo histórico e não definida biologicamente.

Para Schucman (2012), a raça como realidade biológica no século XX, é inexistente, explicada pelo avanço das ciências biológicas e genéticas, na qual os estudos revelaram que os marcadores genéticos de uma raça eram encontrados em outras raças. Por conseguinte, brancos, amarelos, pretos não são diferentes enquanto raça; ainda que o patrimônio genético dos seres humanos se diferencie, não sustenta as diferenças na ideia de classificação das raças, não tem argumentos suficientes. Segundo Munanga (1998), é necessário sustentar, então, categorias sociais raicizadas que marcam, por exemplo, as características biológicas, físicas da população negra (é uma cicatriz corporal). “O racismo é, assim, do ponto de vista social, político e ético a confirmação de que há determinados grupos sociais que não aceitaram nem ultrapassar a fase de libertação dos povos oprimidos” (GERMANO; TAVARES, 2016, p. 74).

De acordo com Munanga (2006, p. 53),

Da mesma maneira que o Brasil criou seu racismo com base na negação do mesmo, os racismos contemporâneos não precisam mais do conceito de raça. A maioria dos países ocidentais pratica o racismo antinegros e antiárabes sem mais recorrer aos conceitos de raças superiores e inferiores, servindo-se

apenas dos conceitos de diferenças culturais e identitárias. As propostas de combate ao racismo não estão mais no abandono ou na erradicação da raça, que é apenas um conceito e não uma realidade, nem no uso dos léxicos cômodos como os de “etnia”, de “identidade” ou de “diversidade cultural”, pois o racismo é uma ideologia capaz de parasitar em todos os conceitos.

O racismo brasileiro ocorre ao mesmo tempo nos planos material e simbólico. Pode-se afirmar que, no plano simbólico, a sociedade brasileira adotou e adota a ideologia da superioridade na ordem “natural” da fictícia hierarquia, isto é, negros(as) são inferiores aos(às) brancos(as). Assim, o racismo apresenta-se numa expressão aberta, intensa, oculta de preconceito racial. Porém, o racismo no plano simbólico não explica totalmente a desigualdade racial, mesmo sendo devassador. Em razão disso, o plano material demonstra que a população negra e indígena não tem acesso aos mesmos recursos orientados pelas políticas públicas que os brancos. Isso revela que a desigualdade racial é produto do processo de colonização, da sociedade escravista e das recentes condições de distribuição dos bens públicos (ARTES; UNBEHAUM, 2015). Por isso, a educação é um dos meios para combater o racismo, potencializando a personalidade de educandos e educandas para que os mesmos e as mesmas possam lutar e reagir contra o racismo. Entretanto, o racismo é uma ideologia; assim sendo, com a educação isolada não é possível corrigir a ideologia (MUNANGA, 1998). À luz de Artes e Unbehaum (2015), o racismo acontece em dois planos, material e simbólico, mas observa-se nos debates atuais o destaque do combate ao racismo no plano simbólico, considerando as políticas focalizadas ediferencialistas. Em função disso, as autoras chamam atenção para o combate ao racismo no plano material via políticas universalistas, pois estas sustentam o racismo estrutural brasileiro. Segundo Guimarães (2004), em resumo, na discussão sobre o racismo, percebe-se que o grande desafio para a luta antirracista no Brasil foi, é e continua sendo a invisibilidade do próprio racismo para os brasileiros e brasileiras brancos.