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5 HAVERES E DEVIRES DA MADEIRA

5.5 Desvios, fluxos vitais e trama social

Todas estas histórias guiadas pela madeira mostram engajamentos e solidariedade entre sujeitos, possíveis de serem interpretadas como desvios da trajetória inicial definida pela indústria naval. Mas é preciso deixar claro que todas as coisas descartadas, retiradas de circulação daquele tipo de consumo, não têm seu fluxo interrompido, pelo contrário, sua circulação continua a acontecer, por uma demanda de consumo diferente da conhecida habitualmente.

Mesmo que não atribuamos potencial mercantil a materiais e que os descartemos, isso não quer dizer que eles não tenham valor, uma vez que todas as coisas têm seu potencial mercantil definido pela situação de trocabilidade, ao longo de seu fluxo vital. Esta fundamental percepção acerca dos vestígios da indústria é, na verdade, parte das alterações nos julgamentos que os sujeitos fazem sobre os materiais.

O desvio de mercadorias para fora das rotas especificadas é sempre um sinal de criatividade ou crise, seja estética ou econômica. Isso é tão verdadeiro para objetos de valor mais modernos, quanto no kula. (Appadurai, 2008, p.43)

Pensar que estratégias de desvio de curto prazo acarretariam pequenas alterações na demanda, capazes de transformar, gradualmente, os fluxos de mercadorias com o correr do tempo é trabalhar com conceitos de Arjun Appadurai (2008), para quem desvio só tem significado se relacionado a rotas, relevantes e costumeiras, de tal forma que a lógica dos desvios possa ser entendida de um modo apropriado e relacional. Mas vale problematizar o que seria um desvio para Appadurai, aqui tratado como algo que sai da trajetória social daquele material e pode vir a ser uma nova rota quando virar um padrão. A rota não é necessariamente articulada à ordem hegemônica, é o caminho

usual. O “roubo”, no caso das peças das indústria, pode ser a rota, ainda que obviamente não represente os interesses da indústria. Dessa forma, o “desvio”, no sentido conceitual, pode ser a rota. E nesse caso, havendo medidas que levem a eliminá-los, estaria havendo um desvio nessa rota ainda que fosse para eliminar os “desvios” (aqui não no sentido conceitual).

Os consumidores traçam “trajetórias indeterminadas”, aparentemente desprovidas de sentido [...] “frases” imprevisíveis num lugar ordenado pelas técnicas organizadoras de sistemas. Embora tenham como material os “vocabulários” das línguas recebidas [...] essas “trilhas” continuam heterogêneas aos sistemas onde se infiltram e onde esboçam as astúcias de interesse e de desejos diferentes. Elas circulam, vão e vêm, saem da linha e derivam num relevo imposto [...] de uma ordem estabelecida. (DeCerteau, 1994, p.97)

Logo, o foco não deve ser na história social do material (contexto universal, aqui percebido pela “rota” determinada pela indústria), mas na sua biografia (contexto particular de cada peça de madeira) e nos processos vitais. Isso exige que abordemos não a materialidade, mas os fluxos, seguindo-os e traçando os caminhos por meio dos quais a forma é gerada. Os caminhos de vida não são predeterminados como rotas fixas a serem seguidas, e sim continuamente elaborados sob novas formas. Desvios se tornam novas rotas.

Temos um “tornar-se”, um fluxo de vida que apenas escapa ao modelo dominante de pensamento. É, na verdade, apenas mais uma linha da trama social, e não um desvio, pois cada coisa tem sua própria trajetória. Dentro desta perspectiva ingoldiana de acompanhamento das coisas todo movimento é uma linha de crescimento dentro da trama social. Como forma de identificar e representar o forte padrão ou nova rota detectada durante as várias fases deste trabalho de campo: presente nos discursos, eventos e observações do contexto industrial ao consumo. Chamarei então estes de “desvios” ainda, quando preciso.

Alguns destes “desvios” também acontecem em contratos, no alto escalão da indústria, até o manejo dos descartes dos materiais, sempre manipulados pelos que detém o poder no momento do “desvio” (contratantes do serviço, funcionários compradores de produtos e serviços, “donos” dos descartes). As situações de “desvio” envolvendo o alto escalão empresarial e político brasileiro estão sendo amplamente discutidas na grande imprensa e pelas ação da Polícia Federal, que se tornou conhecida como “operação lava-jato”. Mas para considerar uma circunstância em esferas menores, cito o caso de uma das empresas do polo naval, que descobriu a retirada de instrumentos, ferramentas e peças “desviados” por empregados da própria empresa, os quais encontravam-se escondidos dentro das caçambas de resíduos sólidos, com a conivência de outros de fora da empresa. Podemos lembrar a contribuição de DeCerteau (1994, p.79) neste sentido, ao destacar que “uma maneira de utilizar sistemas impostos constitui a resistência à lei histórica de um estado de fato e a suas legitimações dogmáticas” e trilham o caminho relativo à própria “economia”. Estas também se tornam novas rotas habituais e naturalizadas dadas suas frequências e conhecimento de muitos.

Esses estilos de ação intervem num campo que os regula num primeiro nível (por exemplo, o sistema da indústria), mas introduzem aí uma maneira de tirar partido dele, que obedece a outras regras e constitui como que um segundo nível imbricado no primeiro. (DeCerteau, 1994, p.92)

No caso citado acima, entre as consequências dos possíveis desdobramentos dos problemas das empresas, lembro que cogitamos juntas - Olga e eu - em conversa informal, a hipótese dos impactos da mudança do movimento do polo naval afetarem a quantidade de descarte de madeira que chega à olaria. Se a olaria parar de receber os materiais, segundo Olga, ela precisaria voltar a comprar madeira, mesmo que fosse de descarte de serrarias. Este fato mudaria o preço final do tijolo dela e afetaria muitos deste grupo social que compartilham deste bem: a madeira.

Quando cheguei tinha um caminhão de fora descarregando uma madeira diferente em cima dos fornos. Uma madeira mais úmida e bruta. Olga falou que era mais úmida e que não gostava muito mas que “tinha deixado ele deixar ali. Ele só me cobrou o óleo do caminhão mas nem devia ter me cobrado.” disse Olga. (fragmento de diário de campo)

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Aqui tratei dos inúmeros caminhos que a madeira toma a partir do ambiente da olaria, a fim de entender como estas constroem os sujeitos. Os traços dos desenhos também narram histórias, diferentes do texto e da imagem. No capítulo seguinte, trato da noção de ordem e caos, e as táticas dos sujeitos que lidam com a imposição do discurso dominante e os diversos fluxos vitais da madeira construindo os sujeitos.