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3 REFLEXÃO TEÓRICO METODOLÓGICA

3.7 Objetos como bens

Como o domínio abrangente dos estudos da cultura material engloba, certamente, o estudo das práticas de consumo, esta é mais uma abordagem que vem enriquecer a investigação sobre a materialidade aqui em questão. O consumo é um processo que media relações e práticas sociais das pessoas com os bens, além de permitir verificar o papel dos objetos na subjetividade humana. Assim, incluir neste estudo a perspectiva do consumo permite enriquecer a base mais ampla de estudos em torno das coisas.

Consumo é um mecanismo social percebido pelas ciências sociais como produtor de sentido independentemente da aquisição de um bem; trata-se de uma estratégia utilizada no cotidiano por diferentes grupos sociais para definir diversas situações em termos de direitos, estilo de vida e identidades; além de ser uma categoria central na definição da sociedade contemporânea. (BARBOSA; CAMPBELL, 2007, p.22)

Uma estudiosa do tema, a antropóloga Mary Douglas (1921 – 2007), também trouxe um pensamento inovador para as ciências sociais ao tratar do consumo sob a perspectiva da antropologia, investigando os seus complexos significados, em um esforço pioneiro para conhecer sua lógica cultural. Na sua obra clássica, Mundo dos Bens - primeiramente publicada em 1976 junto com Baron Isherwood – a autora trata do consumo de produtos e serviços como um fenômeno cultural público. O consumo retira sua significação, elabora sua ideologia e realiza seu destino na esfera coletiva, existindo por ser algo culturalmente compartilhado; logo, é um fenômeno cultural e se torna essencial no projeto de conhecimento da cultura contemporânea.

Douglas e Isherwood (2004) mostram-nos a necessidade de desconstruir discursos e reducionismos sobre o consumo, quando é geralmente tratado como essencial para a felicidade e realização pessoal em um enquadramento

hedonista23, ou em um enquadramento moralista24no qual o tom é denunciatório e responsabilizado por diversas mazelas da sociedade, ou até mesmo explicado em um quadro naturalista25 atendendo a necessidades físicas ou desejos psicológicos, como bem apresenta Everardo Rocha (2004). O sentido de consumo que Mary Douglas descortina refere-se a uma questão cultural, simbólica, definidora de práticas sociais, modos de ser, diferenças e semelhanças. Precisamos entender o consumo como sistema de significação, que pode ser estudado através de uma teoria informativa a respeito da circulação de pessoas e bens. Logo, para os autores, os bens são necessários, antes e acima de tudo, para evidenciar e estabilizar categorias culturais, e sua função essencial é fazer sentido.

Dentro desta idéia de Mary Douglas, podemos lembrar que a antropologia simbólica de Clifford Geertz também conferia aos objetos um caráter simbólico de “fazer sentido” dentro da cultura estudada, onde são os humanos que dão sentido e simbolizam a cultura material. Dessa forma, a cultura seria para este autor um contexto e é através do fluxo do comportamento – da ação social – que as formas culturais encontram sua articulação, dando sentido a variados artefatos.

Logo, mesmo trazendo importantes contribuições aos estudos acerca da relação entre pessoas e coisas através do consumo, a abordagem cultural de Mary Douglas ainda é, como a de Appadurai, em sua obra “A vida social das









23“A visão hedonista refere-se ao consumo pelo enfoque da publicidade, onde o sucesso traduz-se na posse infinita de bens, como uma forma perene de felicidade. Geralmente esta visão é o mainstream do consumo” (ROCHA 2004, p.11)

24 Instaurada pelo constraste à visão hedonista do consumo, o enquadramento moralista sobre

ele invade discursos politicamente corretos.

25 O naturalismo explica o consumo como algo da natureza, universal e da biologia. Este

sentido de consumo, como algo biologicamente necessário, naturalmente inscrito e universalmente experimentado está num plano diferente do dilema que a cultura contemporânea experimenta para escolher marcas, sabores, lojas, etc. comum acerca deste tema de estudo.

coisas”, humanocêntrica. Mas sua verdadeira contribuição foi de trazer os estudos do consumo como uma oportunidade para o entendimento dos processos sociais e culturais envolvendo as pessoas e as coisas como parte da observação antropológica, que conecta outras esferas da experiência humana, afastando o tema consumo de interpretações do senso comum.

“O consumo se conecta com outras esferas da experiência humana e funciona como uma ‘janela’ para o entendimento de múltiplos processos sociais e culturais” (BARBOSA 2004, p.11), da mesma forma que os materiais também são estas “janelas” de observação antropológica nesta pesquisa. Observar e seguir as coisas é uma abordagem da observação antropológica que caracteriza os estudos da antropologia dos objetos, parte importante dos estudos do consumo dentro das ciências sociais.

3.8 Observação Flutuante: pairando por coisas, pessoas e feitos

Nesta dissertação, busco entender a eliminação de resíduos, o consumo e os padrões de reaproveitamento, seguindo a trajetória ou fluxo social das coisas em questão a partir de uma “arqueologia do presente”. Dentro desta proposta, o recurso à observação flutuante – nocão cunhada por Colette Pétonnet (2008) que implica em deixar-se “flutuar” e conduzir pelo inesperado, pelos fatos, pessoas, e neste caso pelas coisas que se apresentam num determinado momento e local – mostra-se particularmente adequada ao trabalho de campo sobre os trajetos sociais dos materiais. Esta técnica de pesquisa permitiu-me perceber os múltiplos significados que as coisas ganham em seu processo de transformação dentro das novas relações pesquisadas, as formas como acontecem as interações entre as coisas, e os fluxos vitais que as mesmas tomam em suas trajetórias de vida. Para tanto, é preciso deixar de considerar unicamente o planejamento oficial previsto pelas empresas para a

destinação dos resíduos em questão e ir ao encontro da dimensão mais cotidiana e individual das relações que envolvem estes materiais. A observação flutuante apresenta-se,assim, como uma forma adequada para investigar a “vida social das coisas”, na medida em que, assim como os sujeitos, os objetos também têm vida social (Appadurai, 2008) e segui-los é um convite a analisar sua trajetória total. Através desta técnica etnográfica, também estima-se reconhecer ações e relações sociais que as envolvam, assim como os valores, as intenções e motivações que orientam os trajetos envolvidos nesses processos, e os grupos ou indivíduos que passam a fazer parte das relações percebidas.