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A comunicação nos têxteis do mercado global DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

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Academic year: 2019

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Maria Carolina Garcia

Imagens errantes

A comunicação nos têxteis do mercado global

DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Maria Carolina Garcia

Imagens errantes

A comunicação nos têxteis do mercado global

DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

Tese apresentada à banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em Comunicação e Semiótica, sob orientação do Prof. Dr. Norval Baitello Júnior.

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Banca examinadora

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Instruções para dar corda no relógio

“Lá no fundo está a morte, mas não tenha medo. Segure o relógio em uma mão, pegue com dois dedos o pino da corda, puxe-o suavemente. Agora se abre outro prazo, as árvores soltam suas folhas, os barcos correm regata, o tempo como um leque vai se enchendo de si mesmo e dele brotam o ar, as brisas da terra, a sombra de uma mulher, o perfume do pão.

Que mais quer, que mais quer? Amarre-o depressa a seu pulso, deixe-o bater em liberdade, imite-o anelante. O medo enferruja as âncoras, cada coisa que pôde ser alcançada e foi esquecida começa a corroer as veias do relógio, gangrenando o frio sangue de seus pequenos rubis. E lá no fundo está a morte se não corremos, e chegamos antes e

compreendemos que já não tem importância.”

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Agradeço

A Deus, que me fez acreditar e reagir quando tudo parecia impossível.

A São Jorge, meu santo de estimação, cuja coragem e astúcia me inspiram e protegem. À CAPES e à PUC São Paulo, pelo apoio financeiro e institucional.

Ao Prof. Dr. Norval Baitello Júnior, pela orientação precisa e confiança irrestrita. À Jeanette Garcia, pela dedicação carinhosa, fé absoluta e enorme dose de paciência. À Patrícia Douat Garcia, pela presença indispensável e cumplicidade incondicional. A Eduardo Tertuliano de Camargo Garcia, pela força serena e amor ilimitado.

À Ana Paula de Miranda, pela parceria verdadeira e presença ativa nas horas incertas. À Valeska Fonseca Nakad, pelo companheirismo fabuloso ao longo de muitas jornadas. A José Alfredo Silva, por compartilharmos as estradas e bifurcações de Espanha, México e Colômbia graças a “ un amor para toda la vida”.

A Julián Posada, pela amizade onipresente e sabedoria no momento exato.

A Thorstein, Pa Dou, Hershey, Carlota e Lurdinha, por me esperarem sempre em festa. À minha família mexicana, Galán-Picazo-Silva, por me adotarem sem restrições. À minha família colombiana, Posada-Jaramillo-Marquez, pela acolhida incrível. À Profa. Dra. Malena Segura Contrera, pela generosidade alerta e vínculo fraternal. Ao Prof. Dr. José Amálio Pinheiro, Profa. Dra. Kathia Castilho, Profa Dra. Sylvia

Demetresco, Profa Dra. Maria de Fátima Mattos, Profa. Dra. Rosa Maria Galán, Profa. Dra. Emanuela Cappelli, Profa Dra. Regina Root, Prof. Humberto Palacios, Profa. Adriana Bettancourt, Profa Felícia Assmar Maia, pelo suporte intelectual e contribuição constante. À Eva Medalla, Catherine Villota, Maria Inés Strasser, Soledad Hernandez, Ana Lucia Jaramillo, Alfredo Picazo, Montserrat Silva, Luis Giovanni Estrada, Gustavo García-Villa, Héctor Galván, Andrea D’Andrea, Santiago Acosta, Maite Cantero, Jorge Urquijo,

Alejandro Macía, Lorenzo Marquez e Tuti Barrero por dividirem comigo tortillas, arepas e o melhor da cultura popular latino-americana.

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A Oscar Aguirre, Anna Fusoni, Rubén Diaz, Camilo Álvarez, Pepe Reblet, Carlos Alberto Botero, Clara Henriquez, Paula Trujillo, Viviana Velasquez Toro, Martha Calad, Laura Novik, Alex Blanch, Clarissa Guimarães, Danilo Canizares e Erika Rohes, pela cortesia profissional durante o desenvolvimento da pesquisa.

Às equipes de Trista, Epicentric, Fashion Radicals, Huevos & Escovas, Condesa Haus e Hostal San Lorenzo de Aná, por me fazerem sentir em casa, mesmo de seis a nove mil quilômetros de distância.

Às populações nativas dos estados de Oaxaca, Chiapas, Hidalgo, Guerrero e Jalisco, no México; bem como das províncias do Rajasthan e Gujarat, na Índia, pela receptividade carinhosa.

Aos funcionários, docentes e alunos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pelo companheirismo em tempo integral.

A Universidade Anhembi Morumbi, Senac São Paulo, Colegiatura Colombiana, Instituto Politécnico Nacional do México e Universidade ORT pela possibilidade de discutir idéias e pontos de vista com colegas e alunos em cursos e conferências nessas instituições.

Ao Real Gabinete Português de Leitura, Museu do Traje de Lisboa, Museu do Traje de Madrid, Jardins de Alhambra, Costume Institute do Metropolitan Museum of Art, Biblioteca Franz Meyer, Casa Museu Frida Kahlo, Museu Dolores Olmedo, Museu do Templo Mayor da Cidade do México, Museu Nacional de Antropologia, Museu de Antióquia e Jardim Botânico de Medellín, pela atenção durante a pesquisa de campo.

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Dedico

Para minha “família global”, sempre à bordo dos sapatos alados de Hermes,

deus das estradas, mensageiro nômade e padroeiro dos viajantes, aqui e acolá...

E, muito especialmente, para Patrícia Douat Garcia, minha irmã de coração, e Ana Garcia Marques (in memorian), para sempre querida e amada.

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Resumo

Com as Grandes Navegações dos séculos XV e XVI, novos hábitos de consumo foram introduzidos na Europa e nas Américas, já que a ampliação das rotas comerciais intercontinentais permitiu a entrada de produtos raros nesses mercados. Dentre eles, destacam-se tecidos de algodão ornamentados com padrões florais, conhecidos como chitas, que neste estudo são tratados pela ótica da comunicação. Considerados bens típicos de dadas regiões, foram muito apreciados e adquiridos pelos viajantes para confecção de roupas, multiplicando sua presença em vários países e permitindo amplo deslocamento de imagens estrangeiras. Se a comercialização e o uso sugerem a possibilidade de acessar significados culturais considerados inacessíveis, ou seja, de criar um vínculo com o Outro distante, algodões florais desses países supostamente guardariam, nas camadas de imagens errantes, certo patrimônio simbólico.

Esta pesquisa objetiva desvendar de que maneira e em que medida as imagens-souvenir presentes nas chitas estabelecem vínculos comunicacionais com consumidores de distintas culturas, possibilitando uma pós-vida das imagens. Para tanto, utiliza os conceitos de mídia primária e secundária advindos da Teoria da Mídia de Harry Pross, os estudos sobre vinculação comunicativa e iconofagia de Norval Baitello Júnior, e as postulações da Teoria da Imagem difundidas por Hans Belting e Aby Warburg.

No âmbito dos têxteis, uma aparente evolução incentiva o consumo, ou a devoração, de uma imagem pela outra, caracterizando processos de iconofagia. Assim, o estudo acompanha a jornada das chitas no mercado internacional, com o intuito de detectar a presença de imagens em movimento e entender a migração simbólica na estamparia floral.

A reflexão foca-se especialmente no México, partindo das imagens presentes nos têxteis produzidos pelos indígenas zapotecas, comumente escolhidos pela pintora Frida Kahlo para compor sua aparência. A análise considera em que medida elas se mesclam a outras imagens da cultura, resistindo e sobrevivendo, ainda que os intercâmbios de saberes e técnicas artesanais entre os povos venham gerando adaptações para a produção industrial. Ao abordar a presença de imagens errantes e mestiças no guarda-roupa da artista, o estudo investiga os modos pelos quais a imagem pública de Frida Kahlo funciona como ponte para alcançar significados deslocados no mercado movediço do comércio de souvenirs, que, por sua vez, se reabasteceria com simulacros dos vínculos almejados.

A pesquisa conclui que o tecido pode ser considerado uma mídia secundária que se soma ao corpo para expandir sua presença no mundo e vencer a morte, estabelecendo vínculos comunicativos entre culturas e favorecendo a pós-vida das imagens.

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Abstract

The 15th and 16th centuries Great Navigations introduced new consumer habits in Europe and the Americas, for the expansion of intercontinental commercial routes allowed the entrance of rare products in these markets. Among those, there were cotton textiles adorned with flower patterns, known as chintzes, which in this study are referred to under communication optics. Considered as typical goods from certain regions, they were very much appreciated and acquired by travellers in order to manufacture clothes, multiplying their presence in various countries and allowing a large dislocation of foreign images. If commerce and use suggest the possibility of reaching cultural significations previously considered inaccessible, or even the chance of creating a bond with a distant Other, floral cottons from these countries supposedly would keep, inside image layers, a certain symbolic heritage.

This research aims to decipher in which way and to which extent these souvenir -images of chintzes establish communicational bonds with consumers from various cultures, allowing images to have a post-life. In order to do so, it uses the concepts of primary and secondary media from Harry Pross’ Media Theory, the studies on communicational bonding and iconophagy by Norval Baitello Júnior and the postulations on Image Theory spread by Hans Belting and Aby Warburg.

In the scope of textiles, an apparent evolution incentives consumption, or devouration, of one image by the other, characterizing iconophagy processes. Therefore, this study accompanies the chintzes journey in the international market, aiming to detect the presence of moving images and also to understand the symbolic migration in floral printings.

The reflection focuses specially in Mexico, going from images present in textiles produced by zapotec natives, commonly chosen by painter Frida Kahlo to organize her looks. The analysis considers to which extent they mingle with other culture images, resisting and surviving, no matter if the interchange of knowledge and artisan techniques among peoples comes to produce adaptations for industrial purposes. While addressing the presence of erratic and mongrel images in the artist’s wardrobe, the study investigates in which ways the public image of Frida Kahlo works as a bridge to reach significations dislocated in the moving market of souvenirs, which, in turn, would refresh itself with simulacrums of the aimed bonds.

As a result, the research concludes that the textile can be considered a secondary media which adds to the body so as to expand its presence in the world in order to win the battle against death, establishing communicational bonds among cultures and favoring the post-life of the images.

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Sumário

Introdução... 01

Itinerário com escalas... 01

Diário de bordo... 05

Bagagem indispensável... 08

Capítulo 1: Tecido como mídia... 11

1.1 Tramando visibilidades... 11

1.2 Tessituras em trânsito... 23

1.3 Natureza andarilha... 24

1.4 Chita, chitinha, chitão... 30

1.5 A chita e as imagens da cultura... 38

1.6 Por mares nunca dantes navegados... 40

1.7 Percursos de sobrevivência simbólica... 46

1.8 Fluxos de renovação... 50

1.9 Fronteiras entre presença e ausência... 52

Capítulo 2: Buquê iconofágico... 58

2.1 A inconstância das flores... 58

2.2 Movimentos do chintz... 64

2.3 Ligando os pontos... 68

2.4 Semeadura simbólica... 72

2.5 Mestiçagem e iconofagia... 74

2.6 Desembarque na América... 77

2.7 Imagens mestiças... 80

2.8 Ressurreição imagética... 87

2.9 Natureza errante... 96

2.10 Encontros extraordinários... 99

Capítulo 3: Imagens prêt-a-porter... 102

3.1 Contra a imaginação... 102

3.2 Domesticação do imaginário... 104

3.3 O guarda-roupa de Frida... 108

3.4 O universo simbólico das tehuanas... 114

3.5 Imagem e personificação... 118

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3.7 A imagem de Frida nos tianguis... 124

3.8 Réquiem estampado... 128

Considerações finais... 134

As conexões de uma jornada... 134

Imagens-souvenir... 136

Cartão-postal... 137

Referências bibliográficas... 140

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1

Introdução

“Caminhante, não há caminho O caminho se faz ao andar.” - Antônio Machado -

Itinerário com escalas

“Senhores passageiros, estamos em procedimento de descida. Queiram afivelar os

cintos de segurança, pois dentro de 15 minutos estaremos aterrissando no aeroporto

internacional Indira Gandhi, em Nova Délhi”. Era um amanhecer qualquer de abril de 2004, quando a voz metálica da aeromoça estalou nos meus ouvidos, acordando-me para desfrutar de uma imagem quase mitológica: minhas companheiras de viagem se arrumando para a chegada. Embora ainda não fosse a época das monções, o calor me pareceu sufocante para que as indianas usassem as tantas camadas de tecidos estampados e bordados com as quais são fabricados os sáris1. Não foi preciso sequer passar pela aduana para que eu, contudo, também tivesse de recorrer a essas imagens para sobreviver simbolicamente. Antes mesmo da fila de imigração, fui informada pela companhia aérea de que minha bagagem havia sido extraviada, possivelmente durante a conexão em Frankfurt. Como nascemos nus, mas vivemos vestidos, minha primeira providência foi localizar, no mar de turbantes à minha frente, algo que se assemelhasse a uma loja de conveniências para ter o que vestir. Às cinco e meia da madrugada de um domingo, percebi de imediato a dificuldade da missão. Mas, nada como a comunicação corpo-a-corpo. Já dentro do táxi, mencionei o infortúnio ao condutor, que se compadeceu de imediato e pronto ligou para sua família, dona de um comércio de tecidos nas proximidades. No caminho do hotel, parou diante do empório, cujo proprietário não hesitou em abrir as portas. Quando vi as pilhas de sáris dobrados nas prateleiras atrás do balcão – tão distintas das araras comumente encontradas nas lojas ocidentais – o fascínio foi imediato.

O vendedor colocou-me no centro da loja e foi desvendando um universo de

1 Sári é uma tradicional roupa feminina indiana composta de uma pequena choli (miniblusa)e sete metros de

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texturas e cores em tecidos com padrão ornamental floral, que ele insistia em chamar de chintz. Ora, para alguém acostumado a frequentar as lojas populares do centro e da periferia do Brasil, eu estava diante do mais brasileiro de todos os tecidos: a sorridente chita, aquele pano ordinário de algodão usado para forrar colchões e vestir as crianças nas festas dos santos de junho. Enquanto me servia um reconfortante chá com masala2, o comerciante de chintz me fez sentar diante de uma plataforma coberta com um tecido branco perfumado pelo incenso de jasmim. Ali, abriu um sári de chita atrás do outro para minha inspeção, comentando as qualidades do trabalho executado em cada um deles, enquanto eu ouvia, maravilhada, o zunir dos finíssimos algodões balançando em suas mãos. Uma vez desdobrados, os sáris eram cuidadosamente colocados em torno de meu corpo para que eu pudesse sentir o peso ou a suavidade do tecido. A experiência não se resumia à aquisição, mas sim à possibilidade idealizada em imagens mentais de entrar no closet de uma princesa de um reino distante. Afinal, conforme bem coloca BELTING (2007: 83), “intercâmbio entre experiência e lembrança é um intercâmbio entre mundo e imagem”3.

Segundo McLANE (2004), o uso preferencial de roupas ocidentais em ambientes urbanos é tão confinador, hoje, quanto os espartilhos e as crinolinas das viajantes do século XIX, época do surgimento do próprio conceito de viagem: senão para o corpo, certamente para a imaginação. Quando retornei a São Paulo, minha adorável coleção de sáris e salwar kameez4 feitos de chintz hindus jamais migrou para o fundo do armário. Pelo contrário, continuo a vesti-los no dia-a-dia, mesclando-os às peças ordinárias de meu guarda-roupa como elo entre o passado idealizado e o hoje. “A quase incompreensível rede de relações entre lugares e imagens de lugares prossegue naquelas instâncias onde buscamos com os

olhos lugares aos quais nossos corpos não têm acesso”5 (BELTING, op.cit.:82). A imagem-souvenir estabeleceu um forte vínculo fraternal6.

2 É uma tradição no comércio indiano ofertar ao visitante uma xícara de chá com especiarias e leite,

conhecido como masala chai, antes de iniciar qualquer negociação. Este ato de boas vindas estabelece de imediato um vínculo de aconchego, ou maternal, se usarmos a escala de Harlow (1905-1981)como referência.

3“El intercambio entre experiencia y recuerdo es un intercambio entre mundo e imagen”.

4Salwar kameez, roupa típica da região do Punjab, no norte da Índia, é um conjunto de três peças (calça

folgada presa aos tornozelos, túnica e lenço) que constitui a vestimenta diária de muitas mulheres indianas.

5“La casi inextricable red de relaciones entre lugares e imágenes de lugares prosigue en aquellas instancias

donde buscamos con los ojos lugares a los que nuestros cuerpos no tienen acceso”.

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É fato que poucos estudiosos da comunicação se debruçam sobre o tema da mídia primária7, o corpo. Menor ainda é o número de pesquisadores que se dedica à associação da mídia primária e da mídia secundária. Tal fato motivou-nos a buscar compreender melhor o fenômeno das imagens errantes sob a ótica da comunicação, ou seja, daquelas imagens de lugares que vagueiam pelo mercado da comunicação globalizada, especialmente em bens considerados típicos de certas regiões. Conforme coloca BAITELLO (2005), é uma problemática fundamental para a comunicação humana descobrir como se desenvolve uma cultura de imagens ao lado de uma cultura dos corpos e como se comunicam e se inter-relacionam esses dois mundos, ou seja, que tipo de vínculo comunicativo se desenvolve entre eles. “Se a comunicação é construção de vínculos, a cultura é o entorno e a trajetória

complexa dos vínculos, suas raízes, suas histórias, seus sonhos e suas demências, seu lastro e sua leveza, sua determinação e sua indeterminação” (ibidem:08).

Logo, a experiência pessoal instigou-nos a observar que, assim como ocorreu comigo na loja de sáris, os souvenirs têxteis, que neste estudo são tratados pela ótica da comunicação, foram se acoplando aos corpos de viajantes, permitindo amplo deslocamento de imagens estrangeiras desde as Grandes Navegações dos séculos XV e XVI até nossos dias. Isso nos faz indagar, com GRUZINSKI (2001:16), se, de fato, “acelerando as trocas e transformando qualquer objeto em mercadoria, a economia-mundo teria acionado circulações incessantes que alimentam um melting-pot agora planetário”. Desta feita, a presente pesquisa objetiva desvendar de que maneira e em que medida as imagens-souvenir incorporadas por viajantes são apropriadas e deslocadas pelo design de superfície que se concentra em adornos florais. De que forma essas imagens estabelecem vínculos comunicacionais com consumidores cujo deslocamento presencial e conseqüente acesso a tais significados é mediado por corpos em constante trânsito? Como a movimentação de têxteis no tempo e no espaço contribui para a pós-vida das imagens, ao mesmo tempo em que acelera processos de iconofagia e estabelece vínculos comunicativos entre consumidores no mercado global?

capítulo um deste estudo.

7 Os conceitos de mídia primária, secundária e terciária são aqui utilizados no sentido que lhes confere o

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O estudo considera que, graças ao fortalecimento da indústria dos transportes, da comunicação e do entretenimento, viajantes se transformaram em outdoors ambulantes e memória da vivência cultural do destino visitado, que passaram a difundir em fragmentos de sua aparência, especialmente roupas e enfeites8. Buscamos avaliar como essa experiência de imersão cultural a qual se expõem os viajantes, uma vez transformada em imagens que circulam sobre seus corpos, facilita a migração de símbolos e a pós-vida das próprias imagens. Averiguamos também em que medida tais imagens funcionam como pontes para alcançar determinados significados, deslocados nesse mercado movediço, que, por sua vez, se reabasteceria com simulacros dos vínculos almejados. Para tanto, partimos do princípio de que tais viajantes associam mídia primária e secundária mediante o consumo de lembranças do local visitado, ou souvenirs.

Mediante o uso desses bens, surge a possibilidade de acessar significados culturais considerados inacessíveis, ou seja, de vincular-se com o Outro distante. Nota-se que não se trata de uma apropriação dos produtos ou da aparência do viajante em si, mas sim das imagens que neles circulam. Entretanto, se tomarmos como certa a afirmação de BELTING (apud BAITELLO, 2004a:161) de que “observar imagens significa também animá-las”, assim como turistas se apossam de imagens da cultura visitada, também eles têm suas imagens endógenas (presentes nas recordações e fantasias) tanto quanto suas imagens exógenas (elaboradas no corpo e em adornos) devoradas. Isso porque corpos e tecidos se convertem em suportes entrelaçados para garantir a pós-vida das imagens e assim vencer simbolicamente o esquecimento ou o desaparecimento. Ou seja, as imagens têxteis auxiliam os humanos a suplantar o medo da morte.

Se, para tanto, o consumo e o uso sugerem a possibilidade de acessar significados culturais considerados inacessíveis, ou seja, de vincular-se com o Outro distante, a análise

8 Segundo levantamento realizado pela Organização Mundial de Turismo, na década de 1990 o crescimento

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enfoca os deslocamentos de imagens presentes na natureza e na cultura de países como Brasil, Índia, Inglaterra, Espanha, Portugal e, sobretudo, México. Têxteis adornados com flores provenientes dessas localidades, os quais adquiriram notoriedade no mercado internacional, são esmiúçados quanto aos padrões e formas de adornos, estabelecendo ligações com imagens arcaicas e mitológicas. A seleção desses itens em particular se dá pela afinidade da autora com o tema, conforme já exposto acima, bem como pelo fato desse material ser muito popular na fabricação de produtos de moda e decoração nos países mencionados. Como tais bens são comumente adquiridos por turistas enquanto souvenirs e mesmo presentes (as chamadas “lembrancinhas”), contribuem na construção da própria imagem dessas nações no exterior. Com o foco nesse corpus, procuramos avaliar em que medida o design de superfície interconecta imagens e mescla elementos de várias culturas em produtos feitos com chitas, chitinhas e chitões, ora estampados, ora rebordados com técnicas que lhes agregam texturas numa formidável mistura cabocla.

Diário de bordo

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Todavia, as imagens precisam de um meio, ou médium, nas palavras de Belting, para se transportarem. Para BELTING (2007), toda imagem visível está necessariamente inscrita em médium de suporte ou de transmissão. São médium que nos permitem perceber as imagens e, nesse caso, o corpo humano volta ao centro do debate como meio privilegiado, visto que ele mesmo produz imagens internas em sonhos e fantasias. Neste estudo, entendemos o design da chita como médium de imagens da cultura das localidades onde é produzida e comercializada. Parece-nos interessante observar como se relacionam e se inseminam mutuamente os textos da cultura no design de superfície dessas chitas, especialmente focando nas andanças desse material com o advento das Grandes Navegações dos séculos XV e XVI. Isso porque, se o mesmo produto está sendo oferecido em todas as esquinas do planeta, a atmosfera de imitação gera ambiente propício à busca de vitalidade pelas imagens entre latitudes e longitudes. Essa vitalidade se encontra, por sua vez, na comunicação horizontal, bastante presente no vínculo fraternal, ou seja, no compartilhar desses materiais para o (re) conhecimento do Outro mediante as imagens da cultura. Então, buscamos contextualizar a chita no roteiro das grandes conquistas marítimas, situando o recorte no conjunto das andanças desse material têxtil. Tais deslocamentos têm como protagonista a busca de riquezas e o comércio de bens estrangeiros naquele período, propiciando avaliar em que medida as chitas se colocam à serviço da pós-vida das imagens e dos vínculos comunicativos, e considerando-as conforme os estudos de Aby Warburg e Norval Baitello Júnior.

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distintos espaços. Outras técnicas de adorno, como os bordados, são fabuladas em dobras e curvas que trazem à superfície do pano uma mescla de imagens endógenas e exógenas, do próximo e do distante, do nativo e do estrangeiro, do aqui e do lá. As mitologias hindu e mesoamericana constituem o patamar privilegiado de acesso a esses percursos, avaliando símbolos florais e a respectiva migração de mitos nas imagens que flutuam em panos estampados.

Percorrendo as rotas dos grandes descobridores portugueses, dos corsários ingleses e dos conquistadores espanhóis, observamos nos capítulos anteriores que um dos maiores tesouros encontrados nas naus eram as imagens das conquistas presentes no algodão estampado, muitas delas usadas para estabelecer contínuas relações de poder. No terceiro capítulo, a pesquisa envereda pelas diferenças que a chita assume no mercado mexicano graças à inclusão de outra imagem no processo de vinculação afetiva: a da celebridade. Observando a inserção de adornos florais de distintas etnias no look da pintora mexicana Frida Kahlo, vemos brotar imagens “prêt-a-porter”, ou seja, “prontas para usar”, em souvenirs destinados ao consumo de massa. Tais souvenirs reelaboram essas imagens errantes, particularmente em termos do conhecimento em botânica e mitologia mesoamericana. Isso ocorre com vistas à venda nos “tianguis”, os mercados indígenas mexicanos visitados por turistas estrangeiros, que contribuem para acelerar o deslocamento de imagens entre culturas. Estudando como a artista construiu uma aparência pessoal peculiar mediante o uso do padrão ornamental floral presente na indumentária típica das “tehuanas”, como são chamadas as indígenas zapotecas do istmo de Tehuantepec, investigam-se como se dão os processos de iconofagia e de consumo de imagens midiáticas nesses espaços comerciais.

“O potencial construtivo ou destrutivo das intervenções sociais e culturais por meio

das imagens pode ser imenso, quando elas corporificam uma relação viva entre o homem e

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enfatizam as oscilações mestiças no repertório imagético que celebridades mitológicas, como a pintora Frida Kahlo, fazem desse material têxtil. Nessa última etapa, o estudo procura reoperar as relações observadas para poder traçar como as imagens endógenas e exógenas são apropriadas, operacionalizando um sistema de vínculos comunicativos que também apresenta aspectos sombrios.

Bagagem indispensável

Mas, de que forma a imagem se ocupa de banir o original do qual se torna sósia, tornando-se ela própria referência para o estabelecimento de vínculos comunicacionais? Para mergulhar na questão, o presente estudo utiliza os conceitos de mídia primária e secundária advindos da Teoria da Mídia de Harry Pross, os estudos acerca de vinculação comunicativa e iconofagia de Norval Baitello Júnior e as postulações da Teoria da Imagem difundida por Hans Belting e Aby Warburg. Esta vertente da Semiótica da Cultura propõe uma visão integradora de conceitos como imagem, mídia, cultura e comunicação, aceitando a contribuição de diferentes áreas do conhecimento. Há etólogos, antropólogos, psicólogos, filósofos, sociólogos e comunicólogos, entre outros profissionais, cujo aporte é levado em conta para os complexos processos da comunicação cultural.

A Teoria da Imagem origina-se nos estudos de Hans Belting, historiador da arte e estudioso da comunicação alemão. Sua obra Antropologie des images (publicada originalmente em alemão com o título Bild-Anthropologie: entwürfe für eine bildwissenschaft, em 2001) define conceitos e inaugura novos estudos nesse campo do saber, os quais vêm sendo aprofundados no Brasil pelo professor Norval Baitello Júnior. Antes dele, os estudos pioneiros do pesquisador alemão Aby Warburg (1866-1929) consideraram a imagem como responsável pelo trânsito de mitos entre culturas, contribuindo para a construção e divulgação de arquétipos universais. Nesse sentido, as reflexões do filósofo alemão Dietmar Kamper (1936-2001), mestre tanto de Belting quanto de Baitello, igualmente trazem enormes aportes para nosso estudo. Ele lecionou na Universidade de Marburg e posteriormente na Universidade Livre de Berlim, onde debruçou-se sobre o estudo da transformação do corpo numa imagem do corpo.

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política Harry Pross (1923-2010). Nascido em Karlsruhe, na Alemanha, Pross foi redator-chefe da Rádio Bremen e professor emérito da Universidade Livre de Berlim. No clássico de 1971, Medienforsghung, ele propõe uma classificação do sistema de mediação que nos auxilia a delimitar o corpus desta pesquisa tomando os corpos de viajantes e os objetos acrescidos a eles como médium das imagens que buscamos analisar. “Toda comunicação

humana começa na mídia primária, na qual os participantes individuais se encontram cara a cara e imediatamente presentes com seu corpo; toda comunicação humana retornará a

este ponto” (PROSS, 1971:128). Se o homem deixa sinais para demonstrar suas crenças, as idéias de Edgar Morin são também fundamentais para nos auxiliar a definir a cultura como o espaço onde ocorrem os processos sociais, entendendo-a como um fenômeno comunicacional repleto de mitos, ritos, invenções, alucinações e criações imaginárias. Para MORIN (1990: 15), a cultura “(...) constitui um corpo complexo de normas, símbolos,

mitos e imagens que penetram o indivíduo em sua intimidade, estruturam os instintos,

orientam as emoções”. Enfim, nela reside toda a produção simbólica do ser humano, um animal capaz de abstrair e sonhar acordado. Um animal apto a criar e a perceber imagens.

Além do aprofundamento da obra desses teóricos da comunicação e da mídia, a pesquisa lastreia-se igualmente num extenso trabalho de investigação de campo com recolhimento de dados secundários, amostras e documentação fotográfica conforme roteiro percorrido pela chita a partir das Grandes Navegações, tendo como parâmetros as principais rotas, a origem do produto têxtil e os mais importantes portos no roteiro dos navios. Recortando a origem de fabricação dos têxteis, investigamos especialmente os produtos oriundos da Índia, Portugal, Inglaterra, Espanha, França, Tanzânia, Holanda, Brasil, Colômbia e México. Com o mesmo intuito, averiguamos os principais portos de distribuição como vetor de confluência e trânsito de imagens, a saber: Sevilha, na Espanha; Manila, nas Filipinas; Veracruz e Acapulco, no México; Cartagena, na Colômbia; Salvador, no Brasil; Lisboa, em Portugal; Zanzibar, na Tanzânia; e Surat, na Índia. A partir do recolhimento de amostras e documentos, procedeu-se a análise dos mitos que circulam nas imagens veiculadas pelos tecidos estampados, atentando para a força da cultura e para a elaboração de outros vínculos potenciais.

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cujas imagens flutuantes no design de superfície se apropriam de épocas e lugares, resultando num procedimento iconofágico. Ou seja, têxteis estampados e bordados devoram com suas imagens outras imagens, de outros tempos e, sobretudo, de outros espaços, representados por meio de imagens de viajantes, corpos-outdoor que se deslocam perenemente a trabalho ou a lazer. “Quando portam valores, elas (as imagens) sustentam os vínculos entre o homem e suas raízes culturais e históricas. Quando se esvaziam, trazem

à tona e demonstram o esvaziamento e a perda de um símbolo diretor” (ibidem, idem). Isso seria um incentivo à apropriação dessas imagens, visando consolidar o procedimento mercadológico de masstígio, ou seja, de aparente doação de prestígio para as massas, resultando num infinito reciclar imagético. Afinal, como bem coloca BAITELLO (ibidem: 17), “o medo da morte é o que nos conduz a emprestar a vida e a longa vida aos símbolos”.

Ora, estamos falando de comunicação verticalizada, daquela que, como assegura PROSS (1980), divide o mundo em quadrantes (alto e baixo, direito e esquerdo) e hemisférios (norte e sul, leste e oeste), pontuando uma provável perversidade a ser equacionada quanto às imagens sombrias do empório global. Por questões de foco, contudo, a pesquisa não aborda se tais vínculos seriam ou não um incentivo à apropriação dessas imagens primeiras pela comunicação publicitária de marcas estabelecidas visando a consolidação do procedimento mercadológico de masstígio. Tampouco se concentra nas consequências da pós-vida das imagens para a indústria da moda e da publicidade. Nem mesmo se dedica a esmiuçar imagens presentes no conjunto da obra da pintora mexicana Frida Kahlo. A investigação antes propõe um mergulho no farfalhar colorido dos algodões estampados, tanto de Frida quanto de mulheres anônimas dos países visitados, para melhor entender a determinação humana de construir e compartilhar imagens, sempre entretecidas nos mais belos adornos. Para BELTING, (op.cit.: 177-178), precisamente “nisso se radica

o sentido de uma antropologia das imagens que indaga nas origens buscando compreender

os mecanismos simbólicos que seguimos em nosso trato com imagens”9.

9“En esto radica el sentido de una antropología de las imágenes que indaga en los orígenes buscando

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1

Tecido como mídia

“Trago dentro do meu coração Como num cofre que não se pode fechar de cheio

Todos os lugares onde estive Todos os portos em que cheguei Todas as paisagens que vi (...) sonhando E tudo isso, que é tanto, É pouco para o que quero” - Fernando Pessoa –

Tramando visibilidades

Descobertas em distintos sítios arqueológicos ao redor do globo terrestre apontam que os dons de fiar e tecer são indissociáveis da vida humana desde o Paleolítico1.

Acompanhando o homem do nascimento à morte, trouxas de pano embalam bebês, embrulham pertences e cobrem defuntos2. Os ancestrais dessas primeiras investidas no

ramo têxtil foram os entrelaçamentos de fibras vegetais e animais, originalmente focados na fabricação de cestos. Mas a contínua experimentação de desenhos e a construção de teares acabaram por engendrar novas texturas, permitindo a obtenção de telas flexíveis que deram origem aos tecidos. A palavra tecido, do latim texere, era amplamente utilizada pelos romanos para designar o ato de construir, trançar ou enredar. Graças a essas múltiplas interpretações, o termo foi empregado para todo e qualquer invólucro capaz de expressar e

1

Segundo CORDÓN (1988:59), os hominídeos, que até então viviam em árvores suportados por pés e mãos, transferiram seu habitat para as savanas precisamente no Paleolítico. A vida em espaços rasteiros abertos impeliu-os a uma postura ereta e à ampliação do uso da visão. Formou-se no inconsciente o mito da queda, ou seja, a idéia de que aquilo que está abaixo é ruim ou negativo, visto que o fato de descer das árvores gerou o medo representado por ameaças terrestres à espreita. Nos termos da comunicação, PROSS (1980) também considera a verticalidade, nesse sentido, como divisor de águas. Com a verticalidade, a massa encefálica e a atividade cognitiva se desenvolveram: o ser humano passou a se confrontar com sua habilidade artística, potencializada nas pinturas em cavernas como também no fabrico e decoração de utensílios.

2 PEZZOLO (2008:13) assinala a importância do trabalho da antropóloga Olga Soffer, professora da

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2

estender a presença humana no mundo: de cabanas a cestas, de tapetes a véus.

Ao desenvolver essas tramas, o homem encontrou outras formas de materializar as paisagens de sua existência, promovendo sua capacidade comunicativa. Isso porque, seguindo os parâmetros de PROSS (1971), podemos entender tais tessituras como mídias. No clássico Medienforsghung3, o comunicólogo alemão propõe uma classificação do

sistema de mediação a partir de três grupos distintos: mídia primária, mídia secundária e mídia terciária. O corpo humano é considerado por ele como a primeira de todas as mídias. Centrado no presente e ocupando um espaço tridimensional, é plenamente capaz de dispensar aparatos em seu processo comunicativo. Todavia, o desejo de vencer a morte exige sua própria expansão além das fronteiras espaço-temporais. Para tanto, o corpo utiliza-se de outras mídias, que Pross conceitua como secundárias e terciárias.

Na mídia secundária, o emissor necessita de um suporte para a mensagem, como é o caso da escrita, da pintura, da fotografia e, seguramente, de qualquer material têxtil com o qual roupas e adornos possam ser fabricados. Os fios se trançam sob bordados e estampas registrando modos de vida, da mesma forma que o papel recebe a tinta e documenta um momento preciso com marcas que sobrevivem mais do que o próprio autor da mensagem. Como o receptor não precisa de aparato algum, trata-se de uma mídia que perpetua o tempo, na qual o espaço é bidimensional. Diferentemente, na mídia terciária tanto o emissor quanto o receptor necessitam de aparatos para o entendimento mútuo, como ocorre com os meios dependentes da eletricidade, incluindo a televisão, a telefonia celular ou os computadores em rede. Logo, neste estudo entendemos o tecido como mídia secundária, pronta a atuar como suporte para o deslocamento de imagens.

É interessante notar que características como peso, flexibilidade, espessura, reação à luz e outros elementos ambientais propiciam aspectos de mobilidade, temperatura, envelhecimento e textura que aproximam essa mídia secundária, o têxtil, da própria mídia primária. Há certo grau de corporeidade no tecido que altera ou enfatiza tanto a gestualidade quanto a aparência humana. Assim, é possível perceber que o corpo representa

3 A obra de Harry Pross é continuamente apresentada pelo professor Norval Baitello Júnior em suas aulas no

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3

a si mesmo ao utilizar o têxtil como mídia no intuito de permitir sua auto-expansão, ao mesmo tempo em que reflete, com a imagem construída, percepções do seu entorno. Isso porque, antes mesmo de serem formatados como roupa, os tecidos se diferenciam materialmente entre si, o que também distingue a forma como suportam imagens. Veludos invariavelmente são pesados e encorpados, algodões podem ser leves e transparentes, sedas revelam brilho e maciez. A textura de suas fibras e fios provoca distintas sensações junto ao corpo, como o grau de transparência ou opacidade, maciez ou aspereza, mobilidade ou retenção, delicadeza ou resistência. Esses elementos permitem que as imagens neles presentes produzam nuances e efeitos de sentido diferentes, revelando que a escolha de um ou outro têxtil como suporte é relevante para a elaboração imagética. Tal situação é visível no relato de McLANE (op.cit.: 33), jornalista especializada em turismo, quando diz que:

“Eu procuro usar a moda do lugar onde estou porque, assim como comer,

vestir as roupas dos residentes é a mais íntima e autêntica experiência de viagem que eu possa conceber. Em trajes pouco familiares eu ando de modo diferente. Sinto o peso e o farfalhar dos tecidos de um jeito inesperado. Descubro novos olhos para me enxergar. Aí eu volto para casa, desfaço as malas cheias de roupas de seda multicolorida e despenco na depressão. Numa paisagem de modelos sérios e tons neutros quero continuar usando essas coisas brilhantes e bonitas que, ao se enrolarem em mim e enveloparem meu corpo, transportam-me de volta aos lugares nos quais estive. Mas o sári e as sandálias vão parecer ridículos enquanto eu estiver correndo para pegar o metrô. Então eu faço uma edição rude e escolho peças – como a estola fúcsia que comprei de uma comunidade de tecelãs no Laos – capazes de cruzar as fronteiras da alfaiataria. Quando eu a jogo sobre meu ombro e caminho por uma rua de Nova Iorque, entro num reino atemporal, a milhas de distância de qualquer Banana Republic4”.

especialmente aquelas em torno de sua obra ainda inédita em português, como é o caso de Medienforsghung.

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Conforme BELTING (2008)5, toda imagem necessita de uma mídia para ser

transportada, senão se manteria isolada em processos mentais, ou imagens endógenas, ligadas à fantasia e aos sonhos individuais. Reportando-se aos antigos cientistas árabes, ele enfatiza que a imaginação ocorre dentro do corpo, para o qual a porta de entrada é o olhar, ou seja, o despertar de memórias e recordações que engatilham percepções do mundo, segundo observamos nas colocações de McLANE (op.cit.). De acordo com FEMENIAS (2005: 105): “um traje bordado é um exemplar „souvenir do exótico‟ (...), pois é tanto espécime como troféu, tanto exterior e estrangeiro como também íntimo, interior e pessoal”6. É possível admitir, nesse caso, que as imagens mentais precisam do corpo, entendido como mídia, para existir. Portanto, nesse estudo o corpo é compreendido como uma mídia para as imagens endógenas. Igualmente, carrega em si imagens exógenas, como é o caso dos tecidos e da moda criada a partir deles. Ainda que confeccionados em materiais perecíveis, invariavelmente sujeitos a condições de conservação precárias e ao uso constante, os tecidos incorporam, carregam e comunicam valores, crenças e sentimentos, em boa parte expressos nas imagens que circulam na sua superfície, e que sobrevivem além daqueles que as criaram. No México, os indígenas huichol7 utilizam imagens da natureza, incluindo plantas e animais por vezes evocados em transes induzidos, para compor sua aparência mediante estampados, bordados e outros adornos (figura 1). Isso ocorre inclusive quando circulam em ambientes urbanos, fora do território nativo, onde a decoração têxtil tem a especial função de protegê-los. Como detalha ROMERO (2009:51), “num determinado momento, o homem passa a querer escapar de sua animalidade e acrescenta a seus movimentos corporais um significado, ele age não só sobre o real, mas também sobre o irreal”.

5 O professor Hans Belting ministrou uma aula especial para membros do CISC (Centro Interdisciplinar de

Semiótica da Cultura e da Mídia) em 31 de agosto de 2008, durante visita ao Brasil. As reflexões citadas foram extraídas dos ensinamentos compartilhados nessa ocasião.

6“An embroidered garment is an exemplary „souvenir of the exotic‟ (...), as it is both a specimen and a trophy, both exterior and foreign but also intimate, interior, and personal.” A versão para o português é de responsabilidade da autora. Doravante, quando não indicada a autoria da tradução nas referências

bibliográficas, considere-se da mesma maneira.

7 Os huichóis ou wixáritari são um grupo indígena do México central, que habita a Serra Madre Ocidental nos

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5

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Na cultura zapoteca8, o design de estamparia também funciona como proteção

contra feitiços e mau-olhado (RODRIGUEZ, 2002: 117). Nesse sentido, seguindo os preceitos de Pross e Belting, é possível dizer que as imagens presentes nos têxteis constituiriam uma metáfora da própria fragilidade humana e do enfrentamento em relação ao medo da morte. Na elaboração dessas imagens, como veremos com maior aprofundamento no capítulo dois deste estudo, há um instinto de sobrevivência simbólica, estreitamente ligado à cultura. Estudiosos como Edgar Morin, Harry Pross, Ivan Bystrina, Régis Debray e Vilém Flusser concebem que a cultura, nascida do temor em torno da morte, é um universo simbólico construído, mantido e transmitido pelo homem. Para superar o trauma da separação e insuflar a crença na imortalidade individual ou coletiva de que nos fala MORIN (1970: 147), o ser humano transplanta para o mundo das imagens suas memórias afetivas, suas crenças, seus valores e idéias. Inconformado com o fim9, cria o

símbolo, virtual possibilidade de reencontro, dando às imagens significado e presença. “Símbolos são grandes sínteses sociais, resultantes da elaboração de grandes complexos de imagens e vivências de todos os tipos. Por isso, as imagens evocam os símbolos e, ao evocá-los, os ritualizam e os atualizam” (BAITELLO, 2005:17). Symbolon, do grego symballein, significa justamente reunir, aproximar, colocar junto. Dessa feita, concordamos com ROMERO (op.cit.) quando pondera que todas as culturas criam um universo

simbólico para preencher esse “vazio”, que Morin chama de segunda existência, e Bystrina10, de segunda realidade.

8 Os zapotecas, nativos do sul do México, constituem uma das mais importantes civilizações

pré-colombianas. A cronologia arranca na pré-história, porém os zapotecas pertencem ao período clássico entre 100 a.C. e 800-900 d.C. Seu apogeu deu-se justamente no período clássico, tendo Monte Albán e Mitla como principais centros cerimoniais. A partir do século IV ocuparam a região situada entre o istmo de Tehuantepec e Acapulco, fixando-se posteriormente em Oaxaca.De Teótitlan Del Valle, primeira aldeia zapoteca de vocação tecelã surgida em torno da capital, Monte Albán, expandiram-se para Macuilxochitl, Tlacolula, Tlalixtac, Zaachila, Tlacochaguaya, Lachixolana e Gullache, compreendendo uma área territorial de 400 km2 de leste a oeste e 250 km2 de norte a sul. São contemporâneos dos maias, mixtecas e teotihuacanos (astecas ou mexicas, a quem pagavam tributos, muitas vezes em têxteis e tinturas naturais).

9 Para MORIN (op.cit.: 21), a morte “é o traço o mais humano, o mais cultural do anthropos”. No original,

lê-se:“la mort c´est le trait le plus humain, le plus culturel de l‟anthropos”.

10O autor destaca duas „realidades‟, com respeito a algo que funciona e que está em torno de nós. A primeira

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Para MORIN (op.cit: 115-116), essa intolerância à finitude faz com que o homem se aproprie duplamente da técnica e da magia na ânsia de vencer a morte. Artesãos e indústrias têxteis tecem imagens que vão além da existência individual ou do contexto social em que foram produzidas. Aumentando sua durabilidade mediante certa navegação no tempo e no espaço, impelem-nas, assim, a uma pós-vida, ou “Nachleben”11, para utilizar o termo

adotado por WARBURG (1995) em seu projeto Mnemosyne12. Warburg desenvolveu o

conceito de “Nachleben” para explicar a sobrevivência da imagem e sua habilidade em construir pontes espaço-temporais entre culturas, uma vez que o próprio entendimento da morte em culturas distintas pressupõe o surgimento de símbolos em contextos variáveis. Na visão desse pesquisador, as imagens condensariam determinados valores e contextos expressivos que, uma vez transportados e reaproveitados em outros ambientes culturais, romperiam a continuidade histórica. Imagens formadas por motivações psíquicas, relacionadas a dada época e lugar, seriam reorganizadas em função de novo contexto uma vez levadas para o interior de outras culturas.

Retomando os caminhos percorridos por Warburg, também BELTING (2006) entende que a grande questão com relação às imagens diz respeito à sua incorporação. Para esse autor, é um tema fundamental no contexto da comunicação humana investigar os processos pelos quais ocorre a migração e o engaste de imagens numa nova mistura, capaz de fazê-las perdurar. Isso implica em analisar como se associam as idéias de contágio e de contato no ressurgimento de conteúdos imaginários. Aprofundando tal percurso intelectual, GEBAUER (2006: 25) identifica duas formas pelas quais as imagens perdurariam além do tempo da vida humana. A primeira abrange o tempo de vida de uma imagem, cujo conteúdo simbólico, expresso numa presença material, sobreviveria ao longo do tempo, gerando um efeito contínuo sobre seus observadores. Nesse sentido, é notável que alguns tecelões

11 A forma como Warburg aplica a palavra alemã “Nachleben” gerou discussões em torno de seu sentido em

obras posteriores de AGAMBEN (1984), GOMBRICH (1986) e DIDI-HUBERMAN (2002). Para GOMBRICH (1986:16) e DIDI-HUBERMAN (2002: 52), o equivalente mais próximo seria a idéia de

“sobrevivência”, embora haja controvérsias no uso desse termo em virtude de aplicações prévias pelo

etnólogo britânico Edward B. Tylor. AGAMBEN (1984:55), por sua vez, descarta essa possibilidade tanto

quanto a palavra “renascimento”. Para ele, “Nachleben” implica a idéia de continuidade de certa herança

pagã, cara ao pesquisador alemão e não necessariamente presente no conceito de sobrevivência de Tylor, como também observa o próprio Gombrich em sua biografia intelectual de Warburg.

12 O “Bilderatlas Mnemosyne” concebido por Warburg condensa visualmente os modos pelos quais certos

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optem por aplicar adornos numa superfície já tecida, na maioria das vezes inspirados pelo refinamento e pelos significados da ornamentação corporal, dando origem aos estampados e bordados multicoloridos, bem como ao uso dessa mídia como lugar de um relato coletivo. É o caso das tehuanas, indígenas zapotecas do istmo de Oaxaca, México, que rebordam sobre veludo ou cetim padrões florais de panos populares: copos de leite, girassóis, gerânios, orquídeas e, especialmente, magnólias, margaridas, jasmins e rosas, sendo que cada flor possui um significado específico13. Esses mesmos tecidos, por sua vez, são usados para constituir o forro de blusas e saias destinadas às cerimônias e festas daquela comunidade. É interessante notar que esses trajes, contudo, obedecem à lógica típica do sistema de moda ocidental, que se baseia no consumo incessante de novidades. Uma vez utilizadas durante determinada celebração, as saias e blusas das tehuanas são abandonadas em prol de novos estilos. Cada peça descartada é desmanchada ou destinada à venda nos “tianguis”, os mercados indígenas voltados ao comércio de souvenirs para turistas. O dinheiro obtido reverte na compra de outras chitas cujos desenhos serão rebordados, mantendo a sintonia das tehuanas com o progresso, enquanto os turistas levariam para casa imagens de segunda mão.

Por outro lado, habitantes dos estados do México, Guerrero e Hidalgo produzem itens exclusivos para seu uso pessoal e outros específicos para revenda, muitos dos quais são inspirados em têxteis industrializados. Em entrevista individual14 durante acompanhamento de seu trabalho no mercado de Coyoacán, na cidade do México, a indígena Filomena Mazahua, da etnia mazahua15, revela que produz duas variações da mesma imagem floral nos tecidos que adorna (figura 2). Uma, exclusiva para seu uso pessoal, inclui padronagens que evocam símbolos místicos de sua comunidade, voltados à sua própria proteção espiritual. Nesse caso, o trabalho de desenhar e bordar flores sobre o tecido escolhido para si pode levar até seis meses. Outra, destinada ao comércio externo, é uma mandala simplificada do mesmo padrão floral, cujo risco é extraído de têxteis

13 O estudo detalhado do significado dos padrões florais será conduzido no capítulo dois deste estudo. 14 Entrevista não-estruturada realizada em 23 de janeiro de 2009 mediante observação participativa no

mercado de Coyoacán, Distrito Federal, México.

15 Os mazahua estão dispersos no norte, centro e região ocidental do estado do México, além de algumas vilas

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destaca-9

industrializados com o objetivo de economizar tempo: a artesã não dedica mais do que um mês a cada peça. Essa flor é repetida inúmeras vezes para criar uma barreira protetora entre vendedor e comprador. Assim, a cultura é apenas parcialmente involucrada no produto.

Segundo Filomena Mazahua, as flores manifestam a extrema diversidade do universo, a profusão e a nobreza das dádivas divinas, exprimindo fases específicas das relações entre os deuses e os homens. Logo, seu uso por indivíduo fora da comunidade profanaria tais relações. Para migrar, as imagens precisam se disfarçar no ritmo da repetição que estabelece uma narrativa hipnótica e dispersa o olhar daquele que é considerado um invasor, ou seja, o estrangeiro. Essa situação é particularmente clara na indumentária étnica e na sua absorção pela indústria da moda e do turismo. Nesse sentido, a segunda possibilidade destacada por GEBAUER (op.cit.) considera justamente a produção material da imagem sem se preocupar com sua origem (no exemplo anterior, o tecido industrial), mas com o impacto de sua repetição, tanto sobre o observador quanto sobre o criador. Com respeito a essa posição, observamos que há mestres artesãos que se mostram mais envolvidos com o efeito das técnicas de produção conforme mesclam diferentes texturas e cores. O encantamento é ligado às variações capazes de externar imagens particulares daquele criador. Uma vez expostas ao ambiente público, passam a compor memórias coletivas que, por sua vez, são trasladadas a outros espaços: o corpo, a casa, o mercado, a aldeia, a metrópole.

Quanto maior for o campo de relações, mais rica será a tessitura imagética. Desse encontro entre imagens errantes do passado e do presente podem surgir faíscas novas, com várias temporalidades se acotovelando em estado de fronteira e convivendo com o risco e com a morte incessantemente. Essas imagens promovem interações com o contexto em que são produzidas e consumidas, criando novas zonas de contato para relacionar-se com as

chamadas “séries culturais”. Nessa tessitura nenhuma das manifestações funciona isoladamente. As imagens ganham complexidade pelo movimento, tramitando outros textos e permitindo que a cultura se dirija contra o esquecimento. A riqueza, sem dúvida, está na conexão entre os componentes desse mosaico e na capacidade de constituir outras texturas, com a inquietante alusão de uma imagem à outra.

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Parecendo ecoar a posição de Filomena Mazahua, DEMARAY (2005: 148) avalia que “têxteis elaborados para turistas raramente incluem as peças específicas dos trajes que as mulheres tecem e usam, e eles variam largamente em cores, motivos, e fibras”16. Por meio do compartilhamento de imagens há, portanto, uma relação hierarquizada e plena de regras, onde os modos de produzir e de consumir são determinados por imagens em movimento. FEMENIAS (op.cit.: 106) observa que “a comoditização da imagem caminha lado a lado com a comoditização dos objetos que os estrangeiros consideram parte dela”17. O fio dessa meada dá a medida da profusão de imagens que se deslocam entre espaços geográficos e sociais, em especial a partir do momento em que os têxteis são criados com vistas não só ao consumo da comunidade em que são produzidos, como também ao comércio massivo nas grandes cidades.

O movimento das imagens é constante e também ocorre, por exemplo, com os

“huipiles”18 e batas adornados com flores de origem maia. Produzidos na zona de Chiapas, México, por membros da própria etnia, são revendidos em zonas turísticas da capital federal (figura 3). É fundamental salientar o aspecto sagrado que o ato de tecer envolve nas culturas pré-hispânicas. Por mais de três mil anos as mulheres maias da América Latina vêm criando suas próprias roupas em teares. De acordo com a mitologia maia, Ixchel, a deusa dos tecelões, teceu o cosmos e presenteou seu povo com o tear. “Assim, para uma mulher maia, tecer é um ato de lembrar, que ela identifica com sua própria herança e cultura cada vez que se ajoelha diante de seu tear”19 (DEMARAY, op.cit.: 147). Mesmo hoje, antes de cada nova criação, as descendentes dos maias rezam para Ixchel pelo sucesso do empreendimento e, ao morrer, são enterradas com seu tear, o que dá a medida da importância simbólica do ato de tecer imagens em fios. Sobretudo, imagens florais, intimamente conectadas com os movimentos cíclicos da vida e em contínuo litígio com a imobilidade.

16“Textiles woven for tourists rarely include the specific pieces of „traje‟ women typically weave and wear,

and they range widely in the colors, motifs, and fibers”.

17“The commoditization of the image goes hand-in-hand with the commoditization of objects that outsiders

consider part of it”.

18Huipil”, que em nahuatl significa blusa ou vestido, é uma peça de tecido quadrada, costurada dos lados,

com uma abertura central para a cabeça. É usada por indígenas maias, zapotecas e de outras etnias do México, Guatemala, Belize, El Salvador e demais países da América Central.

19“Thus, for a Maya woman, weaving is an act of remembrance, one she identifies with her heritage and

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Figura 3– Detalhe de bordado em bata destinada ao consumo massivo, externo à comunidade, produzido na região de Chiapas por artesãs de etnia maia e revendido nos bazares de centros turísticos. Oaxaca, México, outubro de 2008.

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fechando conforme se passam os dias. Para os maias, portanto, k‟in também fala dos movimentos cíclicos da natureza da qual os humanos fazem parte. Logo, nada mais importante do que ter o corpo integrado ao cosmos por meio das vestes adornadas com flores.

Tessituras em trânsito

Entender a caminhada de homens e imagens pelo mundo mediante o estudo de tecidos pressupõe a análise dos símbolos presentes nesse suporte e dos modos pelos quais eles se movimentam entre culturas. Logo, investigar a idéia de migração de imagens têxteis nas ciências da comunicação requer certa reflexão sobre deslocamento e um retorno à

etimologia da palavra viagem: os vocábulos latinos “via”, ou caminho; e “viaticum”,

relativo ao dinheiro para afrontar as dificuldades da jornada. Isso porque, embora a estrutura básica dos processos de tecelagem venha sendo preservada num longo ciclo evolutivo em vários pontos do planeta, foi com a expansão do comércio internacional, capitaneada pelas Grandes Navegações do século XV, que as imagens têxteis passaram a circular amplamente pelo globo terrestre, como adjuvantes da luta pelo poder político e econômico que caracterizou o domínio europeu. Dessa feita, a pesquisa que aqui se apresenta busca retomar certas rotas de navegação marítima, bem como os investimentos feitos nesses transbordos, no intuito de compreender os processos de trânsito das imagens entre culturas.

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terras, gerando trânsitos imagéticos mais lentos embora, evidentemente, eles também existissem.

DENNY (2007: 183) relata que “alguns veludos europeus eram tão populares no Oriente Médio no século XV que os tecelões da Anatólia na realidade produziam tapetes ecoando seus desenhos e cores”. Esses veludos, por sua vez, incorporaram motivos de tulipas e alcachofras da Turquia. Na verdade, Veneza era a principal porta de entrada para o Oriente naquela época, dada sua posição geográfica e antiga tradição mercante de via marítima. A imitação de tapetes islâmicos nos séculos XIV e XV ocorreu inicialmente na Espanha e depois na Grã-Bretanha e França. Enquanto as sedas circularam nas duas direções (leste-oeste e vice-versa), os tapetes iam do Oriente ao Ocidente. Roupas turcas estavam na moda entre os doges venezianos e vice-versa. “No século XV, os venezianos estavam à frente da produção de artigos de luxo apenas graças ao seu entendimento da sofisticação do mundo islâmico e poucos ultrapassaram seu conhecimento, admiração e apropriação cultural dos produtos materiais da cultura islâmica. Em nenhum outro lugar essa combinação de culturas é mais visível que na área têxtil” (ibidem: 175). Esses fatos históricos igualmente nos conduzem à delimitação da época dos Descobrimentos, que coincide com a suplantação do comércio veneziano pelas potências ibéricas, como um dos períodos adequados para empreender o estudo do movimento de imagens têxteis entre culturas.

Natureza andarilha

Observamos que a migração da memória coletiva é chave para o entendimento da pós-vida das imagens. Mas de que forma isso se deu posteriormente, já no contexto das Grandes Navegações? A queda de Constantinopla nas mãos dos turcos em 1453 constituiu uma verdadeira catástrofe econômica, já que, com esse evento, fechavam-se as portas mais próximas para o Oriente, inflacionando o preço de ervas e temperos no Velho Continente20.

Como um dos principais incentivos para a exploração do Atlântico e de novas rotas para chegar ao continente asiático foi a procura por espécies vegetais úteis, incluindo as

20 Não é coincidência que, em francês, a expressão “pagar em espécie”, seja equivalente a efetuar um

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15

cobiçadas especiarias, a questão está enraizada na botânica. Inicialmente, foram marinheiros, capitães e navegadores que lançaram o aporte de conhecimento necessário para construir a imagem da natureza selvagem, variada e luxuriante das Américas, a qual se mostrou de importância vital para os processos de estamparia em tecidos conforme veremos no segundo capítulo deste estudo. Os exploradores ibéricos, particularmente assombrados com a exuberância do Novo Mundo, produziram relatos detalhados sobre a flora nativa21.

HEERS (1992: 315)22 destaca as impressões de Cristóvão Colombo, extraídas de seu diário

de bordo de 21 de outubro de 1492:

“Aqui se encontram árvores de mil classes; todas dão fruto, cada uma a sua maneira, e exalam aromas tão fortes que verdadeiramente dão prazer. Considero-me o homem mais aflito do mundo por não poder reconhecê-los, mas penso que são de Grande valor. Levo amostras também de todos, e também das ervas... É uma verdadeira lástima que eu não saiba distinguir as plantas, o que muito me entristece. Bem vejo mil espécies de árvores... sempre verdes – como na Espanha de maio a junho – e mil espécies de ervas,

todas com flores.”

Embora essas descobertas precisassem ser respaldadas com provas materiais, é óbvio que o mundo natural não pode ser facilmente extraído de seu entorno. Para traduzir a pujança de plantas, animais e paisagens foi necessário desenvolver um sistema imagético de representação e classificação que contou não apenas com descrições literárias, pinturas e desenhos, mas também com amostras ilustrativas do modo de viver do Novo Mundo. O

de noz moscada custava o equivalente a sete bois.

21 DEL PASO (ibidem: 13) recorda-nos que, graças ao relato do índio Juan Badiano, tradutor para o latim do

herbário asteca conhecido como Codex Barberini, hoje conservado no Vaticano, como também às pesquisas de Francisco Hernández, autor da Historia Plantarum Novae Hispaniae, os espanhóis tiveram acesso a mais de dez mil espécies de plantas encontradas no México e até então desconhecidas na Europa. Entre elas, a

tecuitlaxóchitl, ou flor dourada dos entardeceres, a magnólia, a dália e o girassol. Encantados com sua beleza desconhecida buscaram representá-las em desenhos, ao mesmo tempo em que as índias inovavam seu vestuário cotidiano adornando suas túnicas com técnicas de bordados europeus em que as flores assumiam protagonismo.

22“Aquí encuentra uno árboles de mil clases; todos dan fruto, cada uno a su manera, y despiden aromas tan fuertes que verdaderamente dan placer. Me considero el hombre más afligido del mundo al no poder reconocerlos, pero pienso que todos son de gran valor. Llevo muestras también de todos, y también de las

hierbas… Es una verdadera lástima que no sepa yo distinguir las plantas, lo cual mucho me atrista. Bien veo mil especies de árboles… siempre verdes – como en España de mayo a junio – y mil especies de hierbas,

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16

pesquisador colombiano OLARTE (2008: 22)23 observa que “o ouro e a prata foram mais

fáceis de mobilizar que as plantas e os animais, de maneira que a possessão e o controle dos seres vivos requer formas móveis de representação”. De fato, RODRIGUEZ (op.cit.: 257) revela que o conquistador espanhol Hernán Cortez enviou ao rei Carlos V mantas de algodão colorido com adornos, assim como camisas, almofadas e tapetes, dada a dificuldade de descrever a qualidade do material produzido no México (figura 4).

Figura 4– Mural pintado por Diego Rivera representando a produção de têxteis produzidos na capital asteca de Tenochtitlán. Distrito Federal, México, novembro de 2009.

Nesse sentido, cabe aqui lembrar que as representações selecionadas pelos conquistadores nunca primaram pela fidelidade ao elemento representado. Ao contrário, sempre foram governadas por um conjunto de regras que determinavam aquilo cuja visibilidade é adequada – ou não - aos seus propósitos. As Cartas de Relação de Cortez (são cinco, sendo que a primeira se extraviou), por exemplo, colocam os mexicas, ou

23“El oro y la plata fueron más fáciles de movilizar que las plantas y los animales, de manera que la posesión

Imagem

Figura 4 – Mural pintado por Diego Rivera representando a produção de têxteis produzidos na capital asteca  de Tenochtitlán
Figura 5 – Selos de estampar astecas feitos de barro cozido, atualmente exibidos no Museu do Templo Maior,  incluem imagens de flores e serpentes estilizadas
Figura 8  – Chitas produzidas na Holanda com padrões africanos em que se identificam serpentes estilizadas e  jasmins estrelados, em vitrina de loja popular da capital francesa
Figura 10  –  As chitas alcobacenses caracterizam-se pela disposição vertical das estampas compondo listras
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