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“Duas trilhas bifurcaram num bosque, e Eu – Escolhi a menos viajada, E isso fez toda a diferença”

- Robert Frost -

As conexões da jornada

“Os esforços que fazemos para juntar os fragmentos que nos chegam ininterruptamente de todos os cantos do globo tornou-se um exercício planetário” (GRUZINSKI, op.cit.: 90).

Acompanhando as peregrinações dos têxteis estampados na aldeia global, podemos reconhecer a pós-vida das imagens nesses deslocamentos entre culturas. Se, conforme propõe WARBURG (1999), é possível seguir as imagens da Antiguidade na sua migração incessante entre obras de arte, também resulta plenamente viável notar a “vida em movimento” (bewegtes Leben) nos têxteis florais. Soterrados por uma avalanche de imagens superpostas, mitos e ritos acabam por ligar chitas, chitinhas e chitões ao projeto Mnemosyne. Para entender esse percurso imagético dos panos estampados, buscamos justamente unir as pontas soltas de fios que deram a volta ao mundo, ora a bordo de naus e caravelas, ora em jatos intercontinentais, mas sempre nos sapatos alados de Hermes, o deus patrono dos viajantes. Nos tecidos estampados, mapeamos o ciclo de vida das imagens botânicas e identificamos distintos suportes de veiculação entre culturas, assim como recolhemos estilhaços simbólicos emaranhados pela astúcia de artesãos que mobilizam e reinventam suas capacidades intelectuais e criativas no dia-a-dia.

Apuramos que imagens errantes de lugares tão distantes entre si quanto a Índia e o México se entrelaçam na natureza luxuriante das estampas e bordados florais, configurando o tecido como mídia secundária capaz de ampliar vínculos comunicativos e fazer com que o homem, ainda que simbolicamente, vença a morte. “Uma imagem requer o tempo lento, como uma escrita requer o tempo lento, no qual não existe a morte” (BAITELLO, op.cit.: 33). Nos

espaços exuberantes da cultura, essas imagens em trânsito se misturam ininterruptamente, reativando mitos e intensificando sua energia simbólica. Mais até: proliferam, ladinas, em camadas muitas vezes ocultas sob tecidos multicoloridos. Confirmamos nos capítulos anteriores

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que isso se deu fartamente nos deslocamentos geográficos de produtos têxteis a partir das Grandes Navegações, ampliando-se com a explosão da indústria do turismo, da moda e do consumo de souvenirs por parte dos viajantes. Para BELTING (op.cit.:80), “o mundo se

transforma em imagens que só podem ser unidas pelo indivíduo. Na aldeia global encontramos habitantes que, como viajantes e tradutores de tradições, são ao mesmo tempo partidários de recordações locais que de outro modo se perderiam no vazio”161. Isso nos permite assumir que, assim como as imagens nativas, também aquelas ditas “estrangeiras” podem ser utilizadas como ingrediente na (re)construção de imagens da cultura de dada região, renovando-as perante o olhar do Outro distante em produtos de moda e decoração. Vimos essa situação nas elaborações de Arthur Liberty com respeito às chitinhas inglesas, tanto quanto nos esforços da marca Alma Lusa na revisão do imaginário português em produtos confeccionados com chitas de Alcobaça. Dessa feita, observamos que o culto às imagens se acelera a medida que elas se deslocam nos artigos dispostos sobre os corpos, tanto na diacronia quanto na sincronia, mesclando-se às culturas que visitam no que PINHEIRO (2009) chama de “mosaico movediço”.

Estudando as imagens florais e suas relações com as mitologias hindu e mesoamericana, percebemos que o padrão ornamental floral presente na estamparia têxtil caracteriza, em verdade, processos de iconofagia mestiça, visto que tais imagens coletam arquétipos, fragmentos e memórias, que são revolvidos à exaustão. Com eles concebem um caleidoscópio no qual as referências permanecem perenemente em movimento, gerando constante impressão de novidade. Essa sensação ilusória ofertada pelo mundo das imagens produz benefícios para a cadeia têxtil, cujo intuito é manter-se, bem como aos seus consumidores, na chamada “sintonia com o progresso”. Ou seja, em permanente desasossego para substituir imagens desbotadas por novas misturas imagéticas (GARCIA e MIRANDA, 2005). Ao comentar a crise da competência simbólica nas mídias massivas, CONTRERA (op.cit: 41) observa precisamente que “estamos participando de uma mega-operação de consumo das imagens e das informações, literalizadas como produtos e tornadas devoráveis”. A nosso ver, essa situação se verifica de modo

exemplar no enorme impacto gerado pelas imagens dos tecidos rebordados à exaustão pelas vistosas tehuanas e, posteriormente, trasladados à aparência de Frida Kahlo e aos souvenirs

161“El mundo se transforma en imágenes que ya sólo pueden ser unidas por el individuo. En la aldea global

encontramos habitantes que, como viajeros y traductores de tradiciones, son al mismo tiempo partisanos de recuerdos locales que de otro modo se perderían en el vacío”.

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inspirados nela.

Vimos que, para as tehuanas zapotecas, certos rituais específicos (o casamento, o luto, a festa, a procissão e a cerimônia religiosa), assim como o clima e a presença de forasteiros, influenciam na escolha de motivos para a construção imagética. Os fortes ventos do istmo de Tehuantepec favorecem o uso do huipil curto e ajustado de um só lenço (bida ni wi‟ni),

acompanhado de saia larga, uma evolução do traje pré-hispânico composto de enredo preso com faixa (bisu‟ di renda). Todavia, a partir desses mesmos elementos, é certo que as tehuanas

fabulam imagens cujo significado lhes dá a grandeza capaz de fazê-las perdurar muito além do tempo da vida humana. Continuamente refazendo sua aparência pelo coser e adornar, elas costuram novos vínculos e mantêm as imagens flutuando sobre seus corpos e corpos alheios, especialmente nos ambientes de troca dos tianguis. Elegem tecidos e técnicas de ornamentação para criar buquês iconofágicos de frangipanis, girassóis ou rosas, de forma que seu conceito de moda não é apenas um elemento de identificação do local de origem, como também reflexo imagético de compromissos sociais e entrelaçamentos culturais. Assim, caracterizam, no âmbito da comunicação, uma aparente evolução que incentiva o consumo, ou a devoração, de uma imagem pela outra, cuja potência reside precisamente na incessante repetição ritual, formando um conjunto jamais fechado em si mesmo. Ao provocar processos iconofágicos, as tehuanas convertem-se em memória coletiva ou imagem-souvenir. Para essa comunidade, como para tantas outras, se comunicar é criar e manter vínculos, moda é comunicação (GARCIA e MIRANDA, op.cit.).

Imagens-souvenir

“A evocação de um paraíso florido, repleto de plantas e flores mexicanas, recria para os índios uma imageria familiar, mas de conotações pagãs que supostamente deveriam ter desaparecido, pois foram absorvidas numa ortodoxia cristã inequívoca” (GRUZINSKI, op.cit.:

285). Assim como Nossa Senhora de Guadalupe, cujo manto é recoberto de rosas e jasmins mexicanos, Frida Kahlo subverte tais conceitos ao mesmo tempo em que os reforça, quando (re)constrói, sobre seu corpo torturado, a imagem vitoriosa e mítica da deusa Xochiquetzal, mesclada às visões de santos católicos e aos ramalhetes mestiços das tehuanas. Esse caleidoscópio de imagens navega em sua imagem pessoal mediante a aparição em tecidos ordinários, como o algodão adornado com flores que ela cartografa e empresta das tehuanas

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para depois enrodilhar em composições mestiças.

“Flora necrológica, taxonomia social, botânica política. Diante da magnitude dos atos de barbárie, somente a imagem mais estetizante parece ser capaz de recobrar, por oposição, um sentido crítico”162 (ROCA, op.cit.: 93). Mediante a refacção dessas figuras míticas numa outra imagem divina, a pintora transfere para a coluna vertebral o espaço da vertical, já que os

huipiles e rebozos adornados de flores garantem-lhe uma figura ereta, uma “árvore da vida” que lhe autoriza a ingressar no espaço mitológico. Afinal, “não é só a natureza que nos desafia. A vida humana é igualmente massacrante(...)” (BOTTON, op.cit: 191). Ao derrubar o “mito da

queda” e ascender ao patamar de divindade usando tecidos como mídia, a própria Frida, por sua vez, passa a ter sua imagem venerada e idolatrada tanto pelo apreço estético quanto pela capacidade heróica de romper barreiras impensáveis. Simultaneamente deusa e santa, ela se catapulta ao patamar de detentora da habilidade de circular em esferas opostas e complementares sem ser nem uma, nem outra. Essa estratégia mestiça posiciona a artista, como nos coloca PROSS (op.cit.: 47), “(...) ao mesmo tempo aqui e ali, isto é, na possibilidade do impossível”163. Concluímos que, ao incentivar o estabelecimento de vínculos comunicativos entre fabricantes e consumidores no mercado global, as imagens simbólicas presentes nos tecidos e trajes eleitos por Frida navegam entre culturas sem se fixar em nenhuma delas, vencendo continuamente o desaparecimento e a morte. Exemplos dessa natureza caracterizam a mídia têxtil como suporte de relações multiculturais, “(...) com enraizamentos históricos e

geográficos que traçam um interessante e peculiar mapa-múndi” (CHATAIGNIER, op.cit.:

94).

Cartão-postal

Quando a pintora se converte, ela própria, em imagem flutuante, vai muito além de si. Sob as múltiplas camadas imagéticas da artista, seu corpo se fragmenta e se expande, como

corpo-imagem, para simbolizar, ainda que parcialmente, a essência mitológica da nação mexicana. Transformada em “estampa étnica”, ela se integra, assim, às malas dos viajantes, enfeitando outros lares e outros corpos com sua figura mítica disposta em bolsas, sacolas de

162“Flora necrológica, taxonomía social, botánica política. Ante la magnitud de los actos de barbarie sólo la

imagen más estetizante parece ser capaz de recobrar, por oposición, un sentido crítico”.

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feira, blusas, camisetas, jóias, xales e vestidos. MIRANDA (2008: 46) pontua que “o indivíduo,

ao manifestar-se no ato de consumo, imita, representa e cria mecanismos simbólicos para instaurar a comunicação, abrindo assim, o diálogo com o mundo”. Muitos deles, portanto, são

consumidos até mesmo mediante compras pela Internet164. Constituem lembranças adquiridas de segunda mão, motivadas pelo desejo de integrar o imaginário alheio. Pela capacidade de apalpar sutilezas e convertê-las simbolicamente, as imagens têxteis dispostas na aparência de Frida criam, portanto, enormes campos relacionais (embora também existam invasões postiças) e comunicacionais, dilatando as zonas de contato e gerando amplos espaços de deslocamento. Trata-se de um contínuo entrelaçar entre natureza e cultura, corpo e mito, biosfera e noosfera, permanentemente em trânsito, com escalas e conexões nas mídias.

“As terras mestiças são imensas e convidam a novas explorações. Exigem longas viagens através das fontes e das disciplinas, dos passados e dos continentes” (GRUZINSKI, op.cit.: 319). Com a mescla de multicontribuições, a proliferação de desvios aumenta e há uma erupção barroca de excessos. A aproximação do díspar, o gigantismo, o grotesco e os vários mecanismos da hipérbole recolhem os paradoxos em configurações curvilíneas onde o que vale é a extraordinária combinatória. As flores presentes nos trajes típicos pintados e usados por Frida são, portanto, a própria mestiçagem, condensando tradições estrangeiras e mesoamericanas num eterno ir e vir, especialmente à medida que se integram à bagagem dos turistas no seu retorno à terra natal sob forma de souvenirs.

Num mundo de distâncias cada vez menores, dado o contínuo progresso tecnológico dos transportes e dos meios de comunicação de massa, apuramos que os tecidos e, consequentemente, os produtos de moda fabricados com eles, podem funcionar como suporte de pós-vida das imagens. Ou, conforme o entender de BELTING (op.cit: 77), possibilitam “visitar os lugares em imagem”165. Isso nos permite assumir, com TUROK (op.cit. 54-55), que a imagem têxtil é um testemunho cultural capaz de transmitir códigos que o “leitor” iniciado pode

164 O endereço eletrônico Nosotros amamos los vestidos mexicanos (http://vestidosmexicanos.blogspot.com/) comercializa vestidos San Antonio da região de Oaxaca, distribuindo-os em todas as partes do Brasil pelos correios. Alguns deles foram exibidos na mídia eletrônica por atrizes como Carolina Dieckmann, Julia Lemmertz e Cláudia Abreu. O mesmo endereço de comércio eletrônico forneceu-os como figurino para a “festa mexicana” do reality show Big Brother Brasil 10, exibido pela Rede Globo de Televisão. Nesse programa, os vestidos tradicionais foram recortados e reconstruídos sob forma de minissaias e blusas curtas, disseminando-os como modismo.

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interpretar, conhecendo aspectos de uma pessoa sem sequer falar com ela. Sem dúvida, podemos considerar, conforme os parâmetros de Pross, o têxtil como mídia secundária; ou, no entender de Belting, como um medium para o trânsito de imagens da cultura, tão preciso quanto a escrita ou a fotografia na batalha humana contra o esvanecimento.

Nesse sentido, concluímos, com WAAL (2002: 36), que“produzimos cultura e somos produzidos por ela, até o ponto que não se encontra em nenhum outro animal”. Antes de

decolar para hemisférios distantes, talvez devêssemos, de fato, utilizar a função-janela de que nos fala KAMPER (1994) para observar o que já vimos tantas vezes e ultrapassar a aridez do imaginário. Colocando tais “imagens em ação”, deixando-as espiar pelas frestas cativeiras do imaginário rumo a um universo móvel, descentrado e mestiço, seguramente seremos mais capazes de desvendar simbolismos soterrados pela poeira das commodities e das imagens prêt-

a-porter. Talvez possamos, inclusive, estabelecer vínculos mais honestos com nossa própria imagem no espelho.

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