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Pensando uma possibilidade de interação entre os modelos

Obviamente, em um exame aprofundado seria possível se falar compatibilidades e incompatibilidades entre os modelos anteriormente apresentados, entretanto, sem prescindir destas últimas, pensa-se na viabilidade de se propor uma reflexão sobre a interação entre eles, o que poderia ser útil no tratamento do fenômeno aqui proposto.

Assim, ressalvadas as diferenças entre essas abordagens, pensa-se que elas representam formas de percepção integrada de micro e macrodimensões. Em comum encontra-se a possibilidade de olhar para os grupos de brincadeiras e, dentro destes, para as construções dos gêneros, como um campo situado contextualmente, circunscrito. Implica saber, por outro lado, que tais processos envolvem elementos tanto de ordem material quanto

34 simbólica, que interagem dinamicamente. Implica por fim, compreender, as formas pelas quais as experiências, interações e relações são significadas, entendendo que esta significação se faz no espaço interacional, num processo de partilha e negociação intersubjetiva.

Em comum entre os níveis de Hinde e os subsistemas propostos por Brofenbrenner está a noção de desenvolvimento como rede de relações que toma lugar através de processos de interações recíprocas e progressivamente mais complexas do sujeito com os outros e com objetos, símbolos, normas e padrões culturais. Em comum também, há a noção de interinfluências entre os diversos níveis ou os diversos subsistemas.

A noção de recursividade é relevante. Hinde aponta claramente a visão de cada interagente como membro de uma rede, da qual as interações são parcialmente dependentes ao mesmo tempo em que a constroem, processo que encontra-se subjacente á construção da rede de significações; Note-se, ainda que esta é a visão presente no modelo Pessoa – Processo – Contexto – Tempo (Bronfenbrenner, 1999), no qual o sujeito encontra-se em dois pontos do processo, deixando clara a não linearidade do desenvolvimento: o sujeito aparece como um dos componentes dos processos proximais e como resultado destes. Trata-se, assim, de um sujeito dinâmico, a um só tempo produto e produtor de desenvolvimento.

A regulação ou as interinfluências entre sujeitos (indivíduos) e contextos, tomadas como definidoras do comportamento social humano, seja a partir de “atos de significações”, que se processam na e são atravessados por uma matriz sócio-histórica (Rossetti-Ferreira, Amorin, Silva & Carvalho, 2004), seja através das interrelações entre subsistemas (Bronfenbrenner, 1977; 1994) ou dos diferentes “nìveis de complexidade social” (Hinde 1997) apontam para a necessidade de uma categoria teórica e descritiva (Carvalho, 1989c) de análise dos processos que ocorrem entre os sujeitos e contextos. Como o primeiro dos níveis

35 de complexidade propostos por Hinde, a categoria interação social aparece como uma categoria de síntese entre essas abordagens e por isso, adequada a tais descrições.

As concepções aqui apresentadas revelam-se aplicáveis às questões de pesquisa aqui colocadas por suportarem o direcionamento do foco do estudo do comportamento social das crianças nos grupos de brincadeira na análise não de como cada indivíduo se comporta de maneira geral, mas na compreensão da natureza das interações presentes nos grupos e como estas contribuem na formação da cultura de gênero.

Tomando-se estas concepções por base pensa-se que o processo interativo dentro dos grupos de brincadeira não é tão somente “revelador” de caracterìsticas ou percepções em termos de identidade de gênero, diferenciação sexual ou cultura de gênero, sendo também construtor de tais características, quer dizer, dentro do grupo as crianças e adolescentes não apenas expressam, percepções, hábitos ou valores, mas constroem (ou co-constroem) esses valores e percepções, em interação com os pares. Esse conjunto de categorias interdependentes permite coletar e construir um arquivo de dados adequado à organização e descrição das interações presentes neste contexto.

Uma contribuição sobre o uso desta categoria para o comportamento social pode ser encontrada em Carvalho (1989c). A autora inicia suas reflexões reportando-se à importância desta no contexto da inclusão da “dimensão social” nas abordagens em Psicologia do Desenvolvimento. Com esta afirmação a autora, aponta para uma impossibilidade de discutir o social (ou o comportamento social) sem aludir a tal categoria.

As interações entre indivíduos parecem funcionar como o espaço de confronto das diferentes experiências e influências, podendo por isso, ser tomada como uma categoria de análise do comportamento social (Hinde 1987; 1992).

Afirmando a utilidade de um uso mais preciso e teórico da categoria, a autora ressalta o caráter de reciprocidade presente no conceito, observando a tendência de alguns trabalhos

36 na área que ao focalizar comportamentos de indivíduos numa situação social o fazem como se focalizando “interação social”.

Continuando suas reflexões Carvalho (1989c) postula que:

A interação é o que ocorre (ou se pressupõe ocorrer) entre indivíduos. A essência do conceito de interação é o de influência ou regulação recíproca, ou seja: cada um, ou a ação de cada um, é diferente, pelo fato de se dar com o outro, do que seria isoladamente (e / ou com um terceiro); não se explica pelo que cada um é (ou faz), mas por seus efeitos recíprocos (p. 512).

Com base nesse conceito, continua a autora, a interação não é um processo observável, mas inferido a partir do comportamento dos participantes da interação. Importante também é percebê-la como “evento que ocorre entre indivìduos, e não nos indivìduos” (p. 514).

Vale ressaltar ainda que esse processo de regulação pode não ocorrer de maneira imediata (Carvalho, 1989c; Dessen, 1995). Portanto, a noção de regulação recíproca aqui adotada não está unicamente baseada na verificação de efeitos mútuos ou resposta instantânea do comportamento do outro, mas considera o potencial regulador de diferentes variáveis: identidade, características individuais (no caso específico do objeto de pesquisa aqui considerado, a competência ou domínio de habilidades na brincadeira) e até a presença ou ausência de um parceiro (um menino no grupo de meninas, ou vice-versa, uma dupla de mesmo sexo ou não).

Considera-se ainda que num grupo cada comportamento de um participante pode ser dirigido de forma indiferenciada a todos os integrantes do grupo, ou a apenas um ou dois deles, mas que de alguma forma pode influenciar a todos. O olhar para os grupos de

37 brincadeira deve considerar todas essas possibilidades, trazendo, portanto, a noção de que em um grupo não existe comportamento independente do comportamento do outro.

Pensa-se que o curso de uma interação depende de cada um dos integrantes, uma vez que para a interação cada um deles traz percepções e expectativas de comportamento e de adequação de comportamentos, o que implica que a natureza dos efeitos de uma interação sobre uma subseqüente dependerá não somente do que atualmente está acontecendo dentro do grupo, mas também das percepções de cada parceiro sobre a experiência, aspecto que pode ser bastante percebido nas interações nos grupos de brincadeira em relação às expectativas de papeis e adequação de papéis sexuais.

Dessa forma, os comportamentos dos participantes, seus processos interativos e os aspectos da diferenciação sexual aí identificados podem, além de serem (estar sendo) regulados por percepções e experiências anteriores (valores, ideologias e hábitos construídos na família, escola etc), também ser regulados por características de cada um dos participantes e do próprio grupo de brincadeira, assim como da forma ou formas como eles interagem com a estrutura de cada brincadeira.

Com base nas construções teóricas sobre o conceito de interação social descritos pode-se então indagar: como é possível descrever as interações entre as crianças no contexto específico dos grupos de pares brincando na rua? É possível inferir uma natureza geral das interações entre as crianças nos grupos na rua? E em caso de existência, quais suas características e o que as regularia? Ou ao contrário, há padrões de comportamentos e estilos diferenciados por grupos de sexo/gênero?

Estas questões originam a necessidade de um olhar mais direcionado para o grupo de pares e para as formas como as interações se dão especificamente nesse contexto, como elas podem ou não conformar ou construir uma cultura de pares e como considerar os grupos de brincadeira como um contexto de cultural.

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