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“Para fazer a campina Junto uma vespa e uma flor Vespa, flor e fantasia Ou apenas fantasia Se faltarem a vespa e a flor”.

- Emily Dickinson -

Contra a imaginação

BAITELLO (2000: 10) nos ensina que “os caminhos, por terra ou por mar, sempre foram povoados por imagens (...) o encanto das viagens não reside em outro lugar que não seja o da busca de imagens (visuais, acústicas, olfativas, gustativas, táteis ou vivenciais)”.

De fato, ao mapear as andanças da estamparia floral no segundo capítulo deste estudo, observamos que os tecidos vão estabelecendo vínculos comunicativos entre as várias culturas e os viajantes que nelas circulam, mediante a construção de imagens dessas localidades que vão se mesclando, fundindo e acumulando uma vez impressas no design têxtil. A memória dilui abismos temporais sem impedir modificações, pois, em termos plásticos, o que é transmitido vai se alterando pouco a pouco, ao mesmo tempo em que concede às imagens grande espessura histórico-cultural. Assim, pode-se dizer que as imagens encerram descobertas e possibilitam, com a “função-janela” da qual nos fala KAMPER (1994), o transporte para além delas mesmas, num tempo sagrado, mítico e fora do ritmo da existência comum. Em 1801, durante suas expedições botânicas na América do Sul, o célebre aventureiro Alexander von Humboldt exemplificou a questão anotando suas razões para viajar: “eu era instigado por um vago anseio de ser transportado de uma vida diária entediante para um mundo maravilhoso” (apud BOTTON, 2000: 267), ou seja, para

o universo das imagens.

Segundo Kamper, quando adequadamente empregada, a função-janela permite ao homem o acesso à visibilidade das coisas além de sistemas fechados, no qual ele inclui o próprio imaginário. “O imaginário aqui é a palavra genérica para os sonhos mortos da

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humanidade, para os artefatos substitutivos da força de imaginação, para os restos de tudo aquilo que se imaginou (...)” (KAMPER, op.cit: 51). BAITELLO (2005:92), estendendo as

idéias de Kamper, compreende que o imaginário se torna assim uma “órbita fechada,

impedindo e impossibilitando todo exercício da imaginação”, ou seja, negando às imagens

um momento criativo de rebelião, que seria configurado pelas “imagens em ação”. Essa observação nos parece especialmente perceptível no uso que o homem faz do vestuário, apontando para um aspecto sombrio no consumo imagético: justamente a perda da “função- janela”, ou seja, a cegueira causada pela avalanche de imagens. LESHKOWITCH e JONES (2003:48) parecem comungar dessa idéia quando apresentam práticas de estilistas da Indonésia e do Vietnã que “(...) usam seu conhecimento das tendências asiático-chiques globais para confeccionar e comercializar novas versões de roupas supostamente tradicionais (...)”. O estudo realizado pelas pesquisadoras apresenta o caso da designer

Josephine Komara, mais conhecida como Obin, que nos anos 90 exotizou estampas próprias da indumentária típica da Indonésia em sua boutique em Jacarta, ignorando ou reavivando imagens, a princípio para vender aos turistas.

BELTING (op.cit.: 72) nota que “as imagens em nossa recordação corporal estão

ligadas a uma experiência de vida pela qual passamos no tempo e no espaço”122. No caso, como os riscos da imaginação são assegurados por um imaginário previamente editado por Obin, a experiência de ir até o lugar e as memórias trazidas de lá são, portanto, pré- fabricadas. Mediante o uso indiscriminado de imagens estereotipadas e descontextualizadas, Obin homogeneiza a experiência local, condensando-a num mundo de imagens “prêt-a-porter” ou “prontas para usar”, que não requerem e muito menos incentivam o uso da função-janela. Nesse caso, o imaginário se opõe à imaginação. Se outrora a idéia de viajar e coletar imagens envolvia planejamento, tempo e recursos, como advoga BOORSTIN (1992: 84), esse neo-nomadismo é sedentário e asséptico. O viajante ativo se converte em turista passivo, isolado das paisagens que atravessa (figura 28).

“Somos assombrados não pela realidade, mas por aquelas imagens que colocamos no lugar da realidade”123 (ibidem: 06).

122“Las imagines en nuestro recuerdo corporal están ligadas a una experiencia de vida que hemos hecho en

el tiempo y en el espacio”.

94 Figura 28 – Vestidos confeccionados em chita e chitinha, destinados ao consumo de turistas, à venda no mercado San Juan de Dios. Guadalajara, México, janeiro de 2009.

Domesticação do imaginário

Inicialmente voltando sua produção aos expatriados americanos e europeus, ávidos pela experiência do “consumo do autêntico”, Obin logo expandiu sua base de clientes para a elite local. Assim, o imaginário coletivo foi alterando sua própria visão acerca das mesmas imagens (BELTING, 2007; WARBURG, 1995). Graças ao escambo imagético, a imagem do “turista chique” virou ideal de consumo dos indonésios. ROCHA (2004: 09) esclarece que “o consumo de produtos e serviços – este complexo mundo dos bens – é público e, portanto, retira sua significação, elabora sua ideologia e realiza seu destino na esfera coletiva, existindo como tal por ser algo culturalmente compartilhado”.Assumindo- se como produto raro, essa imagem a ser consumida e mimetizada é alçada à categoria de objeto de luxo pela suposta escassez e pretenso refinamento.

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No trabalho de Obin, há um exemplo claro de duas dimensões distintas que a imagem permite ao marketing de marca retocar de modo amplamente ficcional: o deslocamento do espaço (a Jacarta “misteriosa” para os ocidentais) e do tempo (o “passado glorioso” para os próprios consumidores indonésios). As imagens flutuantes pontuam que os bens destinam-se aqueles que desejam, acima de tudo, vincular-se a outros com conhecimentos particulares. BOORSTIN (op.cit: 116) acrescenta que “(...) não testamos a imagem a partir da realidade, mas sim testamos a realidade a partir da imagem”. Se a

ausência de vínculos isola consumidores não qualificados, é nas imagens-souvenir de dado destino e não propriamente na preciosidade material do artigo ou em sua longevidade que aparentemente reside a supremacia de valor ofertado por Obin aos seus clientes em sua estratégia de vinculação. O consumo de imagens media as relações entre capturados e captores, ou seja, entre vinculados e vinculadores. Afinal, “a pertença cria o mundo em que podemos existir, dá forma às nossas percepções e nos oferece os locais onde podemos desenvolver nossas competências” (CYRULNIK, 1995: 76).

Embora o compartilhamento aponte para um vínculo de caráter fraternal, parece-nos que, ao entrar no perímetro de resiliência, ou seja, da capacidade de recuperação das lesões afetivas do consumidor, a grife instaura uma configuração em que a proximidade é de fato apenas aparente. Com a função-janela embotada por imagens prêt-a-porter, a comunicação na vertical se estabelece mediante um sistema de hierarquia em que a marca dita as regras que o consumidor deve obedecer, substituindo a voz do pai, da autoridade, do Estado com a elaboração de novos mitos. A figura do pai é o grande representante da cultura. Daquilo que é – ou não – aceito. É também referência de distância, de dominância, de segurança, de

organização do mercado mediante a interferência nos sistemas de vinculação.

Se, como afirma McCRACKEN (2003: 139), “em algum lugar do continuum do espaço existe um „outro‟ perfeito em termos do qual os ideais localmente inalcançáveis podem ser formulados”, podemos acrescentar que imagens de marca como as de Obin,

mediante a apropriação desse „outro‟ reconhecível na memória do consumidor, motiva-lo- iam a se vincular. E o que é estar suficientemente animado para optar pela vinculação mediante certo modo de consumir? A situação nos leva a crer que, efetivamente, consumidores de classes intermediárias vinculam-se com imagens porque elas lhes dão a

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sensação de aproximação com o que consideram próprio do universo dos abonados, como certa onipresença global seguida por um passado imponente. A idéia explicaria o interesse de produtores tradicionais de bens voltados às classes superiores da estrutura social em torno da fabricação de produtos e processos comunicativos que forneçam “prestígio para as massas”, como é o caso dos souvenirs de viagens, que atestam a potencialidade econômica do usuário, uma vez associados ao cosmopolitismo e ao verniz cultural supostamente adquiridos em momentos de prazer e diversão. Trata-se do fenômeno apelidado de “masstígio”124, pelo qual uma ou mais marcas originalmente destinadas à elite (incluindo destinos turísticos e países como grifes) lançam subprodutos oriundos da significação erigida pelo produto principal, com a qual tais artigos pretensamente comungam nas imagens das campanhas publicitárias.

Ao refletir sobre as belas paisagens que se descortinam diante dos viajantes, BOTTON (op.cit.: 230) observa justamente que o fascínio das imagens produz nos seres humanos um desejo incontrolável de fazer com que elas permaneçam. Sua beleza, entretanto, é fugidia. Como possuí-las? Para o autor, a máquina fotográfica fornece uma opção: não só de eternizar imagens, como de se incluir nelas, tornando-as ainda mais presentes em nós por nos tornarmos presentes nelas. “Um passo mais modesto poderia

consistir em comprar um objeto – uma tigela, uma caixa laqueada ou um par de sandálias (Flaubert adquiriu três tapetes no Cairo) para servirem de lembrança do que foi perdido, como uma madeixa que cortamos da cabeleira de uma amante que parte.” (ibidem: 231).

Adquirir lembranças é uma forma de se manter vinculado às imagens que encantam, evitando que desvaneçam e se percam no emaranhado de outras imagens da vida diária. Conforme BOORSTIN (op.cit.: 92), comprar passa a ser uma das poucas atividades remanescentes para o turista, expectador de imagens que desfilam em incansável “city- tour”. Trata-se de uma tentativa desesperada de manter a função-janela ativa e a morte

distante. Afinal, a palavra tour, derivada do latim tornus que, por sua vez, veio da palavra

124 Michael Silverstein e Neil Fiske, do The Boston Consulting Group (BCG), estudam esse mercado desde 1998, tendo publicado um relatório intitulado “Opportunities for Action in Consumer Markets – Trading Up: The New Luxury and Why We Need It”. Sob seu ponto de vista, o “masstige” (ou “masstígio”, numa versão

para o português) inclui mercadorias ou serviços que ocupam uma posição intermediária entre o mercado de massa e o mercado elitista. São bens que aparentemente ofertam um diferencial qualitativo sobre aqueles considerados convencionais, contudo não estão localizados no topo de sua categoria em termos de preço (o investimento é inferior se comparado ao feito em exclusivos de luxo, mas de três a cinco vezes mais elevado

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grega utilizada para descrever um círculo, representa precisamente um movimento contínuo, mas sem saída (ibidem, idem): urobórico. Isso levaria os produtores de

commodities têxteis a buscar nas imagens errantes certa identidade coletiva, para ser incorporada e comercializada como souvenir. As imagens ganham assim outros suportes.

Figura 29 – Indígena da etnia huichol vestindo traje confeccionado em chitão revende peças de sua autoria no comércio ambulante. Tlaquepaque, México, janeiro de 2009.

Mas, na verdade, esses subprodutos também são imagens desbotadas, como vemos na figura 28. Isso porque não observam de modo integral a facção manual (parte da produção é industrializada), os insumos de melhor qualidade (utilizam-se eventualmente elementos de disponibilidade reconhecida no mercado, o que projeta custo inferior no produto final) e a distribuição exclusiva (que é seletiva, mas não limitada), o que a rigor produz efeitos de sentido distintos. A vantagem óbvia para os produtores é a possibilidade de reprodução desses bens em volumes significativos e a manutenção parcial de qualidades

do que aquele dirigido aos produtos de massa).

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simbólicas conferidas pela boa “linhagem” da imagem de marca. Trata-se de um labirinto de imagens convertido em armadilha comercial. Uma vez compartilhada nos souvenirs, essa imagem vira memória para os turistas, que seguirão buscando outras imagens “prêt-a-

porter” para devorar, como é o caso das chitas usadas no dia-a-dia pelos indígenas huichóis

(figura 29). Dessa feita, os horizontes do consumo – e da iconofagia – vão se alargando nas sociedades ocidentais. Mas os benefícios da mundialização da cultura por certo não advirão da habilidade de transformar um processo vivo – a comunicação mediante mídia primária e mídia secundária - numa outra trincheira para imagens sombrias.

O guarda-roupa de Frida

Observamos anteriormente que as imagens estabelecem um vínculo comunicativo entre os turistas e as culturas que perpassam, sendo que os souvenirs materializam presenças e ausências. BOTTON (op.cit.: 86) complementa essa idéia quando nota que “na associação mais impalpável, mais trivial da palavra exótico, o encantamento de um local estrangeiro deriva da simples idéia de novidade e mudança (...)”. O mesmo autor explica

que pode haver um prazer ainda mais profundo, pois podemos valorizar imagens estrangeiras porque parecem se harmonizar com nossa identidade e com nossos envolvimentos de modo mais fiel do que qualquer coisa que nossa terra natal possa oferecer. Ao investigar as razões que levariam um comensal a taxar de exótico determinado alimento, DEL PASO (1991: 11) observa que nada poderia ser mais estranho que comer um prato de espaguete, pasta de origem chinesa, regado a molho de tomate, fruto de origem mexicana, e jurar que se trata da mais pura tradição italiana. Nessas tessituras imagéticas, diluem-se as fronteiras entre o próprio e o alheio. “O que se considera exótico no

estrangeiro pode ser aquilo pelo qual se anseia em vão em nosso próprio país” (BOTTON, op.cit.: 87).

Essa questão toma contornos mais claros quando observamos a apropriação da imagem pessoal da pintora Frida Kahlo (1907-1958) nos produtos têxteis à venda nos

tianguis mexicanos. Há sacolas, blusas, saias, jóias e coleções inteiras dedicadas ao mito da pintora. Militante, comunista e agitadora cultural, a artista mais polêmica do México usou tintas fortes para estampar em suas telas, na maioria auto-retratos, uma vida

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tumultuada por dores físicas e dramas emocionais125. Filha de um fotógrafo alemão e de uma mexicana, foi casada com o pintor Diego Rivera e dedicava a ele seu figurino colorido por muitas imagens florais. Ela própria comenta (KAHLO apud CONDE, 2007: 33):

“em outra época me vesti de rapaz, calça, botas, jaqueta... Mas quando fui ver Diego coloquei o traje de tehuana. Nunca fui a Tehuantepec, nem Diego quiz me levar. Não tenho relação com as pessoas de lá, mas, de todos os vestidos mexicanos, o de tehuana é o que mais gosto e por isso me visto como tehuana” 126

Frida construiu para si uma imagem fabulosa: meio mulher, meio planta, “(...) que desempenhou seu papel, vestida de flores, como uma deusa da fertilidade, ela que no plano biológico era infértil”127 (ANDRADE, 2000: 49). Ao contrário da elite de sua época, gostava de mesclar referências mesoamericanas: imagens mestiças das roupas indígenas, asiáticas e européias, dos objetos de devoção a santos populares, dos mercados de rua abarrotados e das comidas apimentadas com distintos chillis. “Só Frida insistiu no

público e no privado em usar indumentária regional, castiça, estilizadamente antiquada ou encantadora, com especial predileção pelas saias e huipiles de tehuana”128(CONDE,

op.cit.: 36). Mostrando seu espírito nacionalista mediante seu modo de vestir, a artista também acreditava e expressava visualmente as idéias revolucionárias de 1910129. É fato

125 Na infância, uma poliomielite encurtou sua perna direita. Aos 16 anos, quebrou a coluna em um acidente de ônibus. Amargou muitas amantes do marido, mas também viveu romances paralelos com mulheres e homens, o mais famoso com o revolucionário russo Leon Trotski. Esse enredo novelesco virou filme duas vezes. A primeira, em 1983, com “Frida, Natureza Viva”, de Paul Leduc, e a segunda com “Frida”, de 2003, dirigido por Julie Taymor.

126“En otra época me vestía de muchacho, pantalones, botas, chamarra... Pero cuando fui a ver Diego me

puse traje de tehuana. Nunca he ido a Tehuantepec, ni Diego ha querido llevarme. No tengo relación con la gente de allá, pero de todos los vestidos mexicanos, el de tehuana es el que más me gusta y por eso me visto como tehuana”.

127“(...) que desempeñó su papel, vestida de flores, cual una diosa de la fertilidad, ella que en el plano

biológico era infértil”.

128“Sólo Frida insistió en público y en privado en usar atuendo regional, vernáculo, estilizadamente

anticuado o hechizo, con especial predilección por las faldas y huipiles de tehuana”.

129 Frida Kahlo dizia-se filha da Revolução e até alterava sua data de nascimento para o ano em que se iniciou. Na verdade, a Revolução Mexicana foi um processo longo e complexo que mudou o país e impulsionou o México moderno. Começou como uma reforma política de caráter democrático, transformando-se depois n um conflito de características sociais. Durante a guerra civil de 1913-16, as forças conservadoras do presidente Victoriano Hortaenfrentaram as forças revolucionárias encarnadas em Emiliano Zapata, líder dos camponeses indígenas, no sul; e Pancho Vila, Álvaro Obregón e Venustiano Carranza, no norte. O triunfo dos revolucionários sobre Horta foi só o inicio de uma nova guerra civil, desta vez entre os próprios dirigentes

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que os pintores muralistas investigaram a essência da arte mexicana rural e indígena para plasmá-la em suas obras, levando tanto Diego quanto Frida a colecionar objetos de decoração regionais (TUROK, 2007: 51). Se, na época, Frida era considerada exótica, hoje, sua presença está pulverizada em souvenirs por toda a Cidade do México (figura 30). Isso graças às saias rodadas, aos penteados caprichosos e aos xales bordados inspirados nas índias e chinas poblanas, que ainda se vestem assim.

Figura 30 – Bonecas de pano representando Frida Kahlo e Diego Rivera, à venda no Bazar del Sábado, mercado de artesanato estabelecido em San Angel, bairro de elite da capital mexicana. A saia de Frida ostenta estampados de paisley hindus. Distrito Federal, México, janeiro de 2009.

As imagens de Frida permanecem como tensão energética, aquilo que Warburg considera “vida em movimento”, cujos traços significantes estão marcados na memória coletiva. Essas imagens evidenciam as linhas tênues entre passado e presente,

revolucionários, que terminou com a vitória militar de Obregón e Carranza sobre Zapata e Pancho Vila. No final da segunda década do século XX, a Revolução conseguiu se consolidar com a promulgação da Constituição de 1917, ainda vigente, e a chegada ao poder de Obregón e seus apoiadores.

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destacando-a como precursora da chamada “moda étnica”, que reinvindica para si imagens da cultura popular, inspirando muitos criadores130. Sabemos que os povos pré- colombianos alcançaram um elevado grau de desenvolvimento econômico, social e cultural e que, a partir do final do século XV, com a chegada dos europeus à América, os saberes maias e astecas mesclaram-se aos conhecimentos ibéricos131. Na bagagem, o conquistador Hernán Cortez trouxe um tear de pedal que, imediatamente, os nativos aprenderam a usar, incorporando técnicas de bordado européias para elaborar motivos mesoamericanos em seus têxteis, antes produzidos exclusivamente em teares de cintura. São essas incorporações e mestiçagens imagéticas que vão tornar a aparência de Frida Kahlo única.

Desde o princípio, os conquistadores reconheceram a habilidade manual dos índios, ainda que exótica para eles132. De acordo com GRUZINSKI (op.cit.), para evitar serem assimilados ou reabsorvidos, os mexicanos tiveram de aprender a “sobreviver a uma cultura de desaparecimento” adotando estratégias para tirar partido de mutações e

evitando a hispanização pura e simples. Não obstante, as famílias crioulas e mestiças ricas copiavam as roupas da corte. No século XVII, as mulheres ainda levavam pendentes na cintura dois relógios: um que marcava a hora na Espanha e outro no México. As ruas mais concorridas da Cidade do México eram Plateros e Tacuba. Ali, exclusivas lojas mostravam em aparadores os trajes e as jóias importados da Europa, ainda que, em caixotes escondidos perto das ruas do Palácio, fossem vendidos tecidos de todos os tipos e de todas as qualidades, incluindo as chitas estampadas133. No Baratillo, era possível

130 O estilista mexicano Louis Verdad inspirou-se em Frida Kahlo em sua coleção outono/inverno 2005, apostando em flores vermelhas nos cabelos, brilho e renda. Gucci e Prada nos mostram ícones das tradições mexicanas nas coleções dessas marcas para o verão de 2007: grandes flores em cores fortes, vestidos bordados e acessórios em ouro que remetem ao México rural e indígena. Na mesma temporada, a coleção do italiano Roberto Cavalli reinterpreta, em seda e tafetá, os vestidos da região de Tehuantepec imortalizados por Frida Kahlo. As criações do francês Jean Paul Gaultier para a primavera de 1998, por sua vez, foram

inteiramente dedicadas à pintora, com sua imagem exaltada em cores vibrantes, como turquesa e laranja. 131 Em 1521, Hernán Cortez tomou o poder na capital Tenochtitlán, hoje Cidade do México, e pouco depois converteu a civilização asteca em reinado espanhol por três séculos.

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