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A partir de outubro as primeiras páginas dos jornais voltaram a dedicar-se à política e o estado sanitário do Porto passou para as seguintes. Em novembro ainda houve notícias nas primeiras páginas, na secção “Peste Bubónica”, mas a ocupar apenas uma coluna. Em dezembro já não houve casos novos no Porto, mas continuou a haver óbitos de doentes de peste e inspeções de pessoas e mercadorias. O cordão sanitário à volta do Porto foi levantado no dia 22. O combate contra a disseminação da epidemia estava ganho e a doença foi considerada extinta em janeiro de 1900.

No final de dezembro houve ainda um caso de peste declarado em Lisboa, de um soldado de infantaria que tinha ido passar 90 dias de licença ao Porto. À chegada à inspeção na Rua Ivens verificou-se que tinha febre. Todos à sua volta foram desinfetados, mas alguns colegas seus também ficaram com febre. “A observação bacteriológica confirma a existência do bacilus Yersin no soldado de infantaria 5, recém-chegado do Porto, e que foi para o Lazareto, como referimos. O caso é benigno e o enfermo achava-se ontem melhor, temperatura pouco elevada, e bubão menos doloroso e o estado geral sem complicações. O Sr. Dr. Ricardo Jorge foi ontem ao Lazareto ver o enfermo. As 51 praças de infantaria 5 que haviam sido isoladas por terem comunicado, mais ou menos, com o soldado suspeito, vieram ontem para o antigo quartel do extinto regimento de infantaria 7, na Cova da Moura, onde ficarão isoladas durante nove dias, sendo visitadas duas vezes por dia pelo distinto facultativo de infantaria 5, Sr. Capitão Lima Duque. Todos estão de perfeita saúde. (...) As rigorosas medidas aqui adotadas nas desinfeções das roupas de uso (...) a completa inutilização por meio de fogo das roupas de uso do doente, isto a par da desinfeção

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133 constante e rigorosa do pessoal que está em contacto com ele, não deve permitir a irradiação do mal. (...) Ao doente foi aplicado pelo ilustrado médico Sr. Dr. Vitorino de Freitas, com uma seringa Roux, o soro anti pestífero do Instituto Pasteur”457. No dia seis de janeiro o soldado no Lazareto de Lisboa já estava convalescente. O pessoal que o tratou também teve de fazer quarentena a partir do dia nove. O soldado saiu curado do Lazareto no dia 18 de janeiro de 1900 e foi concedida a livre circulação ao médico e aos dois enfermeiros que o trataram.

Ricardo Jorge voltou ao Porto no dia 22 de dezembro, onde visitou a repartição de higiene e o hospital do Bonfim458, e em fevereiro de 1900 para assistir à sessão do Conselho Superior de Saúde e Higiene Pública, que declarou o final da epidemia. “Segundo nos consta, s. exª comunicou ao conselho que a comissão de médicos que examinou os doentes ainda recolhidos no hospital do Bonfim foi de opinião de que nenhum daqueles indivíduos apresenta perigo de contaminação do mal de cujas consequências estão convalescentes, opinando por isso que o prazo de dez dias para a determinação do termo da epidemia poderá ser contado desde a data do último óbito, ou seja desde 23 de janeiro...”459

.

Ao longo dos meses foram publicados nos relatórios oficiais alguns balanços provisórios da epidemia. Por exemplo, em 24 setembro: “Até sexta-feira averiguaram- se oficialmente 80 casos de peste, 46 em homens e 34 em mulheres. Destes 80 casos, 33 foram de morte, sendo por consequência a percentagem mortal de 39,7. Não entram aqui, como se compreende, os casos sonegados à autoridade, e que podem constituir a parte verdadeiramente perigosa da epidemia, pela difusão, sem defesa profilática, dos focos de infeção”460.

Segundo o relatório apresentado pelo Presidente do Conselho na câmara dos deputados, a epidemia de peste bubónica acabou por ter uma mortalidade reduzida: 326 casos, dos quais 111 óbitos461. O Diário de Notícias manteve a sua secção intitulada “Peste Bubónica” até 15 de fevereiro de 1900, na qual descreveu os últimos casos de doentes curados e o restabelecimento da normalidade sanitária. Até ao fim mostrou a sua solidariedade com o Porto e com os sofrimentos causados, não tanto pela peste em si, mas pelas medidas restritivas à circulação de pessoas e mercadorias. E não deixou de publicar um último lamento: “Foi efetivamente assinado 457 Diário de Notícias, 28/12/1899, p. 1. 458 Diário de Notícias, 22/12/1899, p. 1. 459 Diário de Notícias, 04/02/1900, p. 2. 460 Diário de Notícias, 24/09/1899, p. 1. 461

Diário de Notícias, 31/01/1900, p. 2. Os números variam de acordo com as fontes consultadas: 323 doentes, dos quais faleceram 115, Ferrán y Clua, Jaime, Federico Viñas y Cusí, Rosendo de Grau. Op.

cit., p. 111; 320 casos, entre os quais 112 mortais, Ferreira, Maria Emília Cordeiro. “Epidemias”. In:

134 ontem e vem hoje publicado no Diário, como anunciámos, o decreto relativo à suspensão das precauções sanitárias até aqui impostas às procedências do Porto (…)

O Comércio do Porto, tratando hoje do termo das medidas sanitárias, diz que não há

motivo para regozijo: há apenas motivo para lamentar que os verdadeiros e reais interesses duma cidade laboriosa com o Porto não ficassem superiores aos caprichos, aos pavores, às mais nefastas e perigosas influências...”462.

Os anúncios a sabonetes medicinais abundaram nesse período, repetindo-se em praticamente todos os números e acentuando a sua ação no combate às doenças, ao mesmo tempo que alertavam para os riscos das infeções por contato. O nome de Sousa Martins foi aproveitado para vender sabonetes e para tentar divulgar hábitos de higiene, ensinando as pessoas a prevenir doenças pela lavagem das mãos, algo ainda muito inovador em 1899: “Sabonete Sousa Martins. (Alcatrão composto) Este sabonete, feito com os princípios ativos do Alcatrão, não suja a água nem as toalhas, como o fazem os sabonetes de alcatrão vulgares. Tem a qualidade de lavar muito bem, amaciando a pele e conservando-a desinfetada, ou desinfetando-a, se for um aperto de mão, ou pelo contacto com uma das sujas notas que circulam no mercado, ou com qualquer objeto contaminado, se tem podido infetar, o que é fácil. Farmácia Estácio...”463

. Este anúncio foi bastante repetido ao longo deste ano.

Estes produtos tinham origem nos laboratórios farmacêuticos e a respetiva publicidade divulgava minuciosamente a sua composição química, com o objetivo de contribuir para a credibilidade que desejava transmitir ao público. A Companhia Portuguesa Higiene, proprietária da Farmácia Estácio no Rossio, parecia ser a mais ativa nesta época, comercializando não só sabonetes, mas também xaropes fortificantes, laxantes e para a tosse464 e medicamentos para a diabetes465.

“Fabricação especial e esmerada da Companhia Portuguesa Higiene (Antiga Casa Estácio & Cª, de Lisboa). Todos os médicos recomendam o uso diário dos sabonetes de Ácido Bórico, Ácido Fénico, Alcatrão, Alcatrão e Enxofre, Creolina,

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Diário de Notícias, 07/02/1900, p. 2. 463

Diário de Notícias, 28/07/1899, p. 3.

464 “Produtos eficacíssimos da Companhia Portuguesa Higiene. Vinho de hemoglobina – Composto ferruginoso natural do sangue e por isso o mais eficaz, não constipando o ventre. Protoxalato de ferro – Precioso pela sua eficácia e por não produzir a prisão de ventre, facilitando antes as evacuações. Farmácia Estácio…”, Diário de Notícias, 01/01/1899, p. 2. “Licor d'Alcatrão. Produto da Companhia Portuguesa Higiene. Às pessoas que fazem uso da água de alcatrão se recomenda este licor, cuja eficácia e largo consumo de muitos anos confirma. Basta uma colher de sopa em meio litro de água para se fazer rapidamente uma excelente água de alcatrão, utilíssima nos catarros vesicais, na asma, moléstias cutâneas…”, idem, 12/11/899, p. 3.

465 “Diabete. Produtos Companhia Portuguesa Higiene eficacíssimos para esta doença. Água Arsenical Lithiada. Vinho Uranado. Com o uso deste vinho desce rápida e sucessivamente a quantidade de açúcar nas urinas. Farmácia Estácio…”, Diário de Notícias, 02/01/1899, p. 2.

135 Enxofre, Ictiol, Naftol, Sublimado Corrosivo, etc. Recomenda-se também para toilete o magnífico sabonete higiénico Marquês de Pombal…”466.

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136 3. Tifo exantemático, gripe pneumónica e varíola, 1918

O ano de 1918 foi marcado pelo final da Primeira Guerra Mundial. Porém, mais mortífera foi a epidemia de gripe pneumónica que se espalhou por todo o mundo, disseminada pelas movimentações dos exércitos, e que provou ser “um dos piores flagelos epidémicos da história humana”467, que matou entre 50 e 100 milhões de pessoas468. O relatório oficial sobre a gripe em Portugal apontou para 59.000 mortes entre 1918 e 1919, com uma taxa de mortalidade de 9,8 por mil. Estudos posteriores apontam para 135.257, o que foi considerado uma “verdadeira hecatombe” com “contornos humanos dramáticos”469. As estatísticas divergem: “Em 1918 registou-se a mais mortífera de todas as epidemias, a gripe pneumónica, que invadiu o País de norte a sul, matando famílias inteiras e causando o pânico por toda a parte. Entre 1918 e 1919 sucumbiram 102.750 pessoas. O ano de 1918 ficou ainda assinalado por epidemias de tifo exantemático, varíola e difteria”470

. De facto, no Porto a gripe encontrou uma população já extremamente debilitada pelas múltiplas doenças endémicas atrás descritas, agravadas pelas condições sanitárias que ainda não tinham sido objeto de melhorias significativas, e por uma epidemia de tifo exantemático que a precedeu. De qualquer modo, ao contrário da guerra, a epidemia não faz parte da memória coletiva de Portugal: “a recordação da pneumónica ficou afastada da esfera pública e relegada à comunidade mnemónica privada que é a família”471. Mesmo na sua época, e apesar de ser referida extensamente na primeira página dos jornais, em duas ou três colunas diárias, a gripe ficou sempre em segundo lugar em relação à guerra e à agitação política nacional na hierarquia das notícias472.

Quadro IV: Jornais consultados em 1918.

Notícias e anúncios sobre ciência e tecnologia nos jornais em 1918

Nº de notícias e anúncios Nº de colunas Diário de Notícias 465 722 O Comércio do Porto 1108 1481 Totais 1573 2203 467

Sobral, José Manuel, Maria Luísa Lima, Paula Castro, Paulo Silveira e Sousa (orgs.). Op. cit., p. 21. 468 “Enormes exércitos defrontavam-se na Europa e na Ásia ocidental; as amplas movimentações de homens e provisões funcionavam como condutas para a disseminação da doença”, Killingray, David. “A pandemia de gripe de 1918-1919: causas, evolução e consequências”. In ibidem, p. 41.

469 Sobral, José Manuel, Paulo Silveira e Sousa, Maria Luísa Lima, Paula Castro. “Perante a pneumónica: a pandemia e as respostas das autoridades de saúde pública e dos agentes políticos em Portugal (1918- 1919)”. In: ibidem, pp. 72-73.

470

Ferreira, Maria Emília Cordeiro. Op. cit., p. 407. 471

Sobral, José Manuel, Maria Luísa Lima, Paula Castro, Paulo Silveira e Sousa (orgs.). Op. cit., p. 30. 472 Lima, Maria Luísa, Paulo Castro, Paulo Silveira e Sousa, José Manuel Sobral. “A febre da gripe nos jornais: processos de amplificação social do risco”. In ibidem, p. 265.

137 O número de notícias e anúncios do jornal portuense ultrapassou o dobro das do jornal de Lisboa devido à epidemia de tifo que se declarou nessa cidade. Contudo, a imprensa da capital não deixou de refletir as preocupações com a doença, publicando diariamente os relatórios oficiais que descreviam o que se passava no Porto e o movimento de passageiros e respetiva inspeção sanitária em Lisboa. Divulgou também conselhos higiénicos e medidas preventivas para serem aplicados nas cidades em geral e assim impedir a propagação da epidemia.

Gráfico XIII: Áreas temáticas das notícias e anúncios sobre ciência e tecnologia em 1918. Ciência 3% Educação/ Formação Científica 7% Exposições/ Congressos 1% Museus 0% Personalidades 1% Publicações Científicas 3% Saúde Pública 76% Sociedades/ Instituições Científicas 1% Tecnologia / Inovação 8%

138 Gráfico XIV: Entradas sobre ciência e tecnologia nos jornais generalistas em 1918.

Gráfico XV: Notícias e anúncios sobre ciência, tecnologia e epidemias publicados em 1918.

Em fevereiro e março de 1918, no pico da epidemia de tifo, as notícias sobre epidemias atingiram 21,4% e 38,1%, respetivamente, do total das notícias e anúncios sobre ciência e tecnologia, 63,0% e 82,2% sem contar com os anúncios; e em outubro e novembro, com a gripe, as notícias sobre epidemias atingiram 44,4% e 44,5%, respetivamente, sobre o total, e 90,4% e 79,2% sem contar com os anúncios. Em

Anúncio 66% Artigo desenvolvido 2% Notícia 31% Opinião 1% 0 100 200 300

400 Notícias sobre epidemias

Notícias e anúncios sobre Ciência e Tecnologia (total)

139 novembro o grande destaque da imprensa foi o armistício e o final da guerra, tema que passou a ocupar a quase totalidade da primeira e por vezes também da segunda página dos jornais, relegando as epidemias para as páginas seguintes, não deixando, no entanto de continuar a publicar os relatórios oficiais dos serviços de saúde e as cartas dos correspondentes na província com as descrições locais do impacto e da evolução das doenças.