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EM BUSCA DE UMA NOVA FILOSOFIA DA NATUREZA, UMA NOVA ÉTICA: MARIA LACERDA DE MOURA E A

Gilson Leandro Queluz

EM BUSCA DE UMA NOVA FILOSOFIA DA NATUREZA, UMA NOVA ÉTICA: MARIA LACERDA DE MOURA E A

ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL BIOCÓSMICA

No artigo Todo es creación nuestra, Lacerda de Moura procura refletir sobre outra filosofia da natureza. Para ela, a ideia de que devemos viver em harmonia com a natureza não se sustenta, pois, a natureza é cruel, desarmônica e bruta, ao menos aos nossos sentidos.

Desse modo, propõe que tudo é nossa criação, pois, “tudo depende do grau de nossa evolução” (LACERDA DE MOURA, 1932c, p. 13). Para ela, é necessário que “construyamos nuestro cosmos interior, que edifiquemos nuestra armonía espiritual” (LACERDA DE MOURA, 1932c, p. 13), pois, talvez este processo interior permita ver que aquilo que consideramos como violento na natureza deve-se à nossa organização social e pessoal, que se baseia em uma violência cotidiana e institucional.

Esta percepção, para a autora, permitiria a valorização dos processos de ajuda mútua presentes na natureza, simultaneamente ao crescimento espiritual e potencial integração cósmica. Seria na AIB que Lacerda de Moura, entusiasticamente, perceberia a consolidação desta filosofia da natureza alternativa. A AIB seria composta de físicos, biólogos, filósofos, sociólogos, exonerados de todo “sentimiento religioso o sectarista de las creencias organizadas, laicas o no” (LACERDA DE MOURA, 1933b, p. 11). Os membros da AIB seriam tocados pela “armonía del Todo, la eutimia universal a través del aparente caos y de la multiplicidad de las apariencias, al tempo que condenan las luchas fratricidas entre los hombres” (LACERDA DE MOURA, 1933b, p. 11).

Esta sensibilidade seria estimulada pelas descobertas científicas, como a “moderna concepción del átomo y la idea de que todo, absolutamente todo, los seres y las cosas, están formados de los mismos átomos... unifica a todo el universo sujetándolo

a los lazos de la solidaridad biocósmica” (LACERDA DE MOURA, 1933b, p. 11). Esta Associação, não dogmática e pacifista, seria composta essencialmente por ateus, homens de ciência insuspeitos, que admitiriam “el principio de que los errores de los hombres influyen en las condiciones atmosféricas de nuestro planeta, e incluso pueden influir en las capas atmosféricas de otros planetas vecinos del nuestro” (LACERDA DE MOURA, 1932f, p. 22). Em sua revista La Vie Universelle, a AIB apresentaria diversos artigos tematizando os indícios da reciprocidade de influências entre os seres humanos e os astros. Nesse sentido, as atitudes parasíticas e destrutivas dos seres humanos em nosso planeta provocariam a desarmonia na natureza e, potencialmente, a universal. Portanto, a busca da beleza interior do ser humano poderia não só conduzir à harmonia de toda a humanidade, mas à harmonia universal.

Em outro artigo, Lacerda de Moura (1933a, p. 27) apresentaria como princípio da AIB a substituição da noção de luta pela existência por aquela da harmonia para a vida, expressa na sentença, “todos estamos ligados unos a otros, porque tan sólo hay una vida universal y eterna que está en todo, que anima y solidariza al Cosmos increado”. Este sentimento de ligação biocósmica também levaria os membros da AIB a adotar o vegetarianismo como uma das suas diretrizes, pois “asevera que mientras sacrifiquemos animales para servir el placer morboso de los glotones, no seremos dignos de la vida consciente que en nosotros palpita” (LACERDA DE MOURA, 1933b, p. 12). A AIB, portanto, teria em sua base o objetivo de incentivar a solidariedade humana e universal, rompendo com os dogmas científicos e filosóficos, de uma sociedade tomada pelo “progresso materialista” e pela “megalomania do poder” (LACERDA DE MOURA, 1933b, p. 12).

Lacerda de Moura listaria, como membros da AIB, entre outros: o filósofo anarquista francês, L. Barbedette; o médico eugenista argentino, Vitor Delfino; o famoso defensor da emancipação da mulher e pacifista, Victor Margueritte, autor de Ton corps est à toi; o poeta e romancista, Theo Varlet; o anarquista individualista, A. R. Proschowsky; o astrônomo espanhol Josep Colmos; Alfonso Herrera, o cientista mexicano proponente da teoria da plasmogenia; o farmacologista e pacifista francês Rafael Dubois, conhecido por sua teoria do proteanismo.

Não é difícil compreender o entusiasmo de Maria Lacerda pela AIB e seus membros, pois os temas de sua própria obra e das suas práticas sociais reverberam na Associação. Theo Varlet, por exemplo, que era reconhecido pelos críticos literários franceses como o anunciador da era cósmica vindoura, demonstrava especial interesse na cosmobiologia, além de ser um não-conformista e pacifista contumaz e adepto de práticas naturistas (STABLEFORD, 2011).

A luta de Maria Lacerda pela emancipação feminina se irmana àquela empreendida por Victor Margueritte, autor do romance Ton corps est à Toi (1927), no qual defende, como o título sugere, através das desventuras de sua heroína Spirita Arelli, que as mulheres assumam o controle sobre seu

corpo e, consequentemente, sobre sua sexualidade, pela adoção de práticas neomalthusianas, como técnicas de controle reprodutivos, a educação sexual e o aborto (SONN, 2005). Alfonso Herrera, por sua vez, fora responsável pela proposição de uma nova ciência, a plasmogenia, definida pela enciclopédia anarquista de Faure (1934, p. 6124, tradução nossa) como a:

[...] nova palavra que se aplica a uma nova ciência, que trata especificamente com a geração de formas modeladas (Plasma – genea) ou biologia sintética [...], reúne no mesmo estudo os vários trabalhos relacionados com a biologia construtiva, ensaios de reconstituição no laboratório de fenômenos da vida orgânica.

Herrera explicava a origem da vida a partir da formação do protoplasma, composto fundamental para que se manifestassem as primeiras formas de vida, considerada como atividade físico-química. Em A origem do pensamento, artigo publicado na Revista Estudios, Herrera (1932, p. 23) pretende demonstrar a “prueba experimental de que las manifestaciones elementales del pensamiento se deben a las fuerzas físicoquímico conocidas, sin necesidad de espíritu ni de intervenciones sobrenaturales”, ou seja, para ele o “pensamiento es un fenómeno natural, fundamentalmente químico y electroosmótico” (HERRERA, 1932, p. 26). Neste sentido, a natureza:

[...] sostiene el pensamiento, condensación de cuanto existe, tan profundo como la luz y las tinieblas, infinito en su ideal, evolucionando en el tiempo y en el espacio. Contiene el bien y el mal, la historia de los organismos con todos sus afanes y alegrías, y en un porvenir lejano emanará de inmensas máquinas electroquímicas y osmóticas, con sentidos artificiales, como el maravilloso ojo eléctrico o lámpara fotoeléctrica (HERRERA, 1932, p. 27).

Lacerda de Moura (1932f, p. 21), em seu primeiro artigo sobre a AIB, parece repercutir a teorização de Herrera, ao afirmar não saber:

[...] a qué altura han llegado las pesquisas científicas relacionadas con la captación del pensamiento – que también debe tener una forma – según su naturaleza, cualidad e intensidad; pero creo que siendo, como es, materia, estará sujeto a las propiedades de la misma. En este respecto parece que se ha llegado a establecer que, científicamente, el pensamiento forma parte de las grandes fuerzas motrices del Universo.

Deduziria, ainda, que em última instância o pensamento poderia ser captado por um sistema desenvolvido pela ciência, quem sabe de “manera positivamente definida, quizá revistiendo formas coloreadas o luminosas” (LACERDA DE MOURA, 1932f, p. 21).

Talvez a referência de Lacerda de Moura à luminosidade do pensamento remeta aos estudos de Rafael Dubois sobre a bioluminescência. Rafael Dubois, um ativo pacifista, entusiasta da plasmogenia, também cunhara um termo, o

proteanismo, em 1887, para “definir a nova compreensão científica da vida e escolhe o neologismo Proteon para designar a princípio, tanto a força e a matéria, através do qual tudo no universo parece mudar, evoluir, desaparecer” (FAURE, 1934, p. 6549, grifo do autor, tradução nossa). Nesse sentido, para Dubois, não haveria diferença entre vida e matéria, o que seria corroborado por Lacerda de Moura (1933a, p. 28) em seu artigo, A Associação Internacional Biocósmica, “no hay materia muerta, como no existe la inercia, todo es vida en constante realización, en una vibración perenne, buscando sin cesar formas cada vez más bellas”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os textos de Maria Lacerda de Moura na Revista Estudios indicam os caminhos de intersecção com uma nova ciência desejada pelos anarquistas, em sua vertente anarco-individualista. A nova abordagem dos temas científicos por parte dos libertários permite-nos o questionamento acerca da objetividade da ciência e sua compreensão a partir do diálogo com o contexto sociocultural em que a construção científica se insere. Assim, Lacerda de Moura funde neomalthusianismo e eugenia, compreendidos a partir de bases libertárias, como instrumentos de defesa e argumentação para a conscientização sobre a necessidade da maternidade consciente e de prática do amor livre. Estas seriam componentes indissociáveis do reinado da razão, que imperaria na futura anarquia, onde o exercício do saber científico não se separaria da prática da solidariedade e do amor universal, conduzindo a uma harmonia cósmica.

A ideia de harmonia universal, de correspondência plena entre o microcosmo e o macrocosmo, levaria ao entusiasmo de Maria Lacerda de Moura pela Associação Internacional Biocósmica. Esta associação encarnaria, em sua pluralidade de vozes científicas, filosóficas e artísticas, o exercício do livre pensar e do internacionalismo, pregados por ela e pelos anarco-individualistas. Percebia, na AIB, e nas teorias científicas alternativas que nela proliferavam, como a plasmogenia e o proteanismo, na sua opção pelo vegetarianismo, em seu pacifismo radical, um locus privilegiado para a forja de novas maneiras de conhecer e de fazer.

Maria Lacerda de Moura opta, em suas experimentações na Revista Estudios, por construir sólidas pontes ibero-americanas, combatendo inimigos comuns como as seitas, as religiões, os autoritarismos de todas as estirpes, os fascismos. Porém, seu esforço maior parece empenhado na construção comum de uma filosofia unicista da natureza, enraizada nas lutas cotidianas libertárias, na qual o amor seria uma fonte de energia vital, liberada através de um processo eugênico combinado com a descoberta interior libertadora do Eu, na construção de uma humanidade emancipada, da tão almejada harmonia cósmica.

NOTAS EXPLICATIVAS