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3. DA FLEXIBILIZAÇÃO DAS NORMAS TRABALHISTAS EM PORTUGAL

3.2 O Código do Trabalho de 2003

A edição de um código trabalhista, antes mesmo de 2003, já era uma demanda corrente nos meios jurídico-laborais portugueses. Com efeito, sentia-se a necessidade de sistematização das normas esparsas de direito laboral então vigentes, em um único diploma legal que contivesse normas e institutos organizados de maneira mais técnica.

Martinez183 observa que, já na exposição de motivos do diploma, é dito que a opção por uma codificação das leis trabalhistas é resultado de um amadurecimento da ciência jurídico- trabalhista em solo lusitano, bem como da jurisprudência vigente e consolidada ao longo de quatro décadas. Observa ainda o autor, porém, que o dito código não se subsume ao conceito clássico de codificação, identificando-se mais com uma sistematização integrada das normas laborais então existentes.

Na mesma exposição de motivos, leciona o autor, é enfatizada a preocupação em se manter intactos os liames com a tradição jurídica nacional no que respeita ao direito laboral, em especial os limites constitucionais representados por princípios e normas como a segurança no emprego, o respeito ao direito de greve, o papel das associações sindicais e comissões de trabalhadores, e assim por diante184. Mas, quanto às diretrizes que orientaram a elaboração do novo código, pode-se afirmar que elas se resumem, basicamente, na admissão de formas mais flexíveis (e adaptadas às novas necessidades do mercado) de trabalho, no ajustamento de regras e terminologias jurídico-laborais ao direito civil, e na sistematização das normas dispersas

183 Idem – Ibidem.

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preexistentes (e consequente redução de conflitos entre normas ou lacunas no ordenamento jurídico)185, conforme observado em outro momento deste estudo.

Martinez observa ainda que o código em estudo inova ao preocupar-se em manter um equilíbrio entre as necessidades de trabalhadores e empregadores. O direito laboral deixa de ser visto como um “direito dos trabalhadores”, para ser pensado como um sistema de normas que integram interesses de obreiros e empregadores ao mesmo tempo. A nova ordem jurídica inaugurada pela dita codificação recusa a noção pela qual o direito do trabalho é visto como resultado dos conflitos sociais186, o que, muito provavelmente, incomodou os partidários de uma orientação ideológica mais inclinada à esquerda.

O Código do Trabalho de 2003 dá precedência ao tratamento do contrato individual de trabalho, frente ao chamado direito coletivo. Parte-se do raciocínio pelo qual o direito coletivo pressupõe a existência do contrato individual de trabalho. Ademais, há que se considerar que o direito laboral autonomizou-se a partir de um ramo do direito obrigacional, de modo que seu caráter fortemente associado ao individualismo típico do Direito Civil não pode ser ignorado187.

O Título I do Livro I do referido código, assim como o Título II, versam sobre a gênese do contrato individual de trabalho, indicando os elementos para a sua qualificação, as partes (empregador e empregado), capacidade das partes, etc. Trata ainda de outros aspectos do contrato, como a proteção da maternidade e da menoridade, do trabalhador estudante, estrangeiro, de capacidade reduzida, e assim por diante. Estipula ainda o diploma as regras para a formação e validade do dito contrato, seu objeto e seu conteúdo188.

Os aspectos mencionados acima se referem àquilo que Martinez189 denomina de “perspectiva estática” do contrato de trabalho. No que tange à perspectiva dinâmica do mesmo (a sua execução), o novel diploma também traz suas regras, regulando o local da prestação, o tempo de trabalho, a sua duração e organização, etc., sem descurar de elementos como a segurança laboral, higiene, saúde e acidentes de trabalho. Trata ainda das chamadas “vicissitudes” na sua execução, como as mudanças de atividade e local de trabalho, a transmissão do estabelecimento, a suspensão do contrato, dentre outras. O diploma não ignora, por óbvio, as regras a serem aplicadas em caso de descumprimento das obrigações contratuais. O Título II encerra a matéria do contrato individual de trabalho tratando sobre o seu fim, ou

185 Idem – Ibidem. 186 Idem – Ibidem. 187 Idem – Ibidem. 188 Idem – Ibidem. 189 Idem – Ibidem.

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seja, sobre a cessação do vínculo laboral (caducidade, revogação, resolução e denúncia), distinguindo a cessação de iniciativa do empregado daquela que parte do empregador, prevendo as distintas consequências jurídicas para cada caso190.

É no Título III onde se trata do direito coletivo do trabalho, definindo-se os sujeitos coletivos (comissões de trabalhadores, associações sindicais e patronais, conselhos europeus de empresa, etc.), dando a estes um papel essencial na concretização do direito laboral. O texto legal prevê ainda os instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho (convenção coletiva, acordo de adesão, arbitragem, regulamentos de extensão e de condições mínimas), contrapondo instrumentos negociais aos não-negociais. Por fim, traz regras quanto aos conflitos coletivos, considerando a sua resolução, e dando tratamento especial à greve191.

No que se refere à flexibilização de direitos dos trabalhadores, Maia192 observa que o

novo Código fora alvo de severas críticas da doutrina, na medida em que, ao suprimir o princípio do favor laboratoris (o qual torna obrigatório um tratamento mais favorável ao obreiro), tornou possível aos instrumentos coletivos estipularem condições de trabalho contrárias à lei, ainda que prejudiciais aos trabalhadores.

“Embora conste em sua exposição de motivos que se tratou de unificação da legislação outrora vigente, o mencionado códex foi muito criticado pela redução dos direitos trabalhistas.

A exemplo cita-se a supressão do princípio do favor laboratoris (também denominado como tratamento mais favorável), insculpida no artigo 4º, n.º 1, que autorizava a convenção coletiva do trabalho a constituir condições de trabalho contrárias à lei, ainda que prejudiciais aos obreiros. Inexistia, sequer, um rol mínimo de direitos inatingíveis por esta regra, de modo que se questionou, inclusive, a constitucionalidade deste preceito, porquanto a Constituição da República consagra em seu artigo 59º as garantias mínimas dos trabalhadores. Com a reforma do Código de Trabalho em 2009, o princípio do tratamento mais favorável não foi ressuscitado, contudo, as normas trabalhistas continuaram com sua qualidade de convênio-

190 Idem – Ibidem.

191 Idem – Ibidem. 192 Idem – Ibidem.

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dispositivas, conquanto este Código estabeleça exceções à regra em seu artigo 3º, nº 3193.”

A autora observa ainda que um dos sintomas da flexibilização se faz sentir na proliferação de novas tipologias contratuais, as quais denomina de “contratos atípicos” de trabalho. Por contrato atípico entende-se aqueles aos quais falta(m) algum(ns) dos elementos que caracterizam os contratos típicos: serem de natureza bilateral, sinalagmática, consensual, onerosa, perene/duradoura e intuito personae194.

No que tange ao direito português, em especial após a edição do Código de 2003, afirma a autora:

“O Código do Trabalho vigente em Portugal cuidou de elencar, a partir do seu artigo 139.º, variadas tipologias de contratação atípica, dentre os quais se destaca: contrato a termo; contrato intermitente; contrato a tempo parcial; comissão de serviços; teletrabalho; e trabalho temporário195.”

No que toca ao contrato a termo, a autora196 observa que este se afigura precário, se comparado a outras relações de emprego, vez que o vínculo empregatício tem duração temporal limitada, colocando o obreiro em situação vulnerável. Com a crise econômica que vem atingindo o continente europeu, diz, muitas empresas vêm optando por tal modalidade e evitando o contrato típico, o que representa um desvirtuamento do instituto.

Algo semelhante se poderia dizer do trabalho a tempo parcial, o qual vem disciplinado nos arts. 150º e seguintes do Código de 2003, bem como do trabalho intermitente (art. 157º e ss.)197. O que era pra ser uma modalidade de contrato em que um trabalhador sem tempo disponível para uma jornada integral de trabalho poderia atuar em períodos limitados, ou uma alternativa para o empregador que não necessitasse de mão de obra permanente, acaba por ser desvirtuado como um pretexto para a precarização das relações laborais.

193 Idem – Op. Cit. p. 31.

194 Idem – Ibidem. 195 Idem – Op. Cit. p. 66. 196 Idem – Ibidem. 197 Idem – Ibidem.

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A proliferação de novos tipos de contratos atípicos no ordenamento laboral português seria, de acordo com a autora, um fenômeno em conformidade com a agenda do capitalismo global contemporâneo, que exorta à flexibilidade dos contratos de trabalho e a redução do protecionismo estatal referente a estes. A mesma tendência, como se pôde observar anteriormente, parece se verificar na reforma trabalhista brasileira.

Se a edição do Código do Trabalho de 2003 fora um primeiro passo na reforma da legislação trabalhista portuguesa rumo à flexibilização, tal tendência prosseguira nas alterações posteriores à promulgação do referido código, como se verá a partir das inovações introduzidas em 2009 no mesmo diploma em comento.