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Hipótese de aproximação unilateral entre os grupos de sexo/gênero: como as meninas ocupam seu espaço na rua.

No documento P APAGAIO, PIRA, PETECA E COISAS DOS GÊNEROS (páginas 187-192)

Etapa 3: Descrição de conteúdo e qualidade das interações das crianças em grupos de brincadeiras.

5. RETOMANDO AS PERGUNTAS: considerações finais

5.1 Hipótese de aproximação unilateral entre os grupos de sexo/gênero: como as meninas ocupam seu espaço na rua.

Além, e por trás da maior quantidade e diversidade da cultura lúdica masculina na rua, a pouca homogeneização das brincadeiras (apenas uma com perfil tipicamente homogêneo da cada grupo de sexo) pode ser considerada com um indicativo da significativa penetração das meninas nesse “universo” predominantemente masculino, o que significa que o grupo masculino torna-se uma importante referência de socialização para as meninas.

Pode-se supor entre as meninas um trânsito fácil no grupo com os meninos (em função da modificação de estratégias comportamentais), sendo esse um elemento significativo para a quebra da tendência à tipificação das brincadeiras., que pode ser inferida pelo grande número de brincadeiras com IPS acima de 0,7 o que é indicativo da presença feminina nessas brincadeiras. Por outro lado, o reduzido número de brincadeiras predominantemente femininas, a baixa participação nas mesmas e o IPS mais baixo podem ser analisados como indicativos da menor penetração dos meninos nas brincadeiras femininas.

A inserção das meninas no universo de brincadeiras dos meninos pode significar possibilidade ampliada de interação e aprendizagem (experiência, habilidades, valores). Nossa sugestão é de que a penetração das meninas no espaço masculino não se dá apenas pela pouca disponibilidade de parceiros (elas, mesmo em menor número poderiam isolar-se em grupos segregados), mas seria ao contrário, indicativo da resistência e pressão das meninas que a despeito da escassez de parceiros de mesmo sexo e das pressões relacionadas à ideologia de papéis sexuais invadem e se apropriam da cultura masculina, diminuindo dessa

188 forma, a distância entre os dois grupos de sexo. As meninas parecem usar as estratégias de aproximação para desenvolver habilidades e com isso, reunir capacidades de se posicionarem nas interações com os meninos e conquistar espaço em nível de igualdade.

Se a segregação tem influência na limitação de experiências e rigidez de comportamentos, o mesmo impacto pode ser esperado das experiências em grupos com outro sexo. A presença de Tai (7 a) no jogo com os meninos de futebol com meninos mais velhos que ela, pode ter que conseqüências em seu comportamento?

Episódio 14

Brincadeira: Futebol Individual24

Participantes: Rod – M, 13 a; Her – M, 13 a; Uli – M, 15 a; Val – M, 7 a; Lito – M, 6 a; Tai – F, 7 a; Jef – M, 15 a.

No início da filmagem aparece Uli chutando a bola e sendo perseguido por Rod, Tai, Val e Har. Rod toma a bola e Tai aparece logo atrás correndo. Rod chuta e a bola é tomada por Uli que sai driblando. Rod e Har perseguem Uli.

Tai vai logo atrás, um pouco afastada tanto da bola quanto dos três meninos que se revezam na posse da bola. (...) Uli, Rod, Val, Tai e Har vão atrás da bola. Eles formam um grupo bem fechado em torno da bola, todos tentando alcança-la com os pés.

Rod consegue a bola e sai chutando. Os quatro correm atrás. Os meninos se revezam no controle da bola: Uli, depois Har, Val toma, dribla um pouco, Rod toma e sai driblando. Tai corre atrás sem conseguir pegar a bola. As crianças fazem um movimento em círculo na área da brincadeira. Os dribles são acompanhados de verbalizações: “sai, sai fora, deixa, é minha”. Uli toma a bola e sai driblando. Val toma e bola e Har tenta toma- la e os dois disputam uma bola presa, com um embate de corpo. Uli, Rod e Tai observam d eperto, sem interferir. Har toma a bola, sai chutando e Rod toma em seguida. Jef toma a bola e faz um lançamento longo para Uli. Ele sai driblando, os outros o perseguem. Tai vai para cima de Uli, ele a dribla e sai dominando a bola. Os quatro correm atrás. A bola cai na vala. Jef vai tirá-la e as crianças ficam esperando na área de jogo. Jef joga a bola, Val domina , sai chutando e chuta para o gol. Rod pega a bola com as mãos e lança por sobre a cabeça de Val e Tai. Uli pega a bola. Os outros correm atrás.

(...) Ocorre uma sucessão de dribles entre ULI, Val, Har Rod e Lito. Har faz mais um gol e Rod o empurra. Tai fica afastada e se encosta na parede de uma casa. Parece sair da brincadeira por alguns momentos.

Depois Tai retorna ao grupo e começa a correr novamente.

Neste episódio com muitos empurrões e palavrões Tai é a única menina e a menor em tamanho do grupo. Ao longo da partida os brincantes maiores são os que mais pegam na bola (Rod, Her1, Uli e Valter). Tai chuta a bola só uma vez durante toda a partida e por erro de outros jogadores, não por ter conseguido tomar a bola. A disponibilidade para aprender as habilidades parece ser uma boa justificativa para a inserção de Tai no grupo de brincadeira,

24 Jogo de bola em sem equipes formadas. Cada um joga por si e contra todos. O objetivo é fazer gol e, cada gol

189 sem que efetivamente tome parte na mesma, chutando ou conseguindo dominar a bola. Aqui chama a atenção a tolerância dos meninos, um elemento para repensar a tendência segregacionista.

Retomando as proposições dos padrões unilateral ou dual de diferenciação entre os sexos (Martin & Fabes, 2001), o que os dados deste estudo parecem corroborar é a existência de um terceiro padrão de tipificação de comportamento dos dois grupos. O padrão inédito aqui sugerido, não seria de polarização, mas de “aproximação unilateral”, através do qual o comportamento de um dos sexos (nesse caso, o das meninas) muda mais rapidamente que o do outro, só que não em direção oposta, mas aproximando-se do outro grupo de sexo.

A suposição de aproximação unilateral parte do pressuposto que se as interações e atividades com o mesmo sexo têm nos meninos o efeito de reforçamento dos comportamentos masculinos e por oposição, inibir ou desencorajar alguns comportamentos “femininos” (como brincar de casinha ou ciranda, por exemplo), pode ter, nas meninas o efeito de reforçar, ensinar ou aprimorar a aprendizagem de comportamentos e habilidades “mais masculinos”, ou necessários para a interação e convivência com eles. Nesse caso, a segregação parece ser menos intensa em função de que as meninas estão “invadindo” mais o espaço dos meninos. Há uma aproximação das meninas do comportamento dos meninos, ainda que o comportamento dos meninos se altere menos.

Trata-se de um padrão de tipificação de comportamentos, através do qual, sob a influência de fatores ecológicos, dos quais, possivelmente a menor disponibilidade de parceiros é um deles, o comportamento de um grupo de sexo muda com tendência à aproximação do outro grupo de sexo.

Os dados da composição dos grupos de brincadeira por gênero, de segregação, tipificação e preferência por brincadeiras parecem apoiar essa asserção. A partir da inserção das meninas nos grupos dos meninos, seria possível pensar em algumas hipóteses sobre o

190 comportamento das meninas na configuração dos grupos: a) poderia contribuir para o aumento da estereotipização feminina (internalização de papéis) pelo efeito tanto do contraste com os comportamentos masculinos, como pela própria pressão que os meninos exercem para a diferenciação de posturas e comportamentos, quer dizer: brincando juntos, os meninos pressionam as meninas a terem comportamentos adequados “às meninas” e a diferenciarem- se deles; b) ou, o que é a nossa proposição, pode contribuir para a diminuição da estereotipização de papéis, tanto porque as meninas precisam tentar igualar-se aos meninos para conquistarem / usufruírem poder e status dentro dos grupos mistos (estratégias para serem aceitas no grupo) quanto porque brincando com meninos as meninas têm mais experiências deste grupo de sexo, mais oportunidade de vivenciar comportamentos e regras do sexo masculino, estão mais expostas à cultura dos meninos, aprendendo não apenas comportamentos dos meninos, mas também a conhecê-los melhor e essa experiência, contribuiria para uma menor diferenciação – esses são os argumentos para a hipótese original aqui sugerido de aproximação unilateral entre os grupos de gênero.

Os comportamentos, assim como as relações entre os gêneros não são universais, mas relacionais, se refazem no jogo das situações e dos contextos. Isso recupera a noção de desenvolvimento como rede e o grupo de brincadeiras como um universo semiótico, no qual tomam parte uma multiplicidade de significados, que são rearticulados e coordenados pelas crianças e adolescentes em interação.

Assim como aspectos da feminilidade e masculinidade aparecem tradicionalmente conservados ou confirmados, a princípio, estes acabam sendo confrontados nas análises mais minuciosas das interações nos grupos mistos.

As meninas parecem aceitar alguns dos cânones das ideologias e assimetrias de gênero, mas isso não significa submissão total, uma vez que constroem formas de subversão e eles. Na rua elas reconstroem sua experiência concreta e os processos de significação no jogo

191 intersubjetivo com outras meninas e meninos, o que evidentemente, não se faz sem conflitos. A simples presença na rua, num espaço historicamente negado, é um primeiro elemento dessa subversão.

Evidentemente, as meninas entram nas interações na rua em desvantagem: estão menor número, com o peso das práticas de submissão e exclusão, dividindo a experiência de lazer com as tarefas dentro de casa e, com uma menor habilidade e domínio cultural do espaço da rua. Elas, contudo, resistem a isso e ocupam o espaço negado. Essa ocupação se dá sim, a princípio, a partir do papel dado (submissão talvez), e, retomando a noção de papel como instrumento para a ação,é só a partir daí que é possível refazê-lo, reconstruí-lo. É uma noção de que o sujeito oprimido busca compreender a causa da opressão para superar tal condição, assim, quanto mais a menina se apropria desse papel maior a possibilidade de opor- se a ele, de construir elementos para posicionar-se nos grupos.

Pode-se falar de um rompimento e reconstrução de circusncritores, de uma nova de descrição ou redescrição das meninas, compartilhando com Silva & col. (2004), a noção de que:

Não é apenas na negociação que o indivíduo estabelece com o meio em cada situação de confronto das necessidades e significações, que ele forma sua conduta e sua identidade (...) é também na negociação que estabelece com a sua própria forma de descrever-se como pessoa e na articulação e jogo das diferentes identidades e posições ocupadas (p. 88).

Entra aqui a noção de posicionamento25, como ação de determinada posição (Oliveira, Guanaes & Costa, 2004). Trata-se finalmnete, de uma nova posição das meninas, que inclusive, “prepara” as formas de contestação e da posição e do domìnio masculino por

25 No processo de discussão de Rede de Significações, as autoras, a partir da discussão de vários outros autores

apresentam o conceito de posicionamento como “alternativa mais dinâmica ao conceito estático de papel”, (p.75) apontando assim, para a dimensão relacional e reflexiva do processo interativo.

192 dentro do grupo masculino, em outras palavras, da própria estrutura binária sob a qual o gênero se constrói.

O estudo evidencia a força dos grupos de brincadeira na rua como contexto de reconstrução da cultura dos gêneros, pela aproximação dos padrões dos dois grupos. Isso se faz pelo duplo caráter de contexto de aprendizagem de comportamentos e habilidades tanto específicas das brincadeiras quanto de formas de comportar-se em geral e ainda, pela possibilidade de confronto das ideologias, papéis e estereótipos de gênero entre as interações que cotidianamente se estabelecem na rua. Por ser um espaço possibilitador de rotinas de compartilhamento, de co-construção é que é possível falar de construção de cultura no grupo de brincadeira (Carvalho, 2002).

No documento P APAGAIO, PIRA, PETECA E COISAS DOS GÊNEROS (páginas 187-192)