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Brincadeira e relações de gênero: identificando outros elementos no confronto intersubjetivo.

No documento P APAGAIO, PIRA, PETECA E COISAS DOS GÊNEROS (páginas 161-181)

Etapa 3: Descrição de conteúdo e qualidade das interações das crianças em grupos de brincadeiras.

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO

4.2 Análise dos dados de participação na rua

4.3.3 Brincadeira e relações de gênero: identificando outros elementos no confronto intersubjetivo.

Obviamente, ao lado da composição dos grupos por sexo/gênero e por vezes, influenciando essa composição, outros aspectos entram em cena compondo os contornos das relações de gênero nos grupos de brincadeira na rua: nos episódios coletados neste estudo, ganham relevância os aspectos da estrutura da brincadeira (incluindo procedimentos, regras e

162 papéis) e das habilidades e competências dos brincantes, conforme salientados por Pontes & Magalhães (2003).

Um episódio da brincadeira Polícia e Ladrão, o mais longo dentre os episódios coletados é bastante ilustrativo das formas como se mesclam elementos macrocontextuais da cultura de gênero com a estrutura das brincadeiras e a competência dos sujeitos para brincá- las.

A despeito de tratar-se de um episódio longo, o fato de possibilitar um conjunto de discussões justifica também sua reprodução na integra.

Episódio 1

Brincadeira: polícia e ladrão23

Participantes: Tenil, M – 7 a; Har – M, 13 a; Net – M, 9 a; Erl – M, 14 a; Rode – M, 13 a; Brun – M, 13 a; Feli – M, 8 a; Bren – F, 12 a; Assu – F, 12 a; Tai – F, 8 a; Nail – F, 6 a; Elz – F, 12 a; Leti – F, 8 a; Lud – F, 12 a; Jani – F, 8 a; Lili – F, 12 a.

1º momento

Não se tem o registro do início da brincadeira. A tomada começa com um grupo de crianças (misto) dobrando a esquina trazendo um menino “preso”. Har vem preso por Assu, Erl e Lud que o seguram pelos braços.

Outras crianças cercam o grupo (6 meninas e 1 menino). Todos riem. Har vem reagindo, tentando se soltar, esperneando e dando chutes nas meninas a sua volta. Entre risos e gritos animados Har é colocado na prisão (calçada alta de uma casa). Har foge, mas volta em seguida, depois de alguns comentários do grupo de meninas. Tenil diz para Erl: _ “Hum ... não quer ser filmado, essa bichinha”. Começa uma discussão: Har diz para Thaì: _ “vou te dar muito tapa vai ver só”; Assu responde: _ “a gente só tava reagindo”.

2º momento.

Assu assume a organização do grupo para reiniciar a brincadeira, dividindo os papéis: _ “Vai ficar eu e...”. Nesse momento Lud reclama: _ “Tu também tem que correr”.

Assu responde: _ “Há Lud, se tu não quiser tu não corre” e se defende buscando aliado nos meninos:_ “eu não tô me matando desde alì?

Erl chama Assu para correr e ela responde: _ “eu vou ficar por causa que os meninos vão querer me pegar”. (por ser a mais “forte” do grupo das meninas, Assu era o primeiro alvo, a mais visada).

Nesse momento se aproxima Lili e diz: _“posso brincar?” Assu responde: _ “na outra tu entra”. O grupo das meninas corre (incluindo Erl que faz parte do grupo).

Assu, Tenil e Har ficam sentados (na prisão) e começam a discutir. Assu diz: a gente fica porque vocês não querem correr.

Tenil retruca: “Ah Assu, tu também vem logo correndo ...”

Assu: “Humm, claro... eu não quis nem te pegar... eu te peguei e larguei”. Tenil reconhece e diz: “eu vi”.

Assu: eu corri atrás desse daqui (aponta Har), eu ia mesmo era pegar o Net.

Os três se agitam com a aproximação de outras crianças que estão sendo perseguidas. 3º momento.

Tem início uma discussão entre Har, Tenil e Lili.

Har diz para Lili: _“vou te dá-lhe um tapa”. Assu: “fui eu que mandei” (referindo-se a autorização para a entrada de Lili na brincadeira).

23 Como este episódio está citado na íntegra no corpo do trabalho, o mesmo não mais será repetido no anexo 6:

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Assu se afasta e Tenil começa a bater em Lili e Nail. Lili chama por Assu e apanha um pedaço de pau no chão para se defender. Tenil apanha um pau maior e parte para cima de Lili ameaçando e tentando tomar-lhe o pau.

A brincadeira continua com a perseguição aos meninos que se escondem entre as casas e ruas.

Assu persegue Rode que se aproxima da prisão. Rode corre e ela volta. Elz, Erl e Lili também perseguem Rode. Tem início uma nova discussão sobre o afastamento de Bren e Lud (em cuja frente da casa se realizava a brincadeira) que saíram para atender chamado de alguém dentro da casa. Os meninos dizem: _ ”elas não tão não”.

Bren fala de cima do telhado (estava recolhendo roupa do varal) diz _ ”pera aì ..” Os meninos reclamam:_ “elas não tão mais...”

Assu deixa Lili entrar no lugar delas: “Tu entra ..”.

Elz também reclama: “ah não... nós se mata e depois elas vão ah não...”

Assu pegando Lili pelo ombro: _“Lili, faz um favor prá mim? Vai com o Erl que eu acho ele pegou o Rode e não dá conta de trazer ele sozinho”.

Lili se afasta para atender a solicitação e Har grita: _“se tu trazer tu vais pegar-lhe uns tapas” Assu defende: “ela tá sim...”. Tenil repele Assu: “tu falou na outra”

Assu tinha dito que Lili entraria na outra rodada. Assu responde:_ “não tem nada de na outra...” Tem início uma nova discussão entre Elz, Bren e Lud (estas últimas de cima do telhado da casa). Bren diz: “Ei, ainda não vale..” (tentando garantir seu lugar na brincadeira quando voltasse). Elz diz: _ “ah não... quer dizer que a gente se mata e depois vocês entram?”.

Tenil concorda com Elz _” é tá certo, só na outra”.

Assu observa Lili que está longe do grupo: _“olha a Lili tá igual a uma besta olhando pros outros, parece aquelas macacas” ( coça a cabeça imitando os gestos de Lili).

Assu persegue Brun e o prende. Prendem Rode também. Novamente Har provoca Lili:_ “vou te dá um tapa”.

O grupo pára um momento e discute o prosseguimento da brincadeira.

Bru para Elz: se reagir apanha, só que eu te aviso. Bru pede a confirmação do grupo: “né que se reagir apanha? Os demais fazem gestos afirmativos”.

Har para Lili: ei molequinha, tu não tá brincando, não” e lamba Lili com um barbante.

Lili chama por Assu: “_ Assu ele me bateu”. Assu diz para Har _”deixa a menina”. Har volta-se novamente para Lili: _“eu tô querendo te bater..”

Assu intervém: _ “mas só se ela reagir, só se ela reagir”.

Har e Bru continuam sentados comentando os episódios da brincadeira e “encrecando”com as meninas: “essa agoniada aì ...( referem-se à Elz). Har diz: quando vocês começarem a correr vou logo correr atrás de vocês ( quer dizer: não vou dar tempo de distanciarem). Rod concorda: “pois é”.

Tenil continua: _”É essa Maria Macho aì, vou pegar pelo cabelo..” Har diz: _“aquelas que a Lili tá no lugar não vão mais entrar não...”.

Tenil fala com o câmera: _“Maria Cabaço, filma a Maria Cabaço (referindo-se a Lili). Assu volta-se para Lili: _“amarra teu cabelo Lili, amarra teu cabelo”.

Assu se aproxima de Lili e começa a amarrar o cabelo da menina dizendo: _ “é melhor tu amarrar, fica mais bonito”.

Os meninos riem e continuam a debochar:_ “Maria cabaço”, diz Tenil.

Rode comenta:_” parece aquelas pivas quando tão apanhando dos machos delas”. 4º momento.

Desviam a atenção para Erl que vem trazendo um preso, sendo depois ajudado por Assu que vai ao seu encontro.

Ouve-se a voz de um menino (a filmagem não mostra quem é): _”A Maria cabaço, vou dar uns tapas nela de novo”.

Erl se aproxima trazendo “Net” preso.

Brun provoca Erl: _“Fresco, tu é homem viu, seu fresco! Tu quer te fazer de mulher, seu bicha. Novamente fala Har: _ “vou dá-lhe um soco na Maria Cabaço”.

5º momento.

Brun começa a listar os/as integrantes do grupo das meninas, contando nos dedos:_ ”Erl, Elz, Jani, Assu”;

Net se aproxima de Brun e diz-lhe algo no ouvido. Brun continua a listar:_ “Assu, Nail, Maria Cabaço..”

Rode complementa: _“Jani e a Elz, 9 mulheres”.

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Rodela reafirma: _ “são 09 mulheres e nós somos só 05, porque ele tá com o pé ferido”.

Har intervém:_ “e o Feli que não sabe nem correr, essa bichona. Quando ele tiver dormindo vou pegar uma tesoura e cortar esse cabelo dele” ( Feli usa os cabelos grandes)

Voltam a discutir com Bren e Lud ( ainda em cima do telhado):_”vocês não vão mais brincar. A Assu falou que vocês não tão mais”. “Já entraram no teu lugar a Maria Cabaço”

Har volta a hostilizar Lili lambando-a com o barbante e perguntando-lhe algo que não dá para entender. Todos falam ao mesmo tempo discutindo quem está e não está na brincadeira.

Perguntam a Assu como fica a distribuição. Erl propõe passar Lili para o grupo dos meninos: _” eu fico com vocês (meninas) e daì a Lili sabe correr ela vai pro deles”.

Rode discorda: _“eu não quero não”.

Brun também discorda: _”eu não quero mulher no nosso time... é homem contra mulher, é homem contra mulher..”.

Estabelece-se um impasse. Continua a discussão porque tem mais mulher que homem (quer dizer, mais no time das meninas). Har propõe a saìda de Lili: _“sai essa aqui ora” e ameaça bater na garota.

Bru diz: _“chama a Bren, a palito”.

Erl novamente intervém: “então tira a Jani, a Nail, a Lili...” (as menores do grupo). Assu discorda de Erl: _“a Lili tá sim, tu é besta é?. Har parece concordar nesse momento: “a Maria Cabaço corre...”

Bren fala algo lá de cima do telhado e Erl responde: _”vocês tão aì em cima, não tão brincando. Bren replica:_ “se a tua mãe te chamar tu não vai?”

Continua uma discussão acalorada entre Assu, Erl, Rode, Brun e Har sobre a composição do grupo dos meninos.

6º momento.

Dão início a mais uma rodada da brincadeira com a perseguição ao grupo das meninas. Elas agora ocupam o papel de “ladrão” e os meninos o de polícia.

Thaí é feita prisioneira que foge em seguida. Ela apanha de Tenil e é defendida por Leti e Elz. Os meninos perseguem Lili e a prendem. Har volta batendo nela. Eles comentam:

_ “falta pegar o Erl”. _ “vamos pegar todas, a Maria Macho vai virar mulher...

Lili ri do comentário. Har, Tenil e Net ameaçam Lili empurrando e batendo para forçá-la a dizer onde estão Erl e Assu. _“Fala, fala...”.

Elz tenta defender dizendo: ela não sabe, ela não sabe e tenta afastar os garotos de Lili. Har volta-se para Elz: _ “não te mete, não te mete...!”

Empurram Elz que cai da calçada trazendo Har consigo. Os meninos acuam Lili no canto da parede. Se voltam para Thai e Leti (também prisioneiras) e as ameaçam para obter delas a informação sobre o esconderijo de Assu e Erl. Outras meninas são presas, sempre empurradas e ameaçadas com chutes e puxões de cabelos.

É um momento de muito tumulto no grupo.

Erl também volta preso e apanha de Rode e Feli que discutem com ele. Erl fala em tom alto e Rode lhe diz: _“cala a boca seu viado, cala a boca!”

Erl senta junto às meninas. Rode e Brun voltam a bater em Thaí com um pequeno galho de planta para que ela diga onde está Assu. Thaí reafirma que não sabe. O grupo das meninas continua a discutir (não é possìvel entender o que dizem). Rode e Har puxam o cabelo de Thaì e dizem _ “fala sua vagabunda”.

A menina repete que não sabe. Erl diz algo e Rode e Brun lhe dão uma pancada. Erl se esquiva. Dois meninos voltam com Lud presa e vêm torcendo o braço da menina.

7º momento.

O grupo está meio apático, depois de aproximadamente 15 minutos, tendo prendido as meninas e faltando Assu ser apanhada.

Todos estão sentados (distraídos) quando Assu surge dos fundos de uma casa. A menina aproveita a distração dos meninos e liberta todo o grupo (na brincadeira, há a possibilidade de um jogador ainda livre, libertar os demais de seu grupo tocando-os em alguma parte do corpo). As meninas correm, deixando os meninos perplexos. Depois eles iniciam uma discussão, com os meninos contestando a vitória das meninas. A brincadeira se dispersa.

A brincadeira de Polícia e Ladrão é uma brincadeira que envolve confronto e competição. Trata-se de dois grupos de interesses antagônicos, independente de quem os compõem, logo o conflito faz parte de sua estrutura, com papéis bem delimitados. Polícia –

165 perseguidor; ladrão – perseguido. Nesta, os papéis gerais são exercidos em forma de subgrupos de modo que se configuram “times” de policiais e “times” de ladrões. Essa organização estrutural condiciona a competição intergrupal e a cooperação intragrupos.

Neste episódio em particular, esta estrutura determina a organização do grupo de crianças e é sobre esta que o grupo “cola” sua expressão do antagonismo entre os grupos de sexo, meninos versus meninas. Portanto, além do confronto dado pela estrutura da brincadeira (polícia versus ladrão), há papéis nos quais os grupos de meninas e meninos se revesam, identifica-se em diversos momentos o confronto de estereótipos, expectativas de papéis e ideologia de papéis sexuais.

Identidade de gênero e reações a atipias de gênero

Percebe-se que a identidade de sexo responde pela organização inicial (seleção inicial) das equipes: “é homem contra mulher”. Este primeiro critério de organização acaba por funcionar como o “pano de fundo” da segregação que se estabelece a partir daì.

No grupo, todavia, encontram-se duas crianças já identificadas na rua (pelas crianças e adultos) como possuindo características atípicas, ou cujos comportamentos não correspondem às expectativas de adequação de gênero do grupo. Erl (14 a) é visto como afeminado, sendo reiteradamente chamado de “fresco” pelas outras crianças e Lili (12 a) é constantemente chamada de “Maria macho”, porque vive na rua e brinca muito com meninos. Note-se que Lili é a segunda menina com maior registro de presença na rua e aquela cujo percentual de segregação é o mais baixo e o IPI mais alto, o que denota sua grande presença em brincadeiras com meninos. Já o Erl ao contrário, tem baixo registro de presença em brincadeiras na rua.

166 Erl parece se identificar mais com o grupo das meninas e opta por compor o grupo delas na brincadeira. Lili, ao contrário, não assume o estereótipo que lhe é conferido pelo grupo e “pertence” ao grupo das meninas. Aparece aqui uma exemplificação do conceito de grupo psicológico (Harris, 1999). Lili, entretanto, não reage aos meninos e até ri quando é chamada de Maria macho. Trata-se de processos individuais e situacionais que definem subtipos ou subcategorizações de gênero: “meninos femininos e meninas masculinas”. Os arranjos de grupos e a afiliação são redefinidos por estes processos.

Ainda que no geral, o grupo de brincadeira seja misto, todo o desenvolvimento da brincadeira é marcado pelo antagonismo entre os sexos/gêneros: “são nove mulheres e nós somos só cinco”; “eu não quero mulher no nosso time, é homem contra mulher”; “tu é homem, viu (...), tu quer te fazer de mulher?”; “falta pegar o Erl”. _ “vamos pegar todas, a Maria Macho vai virar mulher...”.

Dentro do grupo começam a funcionar, não apenas as regras e os papéis da brincadeira: perseguidor, perseguido com os comportamentos típicos de cada um. Entram as expectativas de adequação de comportamentos e papéis, com os limites e sanções para as “transgressões” e entram também as ideologias da dominação masculina versus submissão feminina.

Aqui a identificação – identidade de gênero e a expectativa de adequação de papéis presentes no grupo parecem claramente regular a aceitação / rejeição. Erl e Lili são uma clara expressão das reações das crianças às atipias de gênero. A expectativa de comportamentos ou de papéis presentes no grupo versus a não adequação de alguns integrantes são neste caso, os aspectos que medeiam as interações entre as crianças.

Erl se inclui, prefere (se identifica?) o grupo das meninas “eu fico com vocês e daì a Lili que corre, vai pro deles”; embora não seja rejeitado pelos meninos: “o Erl tem que entrar pro nosso”

(Net). Ao mesmo tempo a sua não identificação com o grupo dos meninos parece provocar uma reação agressiva destes consigo, pelo menos em dois momentos: quando Erl prende Net e Brun o agride verbalmente: _ “Fresco, tu é homem, viu (...) tu quer te fazer de mulher”? E no momento em

167 que ele próprio é preso e discute com Rode. A irritação de Net e Brun parece mais uma reação a ser preso por uma criança que, em tese, deveria estar ao lado deles e não contra eles.

As crianças parecem identificar subcategorias. Identificam interesses e comportamentos “atìpicos”, diferentes das expectativas de comportamentos para cada sexo (expressão da ideologia de gênero entre eles), mas “sabem” que o interesse atìpico, não é o bastante para caracterizar a inclusão da criança em grupo de sexo. “fresco, tu é homem, viu...”? Ou “eu não quero mulher no nosso time, é homem contra mulher”. Pode-se estar diante de evidência de o corpo fala mais alto nesse processo de identificação, ou de outra forma, estariam evidenciadas as pressões e força dos processos de socialização por gêneros, preparando cada grupo para o assumir dos papéis prescritos socialmente?

Além da evidente “agressão” às duas crianças com comportamentos considerados atípicos pelo grupo (Lili e Erl), um exemplo mais sutil dessa pressão do grupo está no comportamento de Assu, ao amarrar o cabelo de Lili, dizendo: “é melhor tu amarrar, fica mais bonito”. Todo o episódio da brincadeira é permeado pelo “ataque” dos meninos à figura da

Lili e isso tem um efeito no comportamento dela – mantém-se periférica ao grupo. Percebe-se que a única manifestação verbal da menina é quando recorre à Assu para reclamar de uma agressão. Mas os comportamentos dos meninos não afetam apenas o comportamento de Lili, tendo efeito em Assu, como mostra a seqüência do episódio: Tenil referindo-se a Lili e verbalizando para o observador diz: - “filma a Maria Cabaço”; Neste momento Assu volta-se para Lili: e diz “amarra teu cabelo, Lili, amarra teu cabelo” e tenta amarrar os cabelos de Lili.

Assu parece ceder à pressão dos meninos. Seria seu gesto da amarrar o cabelo da menina uma tentativa de deixá-la mais “feminina”? Ou de alertá-la para o perigo sempre iminente de agressão por parte dos meninos?

Este trabalho aponta, em diversos momentos, (e o faz apoiado em diversos autores) o gênero como um conceito que permite entender as relações de poder apoiadas nos valores

168 assimétricos culturalmente atribuídos a homens e mulheres e que têm sido continuamente legitimados na prática social.

O episódio de brincadeira em questão aparece claramente reproduzindo este antagonismo, sendo permeado por interações entre meninos, que acham que podem bater e agredir verbalmente as meninas que por sua vez parecem assumir que devem apanhar. Em alguns momentos a submissão parece aflorar na postura das meninas que apanham caladas, na de Assu que cede à pressão, na de Lili que não reage aos apelidos e mantém-se periférica ao grupo. O episódio não mostra, à primeira vista, nenhum indicativo mais efetivo de reação nas atitudes das meninas.

Uma possibilidade é que as meninas não reagem porque não percebem injustiças na situação, o que mostra que os processos de socialização das meninas para a submissão continua eficiente, assim como o é para os meninos, que mantêm-se firmes na posição de “machos dominadores e agressivos”.

Reações à submissão

Entretanto, este trabalho também tem defendido o pressuposto de que gênero é relação, logo é embate, passível de reconstrução no cotidiano desses mesmos meninos e meninas nos grupos de brincadeira. Defende-se também que as interações são recursivas, no sentido de que os sujeitos a produzem e são por elas produzidos. O que nos impele á busca dos processos de recosntrução e co-construção e não apenas os de reprodução.

Whitaker (2002), na discussão de aspectos semelhantes entre meninas da zona rural de São Paulo acena com uma questão que aqui parece extremamente pertinente: será que as meninas não percebem mesmo o quão injustas são as situações nas quais se inserem? É

169 também, o otimismo desta autora que instigando à possibilidade de “ocorrência simultânea de fenômenos contrários” (p. 15), leva a procurar os indícios de mudanças.

Esse olhar aguçado (demasiado otimista talvez) permite perceber que, se por um lado não há crítica ou reação explicitas, há por outro, posicionamentos de contraposição às situações ou posturas dos meninos.

Este foco de resistência está particularmente representado na postura de Assu, que diversas vezes contrapõe-se às falas e atitudes dos meninos: “a gente só tava reagindo”; “eu não quis nem te pegar”; “Fui eu que mandei”; “ela tá sim” (referindo-se à entrada de Lili na brincadeira).

Além disso, é ela quem assume a organização do grupo, tendo o poder de decidir quem entra ou sai da brincadeira. E a ela que Lili pede para entrar e a quem os meninos perguntam como fica a distribuição das equipes. Ela é também a única menina que participa das decisões no grupo: “Continua uma discussão acalorada entre Assu, Erl, Rode, Brun e Har sobre a composição do grupo dos meninos”. Em resumo, num grupo de 16 crianças e adolescentes, dos quais sete são meninos, a liderança é de uma menina que, conforme referenciado pelas crianças, é “a dona da brincadeira”. Essa liderança (ainda que por vezes com questionamento) é reconhecida pelo grupo, inclusive pelos meninos que não enfrentam Assu.

Esse reconhecimento aparece ligado à competência da menina, o que, se por um lado é problemático, já que remete ás concepções de que as mulheres precisam “ser muito melhores” ou se superarem sempre para obter o respeito dos homens, por outro deixa clara a possibilidade de subversão da lógica da dominação masculina. De qualquer forma, permanece a questão de que os esforços não devem ser simplesmente pela inversão do controle do poder, mas por distribuí-lo igualmente, da construção de relações harmônicas entre os gêneros. Vale ressaltar ainda, a diferença de estratégia, que não configura submissão, mas ao contrário, ao invés das agressões e ataques usados pelos meninos, Assu reage com

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