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Como vimos, o Dr. Luís da Câmara Pestana fora nomeado delegado do governo para estudar a aplicação dos soros contra a peste no Porto. Pelo seu percurso académico e profissional, este jovem médico madeirense era uma das mais conceituadas figuras científicas em Portugal na sua época. Clínico nos hospitais civis de Lisboa, cirurgião do Hospital de S. José, professor da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, onde sucedeu a Sousa Martins437, Câmara Pestana especializou-se em bacteriologia. Em 1891 foi enviado pelo Ministro do Reino a Paris, onde estagiou no Instituto Pasteur, além de frequentar cursos com os mais prestigiados professores da época. De volta a Lisboa, em 1892, perante um surto de febre tifoide, Câmara Pestana foi encarregado da análise das águas de Lisboa, e convidou para seu assistente Aníbal Bettencourt. Para este trabalho foram encomendados os mais recentes aparelhos, que foram instalados numa enfermaria do Hospital de S. José. Este laboratório improvisado acabou por dar origem ao Instituto Bacteriológico de Lisboa, fundado em 1892 e dirigido por Câmara Pestana, que assim “garantiu a institucionalização da microbiologia portuguesa”438. O Instituto veio a ter o nome do seu fundador em 1899, quando este faleceu, por proposta dos estudantes da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa439. O Instituto Bacteriológico de Câmara Pestana foi incorporado na Universidade de Lisboa em 1911. Os seus principais estudos incidiram sobre a difteria e o respetivo tratamento com o soro anti diftérico, e sobre a peste bubónica, sobre os quais também publicou importantes artigos científicos440.

Em setembro de 1899 encontrava-se no Porto a realizar experiências sobre os doentes de peste no âmbito da comissão internacional de médicos nomeados para o efeito. Tal como os outros membros da comissão e o pessoal do laboratório, Câmara Pestana foi vacinado com o soro Yersin no dia 18441. No entanto, segundo os médicos

436 Ver também Alves, Jorge Fernandes. “Ricardo Jorge e a Saúde Pública em Portugal – Um Apostolado Sanitário”. Arquivos de Medicina, 22 (2/3) (2008): 85-90. E Ricon-Ferraz, Amélia. “Páginas de História da Medicina na obra de Ricardo de Almeida Jorge”. In: Isabel Amaral, Ana Carneiro, Teresa Salomé Mota, Victor Machado Borges, José Luís Doria (coords.). Op. cit., pp. 15-25.

437 Almeida, Maria Antónia Pires de. “Sousa Martins, José Thomas de”. Biografias de Cientistas e

Engenheiros Portugueses. Lisboa: CIUHCT, 2011.

438 Pereira, Ana Leonor, João Rui Pita. “Ciências”. Op. cit., p. 664. 439

Diário de Notícias, 17/11/1899, p. 1.

440 Almeida, Maria Antónia Pires de. “Luís da Câmara Pestana”. Op. cit.

441 “Prestou-se ontem a receber a vacinação preventiva da peste, com o soro Yersin, o Sr. Dr. Câmara Pestana. Também foi vacinado o Sr. Carlos Lepierre, professor da Escola Brotero, de Coimbra, O

128 franceses do Instituto Pasteur que a produzia, a ação da vacina tinha uma validade limitada aos primeiros 15 dias. Já em novembro Câmara Pestana, durante as suas experiências, “picou-se na mão esquerda ao fazer uma operação” e contraiu a “infeção pestífera”442.

No dia nove de novembro de 1899 Câmara Pestana viajou a Lisboa para participar no Conselho Superior de Saúde e Higiene Pública. Ao contrário do seu colega Ricardo Jorge, ao chegar a Lisboa o Dr. Câmara Pestana não foi à inspeção sanitária na Rua Ivens, violando os preceitos rigorosos do cordão sanitário que implicavam quarentena e inspeções médicas a todos os passageiros. De facto, ele desobedeceu ao artigo terceiro do decreto ditatorial publicado em 18 de agosto, que obrigava que “todos os indivíduos procedentes do Porto serão inspecionados à chegada ao local do seu destino e ficam obrigados a apresentar-se à inspeção médica durante nove dias consecutivos”443. Assim sendo, Câmara Pestana foi um dos únicos doentes de peste a levar a epidemia para fora do Porto. Aos médicos estrangeiros era permitida a circulação entre o Porto e as outras cidades, atravessando livremente o cordão sanitário, sem qualquer controlo. Por exemplo o médico espanhol Federico Montaldo chegou ao Porto no dia quatro de setembro, a 11 foi a Lisboa, cumprimentou o presidente do conselho e o ministro dos estrangeiros e à noite seguiu de volta para o Porto444. E o próprio Câmara Pestana tinha ido a Lisboa no dia 25 de setembro445, foi passear a Sintra, onde sofreu um “ataque de reumatismo”446

, e voltou para o Porto poucos dias depois. Esta livre circulação de alguns médicos já tinha sido criticada por um correspondente d’O Comércio do Porto que se insurgiu contra “o cordão, que cerca o Porto, pelo qual saem todos os dias algumas pessoas, a começar pelos médicos que vêm justamente dos principais focos de infeção...”447.

Câmara Pestana, talvez ainda sem sintomas, foi à reunião na manhã seguinte à sua chegada a Lisboa. À noite adoeceu gravemente. A cobertura que a sua doença teve nos jornais, com a publicação de boletins médicos de quatro em quatro horas, assinados pelos médicos assistentes, os Drs. Belo de Morais e Gomes de Resende, e a consternação geral que provocou revelam a importância de Câmara Pestana na sociedade portuguesa em geral e não apenas entre a comunidade científica. “Deu-se ontem um caso de peste em Lisboa, mas pelas providências adotadas pelo Sr.

viveu em Coimbra e depois em Lisboa, onde foi professor do Instituto Superior Técnico e deu o nome ao Liceu Francês de Lisboa.

442 Diário de Notícias, 12/11/1899, p. 1. 443 Diário de Notícias, 18/08/1899, p. 1. 444 Diário de Notícias, 12/09/1899, p. 1. 445 O Comércio do Porto, 26/09/1899, p. 2. 446 Diário de Notícias, 30/09/1899, p. 1. 447 O Comércio do Porto, 14/09/1899, p. 3.

129 Governador Civil e chefes superiores de polícia, é de crer que ficará localizado (…) Lisboa tem estado até esta data livre do terrível flagelo (…) O indivíduo atacado é o Sr. Dr. Câmara Pestana. Este distinto homem de ciência, que reside no Campo de Santana, 118, chegara anteontem do Porto. Ontem ainda assistiu à reunião do conselho de higiene, e às 9h da noite adoeceu revelando sintomas de peste bubónica. O primeiro médico que o examinou foi o Sr. Dr. Silva Carvalho, distinto subdelegado de saúde, o qual tomou logo todas as providências que o caso requeria, dando de imediato conhecimento ao Sr. Governador Civil, que mandou remover o doente e sua família para o hospital de Arroios e ordenando o completo isolamento do prédio. Seriam 10 e 1/2 da noite ordenou ainda o Sr. Governador Civil que os Srs. Drs. Silva Carvalho e José Joyce fossem ao prédio indicado, levando tubos da vacina Yersin, a fim de vacinarem todos os moradores, ordenando-se o mais rigoroso isolamento, que será mantido pela polícia”. Todas as famílias que habitavam no prédio foram levadas para o Lazareto, onde cumpriram a respetiva quarentena448.

Nos cinco dias que esteve internado no hospital de Arroios Câmara Pestana recebeu visitas importantes e homenagens dos seus alunos: “Às 4 horas da tarde de ontem, el-rei foi ao hospital de Arroios visitar o Sr. Dr. Câmara Pestana. Sua majestade vestiu a blusa de desinfeção e entrou no quarto do enfermo, com quem esteve conversando…”449. “Como se vê dos boletins o estado do ilustre enfermo não é ainda tão ligeiro quanto é para desejar. Boletim de ontem de madrugada: Insónia agitada em grau progressivo (…) As crises dolorosas, as náuseas e diarreia, muco sanguinolento, tudo se agravou, levando o doente a uma situação angustiosa de prognóstico severo. (…) Sua eminência o Sr. Cardeal Patriarca, acompanhado do Sr. Arcebispo do Mitilene, foram pelas duas horas da tarde ao hospital D. Amélia visitar o Sr. Dr. Câmara Pestana. Os venerandos prelados vestiram as respetivas blusas de desinfeção a fim de prestar ao ilustre enfermo o preito da sua homenagem e revelarem o interesse que lhes merece a sua saúde, tão generosamente posta ao serviço da ciência. Foram recebidos com toda a distinção pelos distintos médicos assistentes com quem conversaram sobre a terrível enfermidade”. Sobre as famílias que tinham sido obrigadas a ir para o lazareto: “Foi permitida a saída do Lazareto às 45 pessoas que habitavam o prédio 118 do Campo de Santana dessa cidade. Retiram amanhã, depois de inspeção individual, tendo de comparecer durante nove dias a inspeção sanitária no posto da rua Ivens...”450

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Diário de Notícias, 11/11/1899, p. 1. Silva Carvalho também tinha sido vacinado com o soro Yersin quando fora ao Porto em setembro.

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Diário de Notícias, 12/11/1899, p. 1. 450

130 “Ontem durante o dia agravou-se o padecimento do ilustre bacteriologista, que ao anoitecer achava-se em estado perigosíssimo (…) Fazemos ardentíssimos votos pelas suas melhoras. (...) Suas majestades el-rei e a rainha, à entrada e à saída do teatro de D. Amélia, mandaram ao hospital de Arroios para se informarem de estado do Dr. Câmara Pestana. Os alunos do curso de medicina veterinária do Instituto de Agronomia e Veterinária dirigiram a seguinte mensagem ao Dr. Câmara Pestana…” (segue documento com mais de 30 assinaturas)451.

Apesar da gravidade da situação terminal em que se encontrava, Câmara Pestana não perdeu o seu sentido de humor, declarando aos colegas que o visitaram: “Há casos, meus caros amigos, nos quais os meios empregados pelos padres, hindus ou árabes, ou os métodos da ciência moderna, dão o mesmo resultado. É o meu caso, podem ver”452. Acabou por falecer no dia 15 de novembro, com 36 anos, sendo alvo das maiores homenagens por parte de todas as esferas da sociedade. Em vários elogios fúnebres foi descrito como um “mártir da ciência”453. Salienta-se o espanto causado por a peste ter vitimado uma “pessoa de nome”, quando os atingidos mais habituais pelas epidemias eram os membros das classes que viviam nas piores condições higiénicas.

“Não se realizaram, infelizmente, as esperanças que por um momento se depositaram com relação ao melindroso estado do Dr. Câmara Pestana. O prognóstico, que fora grave desde o princípio, desanuviou-se por um momento, mas as melhoras experimentadas foram apenas a chamada ironicamente visita de saúde, como quem diz os preparativos da morte. (...) É a primeira pessoa de nome que a peste bubónica vitima. Até agora no Porto os indivíduos atacados pertencem às classes menos abastadas, como serviçais, marçanos, moços de fretes, operários, gente de poucos teres ou que vive em deploráveis condições higiénicas, alimentando- se mal e residindo em casas sem as elementares condições de salubridade. Este é um dos motivos porque o falecimento do Dr. Câmara Pestana impressiona tão dolorosamente, mas não é o único e outras circunstâncias ocorrem que dão ao tristíssimo sucesso uma feição mais grave e comovente, imprimindo-lhe quase a nota de luto nacional. Moço ainda, em toda a exuberância da vida, árvore carregada de flores, que prometiam transformar-se nos mais deliciosos frutos, caráter nobre, espírito de aspirações elevadas, estudioso e modesto (...) o ilustre professor impunha-se à simpatia geral da mesma maneira que pelas suas elevadas faculdades intelectuais se impunha à admiração dos entendidos. (...) Era um destes fervorosos adeptos da seita

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Diário de Notícias, 15/11/1899, p. 1. O Teatro D. Amélia é o atual Teatro S. Luís. 452

Montaldo y Peró, Federico. Op. cit. 453

131 pasteuriana. A ciência era para ele uma religião (...) deveres do mais puro sacerdócio (...) foi vítima da sua dedicação, foi um mártir do culto que professava. (...) Os seus estudos sobre a toxina do tétano e as modificações do soro da difteria do Dr. Roux merecem especial menção. Alguns dos seus trabalhos foram recebidos com aplauso nos institutos estrangeiros (...) colaborou ativamente na nossa imprensa médica (...) brilhante relatório sobre os hospitais para tuberculosos (...) Entrado já na agonia e conhecendo com inteira lucidez que pouco a pouco se ia apagando a pequena chama de vida que o alentava, foi sempre e sucessivamente indicando ao Dr. Belo de Morais, que com absoluta dedicação o acompanhava, as recomendações precisas e elucidativas sobre o seu estado e sobre as precauções de desinfeção que ele devia tomar. De repente observou: – Se eu pudesse urinar! Que grande serviço que seria para a ciência fazer a análise! Nunca até hoje se conseguiu que um pestífero, na agonia, deixasse ele elemento para uma análise rigorosa. (...) Todas as pessoas que estavam no hospital ali ficarão detidas durante 9 dias (...) Hoje não há aulas na Escola Médica...”454.

“Morreu o Dr. Câmara Pestana, esse ilustre homem da ciência, a quem se deve, incontestavelmente, a verdadeira introdução da bacteriologia experimental no nosso país, nome respeitadíssimo não só pelos seus notáveis trabalhos sobre tétano, como pelas suas ininterruptas pesquisas no laboratório. O Dr. Câmara Pestana foi um verdadeiro mártir da ciência; não hesitou em sacrificar a vida para chegar ao descobrimento da verdade. Vimo-lo, em 1894, nos seus laboriosos e pacientes trabalhos de investigador do vibrião do andaço que por essa ocasião arremeteu com Lisboa (...) assistindo a autópsias, visitando o hospital do Bonfim, fazendo experiências e procedendo a inoculações no nosso laboratório municipal de higiene. Foi ultimamente, quando procedia a um dos seus trabalhos, que sofreu a infeção que o levou à sepultura. Homem exclusivamente de laboratório, foi o laboratório, seu constante pensamento, que lhe arrancou a vida: homem de ciência, não tinha a garantia de imunidade, pelo contrário, era quem mais estava sujeito, pelo exercício profissional, a ser empolgado e vitimado pelos cardumes de vibriões que analisava. (...) Pode dizer-se afoitamente que o Dr. Câmara Pestana faz verdadeira falta à ciência, que neste momento doloroso deve estar de luto, e ao país, que teve a fortuna de o possuir...”455.

“O Sr. Conde do Restelo, em sessão da câmara, ontem, referindo-se à morte do Sr. Dr. Câmara Pestana, propôs que na ata fosse exarado um voto do mais

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Ibidem. 455

132 profundo sentimento por tal sucessor, que rouba ao país um distinto médico, vítima do seu amor pela ciência e interesse pela humanidade; propôs mais que se oferecesse gratuitamente o terreno preciso para se erigir no cemitério um monumento à sua memória. (...) o Sr. Martinho Guimarães, referindo-se também à perda que a ciência e a humanidade acabavam de sofrer, propôs que a Travessa do Convento de Santana, onde se está construindo o Instituto Bacteriológico, passasse a ter a denominação de Rua Câmara Pestana, como homenagem à memória daquele mártir do dever profissional. Foi verdadeiramente significativa e imponente a reunião feita ontem pelos alunos da Escola Médica, a fim de resolverem sobre a melhor forma de levar a efeito as projetadas manifestações à memória do ilustre bacteriologista (...) estava repleta de estudantes, vendo-se muitos deles sensivelmente comovidos”456.