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3 REFLEXÃO TEÓRICO METODOLÓGICA

3.9 Buscando um ponto de vista descolonizado

Novas teorias trazem diferenças epistemológicas quanto àquelas revisadas até aqui, incluindo a crítica ao pensamento dominante que se apresenta como uma forma de opressão social. Nelas reconhecemos o colonialismo como gerador de uma missão civilizadora dentro da historia ocidental, na qual o desenvolvimento europeu guiava o resto do mundo, com seu pensamento hegemônico apresentado como modelo de sociabilidade autoritária e discriminatória. Uma das diferenças ontológicas dos novos pensamentos sociais acerca do “estar-no-mundo” destas teorias é a forma de abordagem a respeito do mundo dos objetos no campo de investigação.

Hoje, sabemos que a cultura material é indissociável e constitutiva da condição humana desde o seu surgimento, onipresente no mundo (MILLER, 1994 apud LIMA, 2011). Mas para entendermos estas teorias que estendem seu olhar sobre os artefatos, devemos estudar todos os aspectos das relações entre o material e o social que ultrapassam a prática arqueológica, o que requer um novo ponto de vista epistemológico sobre a forma de apreensão do mundo: um ponto de vista descolonizado. Além disso, é importante reconhecer que termos

como sociedade, natureza, sujeito e objeto estão longe de ser meros rótulos, abrigando em si sempre um sentido moral, político ou avaliativo.

A partir da contextualização dos estudos sobre a materialidade dentro da antropologia e da arqueologia e destas mudanças de paradigmas, devemos também refletir sobre a origem e as implicações do uso do termo “cultura material”, mesmo que em muitos casos não encontremos outro termo para substituí-lo. A cultura material, entendida inadequadamente até a década de 1980 pelas diferentes perspectivas teóricas da Arqueologia, era tida como um epifenômeno da cultura que produz os artefatos como resultado do comportamento humano, sendo entendido como um reflexo passivo da cultura. O termo artefato, por exemplo, refere-se a objetos produzidos pelo trabalho humano, em oposição aos objetos naturais. Cultura material é o nome dado ao universo de objetos, ou artefatos, produzidos e usados pela humanidade para lidar com o mundo físico, para facilitar as relações sociais, e tem sua origem no estudo dos povos considerados “primitivos” pelos seus colonizadores europeus (CARDOSO, 1998). Isto é, a interpretação original de “cultura material” se referia aos artefatos produzidos pelos “outros”, ou seja, por grupos excluídos da concepção moderna de uma “civilização ocidental”, segundo Cardoso (1998). O termo raramente era atribuído a objetos produzidos pela própria cultura européia.

Perceber os objetos como parte do social requer o exercício de uma nova forma de fazer antropologia, entendendo e superando as relações envolvidas nas dicotomias instauradas no entendimento de nossa sociedade. A busca pelo olhar mais apurado e mais crítico com relação à materialidade, implicando na superação da dualidade entre sujeito e objeto (dentro da grande divisão “cultura versus natureza”), na qual sujeito está para cultura assim como objeto está para natureza, é fator determinante para o entendimento de como ocorre a quebra do paradigma dominante no estudo das ciências sociais. A complexidade da relação sujeito e objeto desenvolve-se a partir de importantes contribuições de estudiosos que nos informam uma concepção do conhecimento articulando

teoria e método, convidando o leitor a uma nova compreensão, não colonizada, do mundo e de toda a sua complexidade.

Desta forma, a partir do fim da década de 90, a antropologia voltou sua atenção aos objetos, ao invés de vê-los apenas como metáforas, textos ou símbolos e retratá-los como receptores passivos da ação humana, o interesse passou a recair sobre o modo como acontece a sua ação social no mundo. O foco na pesquisa do mundo material leva a antropologia a atribuir um papel ativo aos objetos, sendo estes percebidos como um componente fundamental, tanto na criação, quanto na manutenção de relações sociais.

Assim como Appadurai, Miller toma por base a interpretação de Mauss acerca dos mitos e objetos do kula, etnografado por Malinowski, no qual destaca-se a ideia de que uma coisa dada e a obrigação de retribuí-la gera uma relação. Na teoria do dom, ou dádiva, o que importa é a circulação de coisas que criam a sociedade, ou seja, “o que chamamos de sociedade ou treco são separações artificiais vindas do mesmo processo”. (MILLER, 2013, p. 103)

Daniel Miller é outro antropólogo reconhecido na contemporaneidade pelos estudos acerca da compreensão da materialidade e das práticas de consumo. Ele não considera o consumo como sua principal área de investigação, mas como área mais abrangente dos estudos da cultura material que englobam o estudo das práticas de consumo. Formado em arqueologia e antropologia, a importância da materialidade na construção das relações entre pessoas e coisas tem inspirado as pesquisas de Miller. Um dos grandes méritos do autor reside na enorme importância que confere à tradição etnográfica, a qual se tornou uma de suas maiores bandeiras. Para Daniel Miller é a experiência de campo que confere solidez às pesquisas antropológicas, mantendo o pesquisador “verdadeiro e envolvido com as pessoas, de modo que as coisas façam sentido no nível teórico” (VIANNA; RIBEIRO, 2009, p.425).

Miller constroi seu argumento central a partir do questionamento da oposição vigente entre pessoa e coisa, animado e inanimado, sujeito e objeto,

desmontando a visão equivocada de que objetos nos dão significados ou nos representam como simples signos ou símbolos, pois, para o autor, os objetos nos criam. Desta forma, ele contraria a ideia de que os bens sejam neutros, e os humanos projetariam sua vitalidade e moral sobre estes, dentro da clássica perspectiva de Mary Douglas (2004): “os bens são neutros, seus usos são sociais; podem ser usados como cercas ou como pontes”.

Mesmo assumindo o caráter revolucionário da abordagem de Mary Douglas dos bens de consumo pensados enquanto um sistema simbólico que abre possibilidades de interpretação da própria sociedade através do padrão formado por estes, Daniel Miller rejeita sua análise semiótica sobre o estudo da cultura material, que acaba sendo vista como uma pseudolinguagem que nos permite “dizer” quem somos. Nesta condição, a cultura material acaba sendo relegada ao estudo da linguagem, uma comunicação não falada, em que os objetos, inanimados, são interpretados de modo limitado e superficial, com pouca consequência. O problema da semiótica, segundo o autor, é presumir certa exterioridade do objeto em relação aos seres humanos, como se o que somos estivesse situado profundamente dentro de nós, em contraposição direta à superfície (MILLER, 2013). Seguindo esse raciocínio de que a teoria da representação pouco nos diz sobre a verdadeira relação entre pessoas e coisas, tendendo a reduzir as últimas às primeiras, Miller atesta a necessidade de se desenvolver uma teoria das coisas que não se reduza às relações sociais.

Após afastar a ideia de que pessoas fazem coisas que as representam, o autor deixa claro que, ao contrário, através da cultura material queremos perceber, na mesma medida, como as coisas fazem as pessoas. Para tanto, apresenta a cultura material a partir da teoria da objetificação, com o intuito de levar à perspectiva da indistinção entre sujeitos e objetos, baseada no exame das consequências de nossas crenças sobre as propriedades do material.

A palavra “treco” (stuff, na versão original), na obra de Daniel Miller “Trecos, troços e coisas”, não tenta delimitar exatamente aquilo que seria

excluído do termo: “treco é um e-mail, uma moda, um beijo, uma folha ou uma embalagem de poliestireno” (MILLER, 2013, p. 7). Na verdade, Miller quer falar sobre a diversidade do que podemos chamar de treco e traz sua perspectiva do consumo como um aspecto da cultura material. A idéia de que os trecos, de algum modo, drenam a nossa humanidade corresponde, segundo Miller, à tentativa de preservar uma visão simplista e falsa de uma humanidade pura e previamente imaculada. Ao contrário, os estudos mostram que sociedades não industriais são culturas tão materiais quanto a nossa e não correspondem ao modelo de selvagem nobre, não materialista. Para criticar a suposição de que os povos tribais não possuíam muitos trecos, e portanto seriam menos materialistas do que as sociedades “modernas”, Miller lembra que algumas das mais sofisticadas relações com as coisas podem ser encontradas entre os aborígenes australianos, os índios norte-americanos da costa noroeste, os ilhéus trobriandeses (com sua devoção às proas das canoas) ou o povo nuer, com seu gado.

Um debate importante acerca da materialidade é o caráter moral geralmente atribuido aos estudos que incluem esta temática e o consumo. O consumo tende a ser visto como algo maligno que se opõe à produção, a qual constroi o mundo. Mas, nesta dissertação pretendo trazer também a visão de Daniel Miller segundo a qual os bens devem, primeiramente, ter sido envolvidos em trocas produtoras de relações sociais. Justamente uma abordagem oposta à postura que percebe a materialidade como uma ameaça à sociedade e aos valores espirituais e morais. Moralidade e materialidade seguem juntas no julgamento rotineiro, alimentado pelas religiões que realizam seu ideal de transcendência por meio do repúdio ao material. Dentro deste dualismo, pode-se verificar como as religiões são contraditórias em seus argumentos, na medida em que todas elas expressam sua imaterialidade pela materialidade de monumentos, múmias, imagens sacras, ou até mesmo alimento, deixando legados de trecos.

de uma compreensão mais profunda da humanidade, inseparável de sua materialidade, destacando que o consumo traz os bens para a criação das relações depois de extraí-los das condições anônimas e alienadas de sua produção.

Logo, podemos dizer que a “cultura material” é parte fundamental dos estudos antropológicos, e que, neste estudo, o ponto focal parte do objeto como produtor da relação entre ele mesmo e os vários materiais, animais e pessoas com que interagem, sem desconsiderar ainda a relação entre estas pessoas ao longo da trajetória destes materiais.