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“Se você se parece com sua foto no passaporte, é porque sem dúvida está precisando da viagem”.

- Earl Wilson - 68

A inconstância das flores

BAITELLO (op.cit.: 73) nos ensina que “a grande importância da mídia secundária é que ela possibilitou a ampliação de campos comunicativos (espaços, tempos, intensidades). Em termos da pós-vida das imagens, sabemos que a indústria de estamparia assumiu uma importante fatia das exportações portuguesas nos séculos XVIII e XIX e o mercado brasileiro serviu de escoadouro a uma parte considerável dessa produção. Sob esse ponto de vista, é possível notar que foram as imagens dessas chitas que desembarcaram com empreendedores da colonização portuguesa nas terras de Vera Cruz. Nelas, conforme veremos a seguir, ainda é plenamente possível identificar motivos orientais, ainda que estilizados e coloridos com tons diferentes. Já havíamos observado, com Warburg, que as

Nachleben arquivam uma memória coletiva, onde estão inscritas vivências culturais. A estamparia da chita nacional, por respeitável que seja, não é, portanto, exclusivamente brasileira. Trata-se, sim, do resultado de caleidoscópios imagéticos e de processos iconofágicos de vinculação comunicativa que trazem à tona imagens arcaicas dispostas em camadas no suporte têxtil. Conforme argumenta o estudioso alemão, é possível acompanhar as imagens na sua constante migração histórica e geográfica. Logo, faz-se necessário inventariar os caminhos percorridos pelas chitas nesse deslocamento, visando compreender suas muitas camadas imagéticas, assim como uma eventual vocação mestiça.

Pleiteamos que a chita se alimenta do deslocamento das imagens da cultura em seu constante metamorfosear. Por exemplo, entre as imagens florais recorrentes em muitas culturas estão as flores com miolo marcado, de quatro ou cinco pétalas arredondadas, como é o caso da impatiens walleriana, ou beijinho. Essa flor, que aparece em produtos têxteis

68 O jornalista e crítico norte-americano Earl Wilson (1907-1987), especializado em entretenimento, ficou conhecido por suas frases de efeito em sua coluna “It happened last night” no jornal New York Post, no qual trabalhou por mais de 40 anos.

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espanhóis, mexicanos e brasileiros, ganha ou perde densidade conforme o adorno se faz plano, mediante carimbo do desenho no algodão, ou texturizado pela técnica de bordado, a partir de um risco já carimbado ou desenhado à mão livre (figura 13). Sob tal aspecto, sua tessitura seria um fenômeno nascido de culturas híbridas, migratórias e mestiças, aberto ao trânsito entre centro e periferia, e capaz de propiciar uma complexidade de arabescos mediante a gestualidade, a técnica e, sobretudo, a imaginação humana.

Figura 13 – Detalhe da flor impatiens walleriana, popularmente conhecida como beijinho ou maria-sem- vergonha, bordado em xale andaluz (acima, à esquerda). Ao lado, imagem da mesma flor em vestido mexicano da região de Oaxaca (acima, à direita). Observa-se a mesma imagem estampada em chita brasileira (abaixo, à esquerda) e detalhe de sua versão rebordada pela grife Apoena (abaixo, à direita), estabelecida em Brasília (coleção verão 2008-2009).

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LAPLANTINE e NOUSS (1997) advogam precisamente que cada fenômeno de mestiçagem é único e particular, constituindo um "mosaico movediço"69 onde os

componentes guardam sua integridade ao mesmo tempo em que se mesclam. "A

mestiçagem não é a fusão, a coesão, a osmose, mas a confrontação, o diálogo" (ibidem: 10)70. E de que forma esse diálogo acontece , considerando corpo e têxtil como mídias que

atuam conjuntamente, tendo a cumulatividade como princípio fundamental?

O fenômeno da mestiçagem, conforme esses autores, floresce nos agrupamentos urbanos. Entendendo, com BAITELLO (op.cit.: 82), a comunicação humana como um sistema complexo, no qual “(...) o advento da mídia secundária não suprime nem anula a mídia primária, que continua existindo enquanto núcleo inicial e germinador” (ibidem, idem), buscamos mapear, na sequência, o percurso das imagens florais nesses espaços. No período das Grandes Navegações71, cidades portuárias como Surat, Sevilha, Manila, Vera Cruz e Acapulco se converteram em importantes pontos comerciais e redes de abastecimento, com mercados públicos e bazares de grande fluxo de indivíduos e bens. "É

notadamente a partir dos mercados e das praças públicas, os lugares por excelência onde se efetuam as trocas, os lugares de aceitação ou de recusa, que não apenas as pessoas de acotovelam, mas se reencontram e se misturam" (LAPLANTINE e NOUSS, op.cit.: 19)72. Nota-se que a cumulatividade das mídias permite a constituição da memória coletiva da qual nos fala Warburg. No caso das chitas, ela foi se reconfigurando conforme os deslocamentos geográficos se efetuavam mediante trocas comerciais. A Nova Espanha, território que hoje compreende o México, era o principal destino cargueiro fora da Europa e o porto de Vera Cruz se organizava como um movimentado entreposto comercial de corantes e têxteis, resultando num fabuloso trânsito de imagens.

69 O termo "mosaico movediço" é emprestado do prof. Dr. José Amálio Pinheiro, que utiliza a expressão constantemente em suas aulas no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

70 "Le metisságe n'est pas la fusion, la cohésion, l'osmose, mais la confrontation, le dialogue".

71 Conforme LAPLANTINE e NOUSS (op.cit.), o fenômeno está longe de restringir-se à biologia, embora a noção tenha originalmente sido aplicada na designação de cruzamentos genéticos e na produção de fenótipos. Ao revés, abarca sobretudo circunstâncias sociais e culturais, que permitem e garantem a efervescência de trocas, agrupamentos e misturas.

72 "C'est notamment à partir des marchés et des places publiques, les lieux de la acceptation ou du refus, que

51 “Do Oriente vieram tecidos decorados com flores, especialmente as rosas bordadas com sedas de múltiplos tons – medalhões, coroas, frutos, vegetação e árvores como os flamboyants. Dessa forma, o gosto mexicano pelas cores intensas e contrastantes se identificou no uso oriental das cores complementárias em uma mesma peça têxtil, o delineado negro das figuras e os efeitos engomados para produzir luzes e sombras em motivos florais”73

(LAVIN e BALASSA, 2001c: 178)

Figura 14 – Xales andaluzes bordados com imagens de rosas possivelmente provenientes de escalas nas Filipinas. Ao lado,uso do produto em ocasião festiva. Madri, Espanha, janeiro de 2008.

73“De Oriente vinieron las telas decoradas con flores, especialmente las rosas bordadas en seda de múltiplos

tonos - medallones, coronas, frutos, vegetación y árboles como los tabachinas. Asimismo el gusto mexicano por los colores intensos y contrastantes se identifico em el uso oriental de colores complementários em uma misma pieza têxtil, el delineado negro de las figuras y los efectos de engamados para producir luces y sombras em motivos florales”.

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As Filipinas abasteciam o reino com preços baixos, gerando reclamações dos espanhóis ao rei Felipe II, que regulamentou o comércio internacional. Tudo era inventariado e partia de Sevilha. “Apesar do empenho da coroa espanhola em proteger sua

indústria e os mercadores castelhanos, os produtos têxteis asiáticos gozavam de grande popularidade na América”74 (ibidem, idem). Isso inclui os xales bordados de flores provenientes de Manila, tão populares na região da Andaluzia e parte da indumentária flamenca (figura 14). De fato, a regulamentação espanhola provocou, como reação devida à demanda, um intenso contrabando entre Ásia e América com intervenção da Inglaterra, França e Holanda. Frequentemente, navios procedentes de Vera Cruz, carregados de cochinilha, ou de Sevilha, lotados de chitas e xales, eram abordados por bucaneiros ingleses75. As pilhagens piratas possibilitaram ampliar a confluência de imagens estrangeiras nas Américas.A época entre 1519 e 1780, que ficou conhecida como a “Era de Ouro” da pirataria, confirma a análise de BELTING (2006:04) quando reflete que “a

política das imagens reside na sua medialidade, pois a medialidade é, geralmente, controlada por instituições e serve a interesses do poder político”. Em 1568, John Hawkins (1532-1595) e Francis Drake (circa 1540-1596), que possuíam cartas de marca76 do governo inglês, começaram a atacar os navios mercantes e, em 1588, derrotaram a armada espanhola. Os bucaneiros pilhavam barcos na região caribenha, resultando em intenso tráfego de têxteis florais asiáticos no litoral colombiano77. Na maioria das vezes, parte do resultado do cerco pirata era comercializado na própria região; noutras era transportado para países vizinhos, levando consigo imagens que se mesclavam ao imaginário local para assediar outros tempos e espaços. LAVIN e BALASSA (2001b: 126- 128), por exemplo, documentam que roupas chinesas chegaram no Peru até 1636, quando foi proibida a entrada pelos portos de Callao e Guayaquil.

74“A pesar del empeño de la corona española en proteger su industria y a los mercadores castellanos, los

productos textiles asiáticos gozaban gran popularidad en América”.

75 Os bucaneiros, piratas de origem inglesa, holandesa ou francesa estabelecidos na ilha de Hispaniola, no Caribe, são assim chamados porque conviveram com indígenas que usavam uma faca denominada "boucan”. Essa arma tornou-se sua marca registrada, garantindo-lhes o apelido.

76 A carta de marca de governo ou carta de corso é uma declaração de intenções expedida por monarcas europeus que atesta estarem seus possuidores agindo a serviço do reino e lutando contra inimigos como mercenários contratados.

77 Há registros de que, quase cem anos depois, em 1698, ao capturar o navio Quedah Merchant, o Capitão Kidd apoderou-se de uma carga que incluía chita e cujo valor total era estimado entre 200 mil e 400 mil rúpias indianas (ZACKS, 2002).

53 Figura 15 – Herança pirata: blusa de cretona vestida por indígena kuna, natural da ilha de San Blas, na fronteira entre Colômbia e Panamá (à esquerda), e avental de palenquera caribenha com estampa de flores e frutas (à direita). Cartagena, Colômbia, fevereiro de 2008.

Isso nos leva a crer que, para superar o medo da morte, as imagens se perdem em outras imagens, reproduzindo-se incansavelmente. A herança imagética mais visível do período localiza-se nas descendentes das chitas hindus, chamadas de “cretonas” na costa da Colômbia e parte do Caribe (figura 15). Ainda hoje, as cretonas são usadas para costurar as saias e turbantes das “palenqueras”, as vendedoras de frutas caribenhas. Suas imagens também percorrem a obra de artistas plásticos como Fernando Botero e Débora Arango, estando presentes nas roupas de tipos populares, como dançarinos e ambulantes (figura 16). Assim, observamos com KAMPER (2002) que os homens vivem enleados nas imagens que fizeram do mundo, dos outros e de si mesmos. Essa situação também nos permite concordar com BELTING (2008), quando salienta que o cidadão do mundo (que não está em casa em lugar algum em virtude do nomadismo, seja ele físico ou virtual) carrega em si imagens às quais dá novamente um lugar e uma vida provisória: a sua própria vida.

54 Figura 16 – Imagens vagueiam entre suportes: na obra “Pareja Bailando” (1982), de Fernando Botero (à esquerda), observa-se que a dançarina usa vestido de cretona diminuta (à direita), similar à chitinha brasileira. Bogotá, Colômbia, fevereiro de 2008.

Movimentos do chintz

Se, de fato, os têxteis, entendidos como mídia secundária, contam a história de quem os fabrica tanto quanto de quem os veste, quanto mais adornados, mais imbrincadas são as relações entre mito e realidade. A oportunidade vislumbrada pelos piratas advinha do fato de que, até 1613, embarcações especializadas em especiarias levavam da Índia para a Inglaterra quantidades muito pequenas de chitas obtidas nos portos do arquipélago malaio (JERKINS, 2003: 03). Esses lotes eram incapazes de atender à demanda européia por imagens estrangeiras. Em geral, tratava-se de sobras do mercado interno asiático, sem qualquer cuidado com a adequação das imagens da cultura ao gosto do consumidor ocidental. Por outro lado, desde 1573, a Nau de China fazia o transporte entre Manila e

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Acapulco de bens têxteis provenientes da Índia cuja qualidade e variedade era muito superior aos produtos que circulavam na costa inglesa – um tremendo chamariz para os piratas.

A produção têxtil indiana é variada e rica, remontando à civilização do vale do rio Indus (circa 2.300 a.C), cuja população feminina fiava algodão para confeccionar as próprias roupas. Trata-se de uma atividade antiga, ensinada no âmbito familiar, de mãe para filha. A tradição literária hindu dos Vedas, assim como do Ramayana e Mahabharata, descreve a ampla variedade de tecidos produzidos no país na época dessas escrituras78. As imagens dos algodões indianos têm significado simbólico e auspicioso, sendo compartilhadas em várias expressões artísticas, incluindo a arquitetura, a escultura, a azulejaria, a pintura, a tecelagem e a estamparia (figura 17). Murais e esculturas testemunham a preocupação com o design de estamparia mediante a seleção criteriosa de imagens e técnicas de aplicação dos padrões no processo de tecelagem. Os motivos podem ser reproduzidos ou reinventados, conforme a habilidade do artesão e suas crenças, recriados em formas miméticas da realidade, estilizadas ou abstratas. Podem variar em tamanho, sendo justapostos ou não, de maneira a estabelecer outras texturas e variações. Na verdade, a Índia é considerada o berço da estamparia têxtil: o uso regional de blocos de madeira para estampar data de 3000 a.C79. É mediante a cor, a textura, o brilho e, sobretudo, as imagens flutuantes da estamparia que os hindus estabelecem sua exata posição numa sociedade fragmentada pelas religiões, pelas etnias e por uma miríade de divisões de castas. Essa linguagem não verbal é cheia de movimento e especialmente importante para compreender o universo feminino, já que as tecelãs são majoritariamente mulheres. Seu registro é a imaginação, seu poder é emocional e sensível: elas consolidam valores culturais através de uma comunicação verdadeiramente social.

78 O Ramayana, por exemplo, se refere à riqueza dos trajes da aristocracia e da simplicidade do vestuário das classes mais baixas.

79 Conforme GILLOW e BARNARD (1991: 07), evidências arqueológicas de Mohenjo-Daro também estabelecem a complexidade tecnológica dos processos de tinturaria, já que os mordentes eram conhecidos pelos hindus desde o ano 2000 a.C.

56 Figura 17 – A pintura no teto do Amber Fort, em Jaipur (acima, à esquerda), assim como a escultura na parede do Taj Mahal, em Agra (acima, à direita), testemunham a presença das imagens florais na arte hindu. Da mesma forma, a tecelagem manual (abaixo, à esquerda) e a estamparia (abaixo, à direita) tramitam essas imagens na mídia secundária mediante o suporte têxtil. Jaipur, Agra e Sanganer, Índia, abril de 2004.

O mundo complexo das indianas é composto por camadas de imagens que dispõem seus desejos, assim como sua interpretação e orientação da mitologia nos tecidos por elas manufaturados. Assim, muitas histórias se originam do ato de fiar e tecer: os tecidos estão ligados intimamente aos ritos de passagem e frequentemente associados aos rituais de fertilidade femininos. “Há um evidente avanço na relação do homem consigo mesmo, trazido pela mídia secundária, uma evidente expansão das fronteiras do seu imaginário e, portanto, da sua cultura” (BAITELLO, op.cit.: 83). Dessa feita, é possível argumentar que

tamanha variedade simbólica facilitou a conquista de consumidores além-mar. As exportações de têxteis hindus podem ser estabelecidas a partir dos apontamentos do

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geógrafo grego Strabo (63 a.C. - 20 d.C.), que menciona o porto de Barygaza, na região do Gujarat, como pólo exportador de uma variedade de têxteis. GUY (1998) observa que a descoberta de uma arca com moedas de ouro e prata do século XIV, cunhadas pelos reis Mamluk de Egito e Síria, sugere a compra e venda desses tecidos em troca de metais preciosos desde o Império Romano. A cultura da corte Mughal era a mais difundida além das fronteiras dos reinos indianos, porém o país mantinha ligações cosmopolitas com Roma mediante os portos do sul, por onde trafegavam produtos considerados de luxo para a época, como era o caso dos tecidos estampados80.

Não obstante a demanda internacional por panos hindus ter sido gerada durante o Império Romano, os grandes importadores dos algodões indianos nesse período foram os países do Oriente Médio e a China. No século XIII, o viajante chinês Chau Ju-kua refere-se ao Gujarat como fonte de têxteis de algodão multicoloridos, os quais eram embarcados para venda em países árabes. Também no século XIII, Marco Pólo registrou as exportações de têxteis indianos para a China e sudeste asiático, provenientes da costa de Masulipattinam (Andhra) e Coromandel (Tamil) em amplos navios. GUY (ibidem) aponta que padrões têxteis nas esculturas de deidades indianas em localidades asiáticas muito provavelmente também refletem a fama dos panos indianos em circulação no final do primeiro milênio. A exportação desses tecidos denota o quanto essas imagens foram admiradas, usadas e, posteriormente, imitadas e incorporadas por muitos povos. Tal fato amplia a influência das imagens arcaicas hindus no sentido apontado por BAITELLO (op.cit.:83), já que “com a

mídia secundária inauguram-se a permanência e a sobrevida simbólicas após a presença do corpo”. Como o alto preço e a pretensa raridade podem ser facilmente derrubados pela

proliferação das cópias – o que não ocorre com uma experiência pessoal, que é única assim como o tempo em que foi vivida – a imagem assume-se como sósia do original que acaba por banir.

80 A balança comercial era ligeiramente favorável aos hindus. Roma supria a Índia com vinho, perfumes, coral, papiro, cobre e pedras lapidadas em troca dos tecidos estampados, considerados um produto de inegável excelência em comparação com a produção européia. As musselinas de algodão indiano era chamadas em Roma de “ar tecido”. Plínio (23-79 d.C.) reclamava do custo das commodities importadas da Índia: “não se

58 Ligando os pontos

Ao longo do tempo, as imagens da mitologia e da natureza foram interpretadas conforme especificidades regionais e mercados direcionais. No bazar global, a cultura enquadrada em imagens para ser usada como adjetivo caracteriza um diferencial passível de distinguir consumidores num momento em que o abismo entre classes está repleto de pontes disseminadas pela indústria da comunicação, do entretenimento, do deslocamento e do hedonismo. Entre os têxteis de maior prestígio comercial despontam inicialmente os algodões estampados com brilho da região do Gujarat e da costa do Coromandel, bastante procurados pela realeza da Malásia e pela burguesia filipina. Por intermédio dessa preferência, tais tecidos, notadamente as chitas, eram comercializados no porto de Manila e embarcavam nos galeões espanhóis com destino ao México, fazendo escala, por vezes, em Sevilha. Nem todos os centros de produção têxtil hindus, contudo, estão associados às cidades portuárias. Vários dedicavam-se ao comércio interno e se localizavam no centro da Índia, nos reinos Rajput e Mughal, bem como no norte do país. Na região do Punjab, mais ao norte, muitos dos estilos e modos de expressão que encantaram o consumidor europeu se refletiram também nos bordados. A técnica de bordado denominada “phulkari”, que significa literalmente “flor da alegria”, está até hoje presente nos trajes de uso diário, com ricos motivos de folhagens e flores que têm um amplo espectro de significados. O termo phulkari, atualmente restrito aos xales e lenços de cabeça com flores miúdas como as da chitinha, por muito tempo foi sinônimo de qualquer produto têxtil, dada sua importância no cotidiano hindu.

Os phulkaris são usados por todos os membros da comunidade e dispõem muitas imagens florais com múltiplas camadas de significados. Todavia, apesar da variedade imagética, a flor de lótus sempre está presente e, em geral, consiste no principal motivo. Essa flor, que se abre todas as manhãs aos raios do sol, evocava idéias de ressurreição e de imortalidade entre todas as antigas nações do Oriente. Contrariando todas as regras da botânica, a flor de lótus, sagrada tanto para os hindus quanto para os egípcios e muitos outros povos, às vezes floresce sobre a Árvore Sagrada dos fenícios, ou dos assírios, e é arrancada ou cheirada. Portanto, quando a encontramos, temos toda a razão para acreditar que ela representa ali uma “flora da vida”. Essa flor divina, na opinião de D‟ALVIELLA

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(op.cit.: 126), sem dúvida figurou em mitos cujos textos não chegaram até nós, mas cuja existência é suficientemente revelada pelos monumentos e pelos têxteis estampados e bordados com essa imagem.

Nos phulkaris, o lótus é o único elemento centralizado, simbolizando o sol.

“Encontramos o lótus empregado para interpretar as mesmas nuanças de pensamento em algumas implicações indiretas e suficientemente sutis do simbolismo solar” (ibidem: 37).

Genericamente, representa ainda a abertura da consciência na cultura hindu. Em alguns

phulkaris, transforma-se no “olho que tudo vê” do budismo tibetano, já que, segundo essa tradição, quando o sol brilha sobre a terra nada pode se esconder e a verdade se torna visível. Também pode significar a habilidade feminina de dissociar-se dos arredores e olhar para o ambiente espiritual, como se percebe na maioria dos phulkaris. “Quando a dúvida na mente se vai, há paz interior. Assim como o lótus abre ao entardecer”81.Na verdade, a flor de lótus é um dos mais complexos e duradouros símbolos do budismo (figura 18). Uma

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