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Diferenciação e Segregação Sexual no Contexto da cultura de pares

1.4 A construção da cultura de gênero.

1.4.3 Diferenciação e Segregação Sexual no Contexto da cultura de pares

Às evidências da segregação e tipificação nas brincadeiras segue a necessidade de discutir os fatores que podem estar relacionados ao fenõmeno. Como e porque ela acontece?

Já foi demonstrado anteriormente que a presença / supervisão do adulto pode funcionar como elemento “amenizador” das consequências sociais que a criança teria na aproximação com o sexo oposto. Por outro lado, parece que as expectativas dos adultos cumprem um papel central na construção dos estereótipos e papéis sexuais (Archer, 1992; Zamberlan, 1986; Segall & col. 1990).

73 Como se dá esta relação? Que aspectos podem ser levantados na determinação da construção da identidade de gênero e da relação masculino/feminino entre as crianças?

Duas abordagens serão aqui apresentadas. Uma que situa a questão de um ponto de vista mais geral que explica como uma determinada sociedade ou grupo constrói seus padrões e papéis de gênero a partir de sua própria organização, estrutura e aspectos físicos e ambientais e outra de cunho mais específico que discute e tenta explicar os mecanismos causais (causas imediatas) que regulam o comportamento de segregação entre as crianças, ou seja, por quê as crianças preferem outras de mesmo sexo como parceiros de brincadeira e tendem a evitar aquelas do outro sexo.

Dentro da primeira forma de abordagem estão as idéias resumidas por Archer (1992). Este autor recorre às variáveis culturais para falar de dois contextos diferenciados, dois mundos ou duas subculturas uma masculina e outra feminina. Fala da existência de regras, padrões de socialização, conteúdos e práticas diferenciadas que agem conformando um limite entre os mundos sociais de meninos e meninas e apresenta três tipos de explicações empregadas na discussão destas diferenças: a) Explicação biológica relacionada ao controle de comportamentos diferenciados a partir de processos maturacionais, herança genética e história evolucionária da espécie; b) Explicação cultural ou de socialização, explicando a aprendizagem social dos papéis pelas gerações mais novas pela internalização durante o curso do desenvolvimento; c) Explicação estrutural que aponta para a discussão e consideração das características da organização social mais ampla e as práticas do grupo/contexto na determinação das diferenças. Mais especificamente, os papéis de gênero são vistos como diretamente determinados pelo status desigual de homens e mulheres dentro da sociedade. Ao que parece, as duas últimas explicações seriam complementares, uma vez que, que via práticas de socialização é que as determinações estruturais ou institucionais são transmitidas e internalizadas.

74 O segundo grupo de explicações inclui as questões mais específicas sobre quais os mecanismos causais que regulam o comportamento segregado por sexo entre as crianças. A questão que subjaz aqui é porque as crianças preferem interagir com crianças de mesmo sexo. Em outras palavras, o que, na situação específica (aqui e agora), regula o comportamento de atração pelo mesmo sexo e evitação do sexo diferente? Seriam diferenças no estilo de comportar-se? Se forem, então o que determinam essas diferenças? Como a criança aprende a comportar-se diferentemente? Existe uma identidade de gênero, como ela se constrói?

Uma explicação seria a incompatibilidade de estilos argumentando que a criança busca interação com o mesmo sexo em função da similaridade de interesses e padrões de interações. A maior preocupação com a dominação e agressividade dos meninos e a maior cooperatividade entre as meninas poderia funcionar como uma barreira na aproximação entre os dois grupos. As meninas, ao descobrirem as características não cooperativas dos meninos e a pouca eficácia de seus padrões interativos com eles, começam a evitá-los uma vez que os interesses não combinam. Uma expressão disso seria, por exemplo, a brincadeira turbulenta, nitidamente preferida pelos meninos já aos três anos e claramente rechaçada pelas meninas (Maccoby e Jacklin, 1987, citado por Beal 1994).

Maccoby (1988) defende a importância (necessidade) de se examinar o grau no qual ocorre a interação social nos grupos segregados por sexo, afirmando também o papel dos estilos de interação diferenciados como causa desta segregação. Num estudo com crianças de 33 meses, a autora descreve que bem cedo os dois sexos têm alguma diferença nos estilos de brincar e que também cada um dos grupos de sexos já percebe essa diferença entre eles. A criança considera seu próprio sexo mais compatível que o sexo do outro. As diferenças de estilos tende a acentuar-se com o aumento da idade.

Além de buscar por estilos compatíveis de brincar, a segregação também se dá em função das diferenças na possibilidade de influência sobre o comportamento do outro.

75 Maccoby recorre a outros autores para apoiar a idéia de que com o aumento da idade aumentam também as tentativas da criança em influenciar o comportamento do outro e os dois grupos de sexos desenvolvem estilos diferenciados de estratégias para exercer essa influencia. Os meninos tendem a organizar-se em grupos maiores e com uma estrutura hierárquica baseada no poder dos membros. Para estabelecer e manter esta hierarquia os meninos utilizam ameaças ou desafios e usam demandas diretas (autoritárias). As relações no grupo são permeadas pela preocupação em manter o papel de líder e pela ameaça a este papel. Por causa disso, seus episódios interativos têm tendências à restrição e à interrupção.

As meninas por outro lado, são mais inclinadas às amizades mais íntimas, evitam o confronto direto porque primam pela manutenção da relação. Em episódios de discordância ou insatisfação, as meninas tendem a propor saídas conciliatórias com sugestões mais educadas e tentativas de persuadir ao invés de usar força ou poder. Estes padrões são pouco efetivos com os meninos.

Estas diferenças dão origem a duas diferentes culturas de grupo: a cultura dos meninos mais orientados para a dominância, a organização baseada na hierarquia, ameaças e autoridade e a das meninas com interações mais pautadas na persuasão, na busca da concordância e no respeito à opinião das outras.

Maccoby (1988) afirma que, se cada grupo de sexo desenvolve estilos que são pouco eficientes (ou ineficientes) com o outro grupo, isto se torna uma razão para evitar a interação. A autora questiona, então, porque meninas e meninos desenvolvem tais diferenças e que outros fatores, além do estilo de interação e brincadeira, podem ter lugar na segregação de gênero. Ela busca respostas a estas questões na contribuição de três fatores envolvidos no desenvolvimento das relações sociais diferenciadas sexualmente, a saber: pressões da socialização, predisposições biológicas e caracterizações cognitivas.

76 No que se refere às pressões da socialização, entende a autora que a tipificação sexual é resultante da modelagem de cada nova geração, a partir de adultos ou crianças mais velhas, através de reforço, punição ou exemplos de comportamentos ou atitudes apropriadas ou inapropriadas a cada grupo de sexo. A socialização, assim, dota meninas e meninos de características diferentes, que se constituem nos elementos para atração / evitação.

Investigando conflitos em brincadeiras, Morais (2004) afirma encontrar em seus achados tanto elementos que confirmam, quanto elementos que negam os padrões de diferenças de gênero descritos na literatura. Uma das principais diferenças encontradas é em relação ao tipo de brincadeira preferida, no que concorda com Maccoby (1988). Morais, encontra também variações entre os dois grupos culturais10 e entre os gêneros estudados em relação ao tipo de brincadeira que pode facilitar a integração dos dois sexos. Ao encontrar brincadeiras turbulentas prevalecendo em grupos de mesmo sexo e as de faz-de-conta em grupos de ambos os sexos, a autora aventa a possibilidade de os tipos de interação embutidos em cada brincadeira ou provocados pela estrutura da brincadeira, atuarem facilitando ou dificultando a integração entre os sexos.

Questionando se a divisão de seres humanos em machos e fêmeas e suas distintivas características afetariam as segregações de gênero, Maccoby (1988) discute a relação destes fatores biológicos com a organização ou sensibilidade diferencial entre machos e fêmeas para apelos sociais e também respostas diferenciadas a comportamentos sociais. A organização pré-natal teria influência sobre os padrões e estilos de brincar discutidos anteriormente. A biologia teria assim, o papel de estabelecer uma certa prontidão para a distinção entre os dois grupos e para a percepção desta distinção por parte das crianças.

Finalmente, de acordo com Maccoby crianças pequenas são capazes de aplicar rótulos de gênero para outros e para ela própria, assim como respondem diferentemente aos gêneros

10 A autora estudou um grupo de crianças na capital de São Paulo e outro na cidade de Ubatuba no litoral

77 antes de serem capazes de aplicar rótulos verbais. Para ela, esta diferenciação não se baseia apenas na percepção de diferenças físicas, mas principalmente nas suas investidas de interpretar e compreender as relações que se estabelecem a sua volta. É neste processo de categorizações cognitivas que ocorre a categorização de gênero, passando a se constituir num poderoso organizador do funcionamento social, em torno do qual se aglutinam novas informações (por exemplo, as diferenças entre machos e fêmeas, masculino e feminino).

Este processo de categorização estaria, então, na base da formação da identidade de gênero. Esta identidade diz respeito à forma como cada pessoa ou grupo de sexo percebe a si mesmo em relação à outra pessoa ou situações.

Gênero é um elemento quintessencial da identidade humana, afirmam Egan e Perry (2001). Se é assim, argumentam os autores, parece plausível supor que as pessoas se questionem sobre seu ajustamento em sua categoria sexual, sendo estas respostas os componentes da identidade de gênero.

1.4.4 Categorização e Identidade de gênero: diferenças de estilos,