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2 O LEITOR NA TEORIA DA LITERATURA CONTEMPORÂNEA

3.3 O CÂNONE LITERÁRIO

Ao apresentar seus quatorze bons motivos para que todos venham a ler ou a reler obras canônicas, Ítalo Calvino, numa reflexão aparentemente romântica, afirma que se trata de livros que constituem uma riqueza para aqueles que tenham lido e amado...(p.10). A idéia de legado, entretanto, está implícita nessa afirmação: os que lêem tais obras tomam contato com uma riqueza de experiências de sensações que passam a constituir o próprio indivíduo.

Buscando definir no que se constitui essa riqueza, o autor afirma que clássico é aquilo que persiste mesmo como rumor onde predomina a atualidade mais incompatível. Nessa perspectiva, mesmo que os clássicos tenham sido escritos em épocas remotas e, por isso, de certa forma destoem do mundo contemporâneo, pois acima de tudo

servem para entendermos quem somos e aonde chegamos e por isso os italianos são indispensáveis justamente para serem confrontados com os estrangeiros, e os estrangeiros são indispensáveis exatamente para serem confrontados com os italianos. (p.16).

Nesse sentido, a obra clássica, ou canônica, possui um efeito de ressonância que permite sua permanência ao longo dos tempos. Constitui-se como parte da construção da identidade do homem, com a sua possibilidade de representação da história, dos seres humanos, do pensamento, do modo de agir que transcende a época de produção. Não apresenta uma história qualquer, mas uma bagagem de vida do passado e, provavelmente, do futuro, expressa na linguagem, na cultura, nas ações, nos sentimentos que se perpetuam. Assim, pois, as obras clássicas da literatura

trazem consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram. Portanto, os clássicos são livros que, quanto mais pensamos em conhecer por ouvir dizer, quando são lidos mais se revelam novos, inesperados, inéditos (p.15).

As leituras dos clássicos realizadas ao longo dos tempos certamente acrescentam novas perspectivas às obras, assim como foram concebidas originalmente. Ocorre que tais narrativas possuem a capacidade de suspender a realidade ou, conforme aponta o autor, de relegar as atualidades à posição de barulho, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo (p.15).

Essa competência de mobilização dos clássicos, que certamente determina a revitalização das leituras, é reiteradamente lembrada pelas instituições ligadas à cultura, à educação, à circulação do livro. É das práticas dessas instâncias que se mantém a estabilidade, o reconhecimento pelos cânones como fenômenos literários.

CÂNDIDO (1975) afirma que o sistema literário — composto por críticos, estudiosos, escritores, escolas, editoras, etc. — norteia não apenas todo o pensamento que contribui para a formação da literatura, indicando o tipo de obra que deve ser produzida, mas também interfere na escolha dos textos consagrados.

O Cânone literário tem a capacidade de estabelecer uma relação metonímica com os leitores, assumindo uma dimensão sócio-cultural. Reis (1995) acrescenta que a escolaridade obrigatória, o ensino da língua nas escolas, a literatura aplicada através de textos normativos contribuem para validar o estatuto literário.

O autor (1995), recorrendo às idéias de Paul Lauter, concebe cânone como o conjunto de obras literárias e elenco de textos filosóficos, políticos e religiosos significativos, os particulares relatos históricos a que geralmente se atribui peso cultural numa sociedade (p.71). O cânone, assim, decorre do envolvimento de três fatores: a seletividade — a forma como são escolhidas as obras e os autores —; a continuidade, ou a permanência delas ao longo dos tempos; e a formatividade, que se constitui na questão pedagógica e ideológica da obra.

CÂNDIDO (1975), ao tratar da formação de uma literatura, parte do pressuposto de que cânone vincula-se a uma tradição histórica, por isso sua natureza está ligada à Sociologia. Desse modo, um país deve se preocupar em montar, ordenar e preservar o surgimento das obras como uma expressão individual, mas de natureza sociológica, pois toda a forma literária reflete o contexto social e/ou ideológico do momento em que foi escrita.

Na medida em que a literatura está enraizada na história, é preciso que as instituições tragam, preservem e venerem as obras canônicas, com toda sua bagagem histórica, cultural, social. Por outro lado, é necessário que também aceitem, acrescentem e cultuem as obras produzidas nos dias de hoje, pois nelas encontra-se o presente que caracteriza o homem e a sociedade atual.

O sentido do canônico ligado ao simbólico e ao sagrado clama para si autoridade para obter privilégios e uma hierarquia na qual está no topo. Tal hierarquia introduz a noção do que é bom ou ruim e do que é belo ou feio na literatura, enfim o que pode ser considerado uma literatura canônica ou não.

Todas as concepções de cânone literário, a princípio tão divergentes, pressupõem uma concepção acerca do que se constitui a própria literatura. Em outras palavras, identificar a essência daquilo que torna uma obra literária é condição para determinar ou não sua inclinação para o cânone já que o conceito de cânone pressupõe e abarca o de literatura.

De acordo com ALASTAIR FOWLER (APUD BLOOM, 2001, p.28): em cada era, alguns gêneros são encarados como mais canônicos que outros. No entanto, não é permitido, ou seja, tolerável que uma obra não se preocupe com sua estética em função de uma ideologia. Fato que seria, no mínimo, hipócrita e individualista, uma vez que a arte, entre elas, a literatura é considerada como tal justamente pelo seu efeito estético, ou seja, pela sua beleza que atinge a inúmeras pessoas, em diversas épocas por divergentes caminhos, que levam ao reencontro com eu — o individual — e ao conhecimento do outro — o social.