• Nenhum resultado encontrado

4 DESENVOLVIMENTO DA INFÂNCIA

4.1 O início do século XX

4.1.1 As crianças no começo do século: relação distante entre infância e

4.1.1.1 Os Códigos Penal e Civil

crianças perigosas podem ser encontradas em cinco grandes leis, quais sejam: o Código Penal de 1890, vigente até 1940, e o Código Civil de 1916, vigente até 2002, que, mesmo não sendo leis específicas para a infância, destinavam-se às crianças em algumas de suas determinações. Na década de 1920, o decreto de assistência e proteção a menores abandonados e delinquentes, de 1923; o primeiro Código de Menores de 1926; e em 1927 a lei que regulamenta a proteção e assistência, unificando as duas leis anteriores77.

As duas leis mais antigas tratam de aspectos abrangentes da vida dos brasileiros, sem distinção etária ou geracional a priori e serão analisadas no que especificamente referem à infância. Os principais pontos do Código Penal de 1890 (Decreto nº 847/1890), no que tange à infância e às crianças, tratam da isenção de culpabilidade, inimputabilidade, total e parcial de menores e de crimes praticados contra ou por menores. No Código Civil (Lei nº 3.071/1916), a atenção recai na incapacidade absoluta e relativa de cometer atos da vida civil ou práticas de atos jurídicos78 por menores e suas consequentes restrições ou permissões; nas questões de filiação, reconhecimento e adoção; e nas questões de pátrio poder e tutela, tanto no que trata de direitos dos responsáveis pelos menores quanto no abuso desse poder. Vale destacar que a legislação se refere às crianças utilizando majoritariamente o termo menor, e, por este motivo, muitas vezes ele será utilizado quando o enfoque for dado às leis.

4.1.1.1 Os Códigos Penal e Civil

No início do século, a partir do que era determinado pelo Código Penal (Decreto nº 847/1890), somente as crianças com menos de nove anos de idade eram consideradas inimputáveis (§ 1º do Art. 27)79, ou seja, não poderiam ser consideradas de forma alguma como criminosas ou responsabilizadas por quaisquer atos ilícitos cometidos. Entre os nove e os 21 anos de idade, a menoridade era uma                                                                                                                

77 O Código de Menores de 1927 permaneceu vigente até 1979 quando o segundo Código de

Menores foi aprovado, que por sua vez perdeu a vigência em 1990 com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente.

78 De acordo com o Código Civil: “Art. 81. Todo o ato lícito, que tenha por fim imediato adquirir,

resguardar, transferir, modificar ou extinguir direitos, se denomina ato jurídico”.

79

Com o objetivo de tornar a leitura mais fluida, optou-se por referenciar apenas os artigos das leis que são discutidas e retomadas repetidas vezes após as mesmas terem sido identificadas em cada trecho ou seção da tese.

circunstância atenuante. Para aqueles, entre os nove e 21 anos, que cometessem atos ilícitos, havia distinções de culpabilidade, sendo que, até os 14 anos, caso o ato ilícito fosse cometido sem discernimento, não poderiam ser considerados criminosos (§ 2º do Art. 27), mas aqueles que, com discernimento, fossem culpados seriam “recolhidos a estabelecimentos disciplinares industriaes” (Art. 30). Entre os 14 e os 17 anos, cabiam aos menores penas de cumplicidade80 e, mesmo não havendo especificação entre os 18 e 21 anos de idade no que se refere a julgamento e diferenciação de culpabilidade, todos os menores de 21 anos seriam recolhidos separadamente dos maiores, como está estabelecido no artigo 30 desta lei.

O título IX deste Código Penal trata dos crimes contra a segurança do estado civil e seu quarto capítulo se refere especificamente a crimes de subtração, ocultação e abandono de menores e as penas cabíveis a quem cometer tais crimes (Art. 289 a 293), sendo que, caso seja cometido crime que leve à morte ou coloque em risco a vida de menor de sete anos de idade, por pais ou responsáveis pela guarda do menor, a pena é aumentada em um terço81. Os outros dois crimes cometidos especificamente contra menores, que o Código Penal prevê em separado, são o rapto “para fim libidinoso” de mulher menor de idade, entre 16 e 21 anos, que tenha dado seu consentimento (Art. 270) e jogar com ou incitar menor de 21 anos a jogar jogos de azar.

O Código Civil de 1916 (Lei nº 3.071/1916), que vigorou até 200282, estabelecia que a menoridade se estendia até os 21 anos de idade, o que, por um lado, impedia a igualdade de direitos civis e, por outro, protegia as crianças de ações abusivas cometidas contra elas. Um dos aspectos mais relevantes para a vida das crianças presentes neste código diz respeito à incapacidade de “... exercer pessoalmente os atos da vida civil” (Art. 5º) que, até os 16 anos, era absoluta e, dos 16 aos 21 anos, relativa (Art. 6º). Neste último caso, os atores são capacitados pela e perante a lei a exercer alguns atos da vida civil, porém isso não os exclui da menoridade e, assim, esta condição permanece. A única ação capaz de acabar com a menoridade é a emancipação, após os 18 anos, com sentença judicial (inciso I do art. 9º), tornando-se maior perante a Lei e capaz de exercer todos e quaisquer atos                                                                                                                

80 As penas de cumplicidade são mais brandas do que as penas do agente do crime.

81 Este pode ser um primeiro indicativo das transformações ao longo do século no que tange à

proteção das crianças contra abusos cometidos por aqueles que as têm sob sua responsabilidade e/ou guarda.

da vida civil83. Isso somente veio a ser mudado em 2002 quando da publicação do novo Código Civil, Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002, que reduz para os 18 anos a maioridade e, dos 16 aos 18 anos, define a menoridade relativa, tornando possível a emancipação a partir dos 16 anos. A questão da incapacidade das crianças, os menores de idade perante a lei, é, em certa medida, a linha condutora do tratamento dado às crianças no Código Civil, pois elas precisam ser tanto representadas quanto protegidas por maiores de idade, considerados capazes.

A incapacidade com a qual a lei enxerga as crianças traz consigo uma série de restrições, a começar por tornar nulo qualquer ato jurídico praticado por pessoa menor de 16 anos, considerada absolutamente incapaz, e a possibilidade de ter anulado ato jurídico contraído por pessoas entre os 16 e 21 anos, consideradas relativamente incapazes, sem a autorização dos pais ou tutores. Estas últimas, se cometerem atos ilícitos previstos no Código Civil, respondem como maiores de idade, caso sejam culpados (Art. 145, 154 e 156). Outras restrições previstas para os menores absolutamente incapazes são o testemunho e o casamento, para as mulheres até os 16 anos e para os homens até os 18 anos, sendo exigido o consentimento dos pais até que a maioridade seja atingida.

São previstas, contudo, situações nas quais, após os 16 anos, a incapacidade, mas não a menoridade, é suprimida: o casamento; o emprego público; a colação de grau em nível superior; a emancipação; o alistamento militar aos 18 anos de idade; e “... pelo estabelecimento civil ou comercial, com economia própria” (Art. 9º). Como incapazes, os menores têm em seus pais seus representantes legais ou, em caso de falecimento, ausência ou perda do pátrio poder destes, os tutores assumem esse papel.

Para além das restrições, há neste código medidas que podem ser consideradas como visando à proteção das crianças, em especial no que se refere à filiação. Primeiramente, é estabelecido como “... deveres de ambos os cônjuges: [...] Sustento, guarda e educação dos filhos” (Art. 231) e em casos de desquite a lei exige o sustento dos mesmos (Art. 321). Nos casos de dissolução da sociedade conjugal, o capítulo II do título IV deste código é dedicado exclusivamente à                                                                                                                

83 Excluindo-se dessa possibilidade de capacidade as mulheres casadas, que, até a publicação da Lei

nº 4.121/1962 que altera o art. 6º, da parte geral, do Código Civil, eram consideradas relativamente incapazes enquanto permanecessem casadas. Neste artigo em específico não é a geração, mas o gênero que determina a capacidade da pessoa. Ainda que não seja a questão central da tese, cabe mencioná-la.

proteção dos filhos84. O título seguinte trata das relações de parentesco, os capítulos II, III, IV e V referindo-se à filiação legítima, ilegítima e adoção, e o capítulo VI, ao pátrio poder.

O pátrio poder é, em linhas gerais, o poder exercido pelos pais sobre os filhos menores de idade ou não emancipados. A principal norma jurídica que regulava o pátrio poder e seu exercício era o Código Civil, pois em diversas outras peças da legislação este é tomado como referência. Nesta lei, encontram-se determinações acerca da responsabilidade daqueles que exercem o pátrio poder, assim como as razões para perdê-lo. Aos pais cabia, de acordo com o artigo 384 do Código Civil,

I. Dirigir-lhes a criação e educação. II. Tê-los em sua companhia e guarda. III. Conceder-lhes, ou negar-lhes consentimento, para casarem. IV. Nomear-lhes tutor, por testamento ou documento autentico, se o outro dos pais lhe não sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercitar o pátrio poder. V. Represental-os, até aos dezeseis annos, nos actos da vida civil, e assistil-os, após essa idade, nos actos em que forem partes, supprindo-lhes o consentimento85. VI. Reclama-los de quem ilegalmente os detenha. VII. Exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.

Ou seja, decidir, prover, responsabilizar-se pelos atos e proteger os filhos menores. Em contrapartida, aos filhos cabiam a obediência, o respeito e a ajuda. O pátrio poder acaba com a maioridade ou emancipação, ou poderia ser suspenso em alguns casos, tais como um novo casamento da mãe, visto que o pátrio poder era exercido pelo marido86; o descumprimento dos deveres paternos; situações de abuso do poder; de castigos imoderados; de abandono; por arruinar os bens dos filhos; por práticas de atos contrários à moral e bons costumes; e pela condenação por sentença irrecorrível que tenha pena maior que dois anos (Art. 394 e 395). Essas medidas aplicáveis, de acordo com a lei, a partir das determinações de suspensão e/ou perda de pátrio poder, podem ser consideradas como medidas que protegem as crianças dos abusos cometidos pelos adultos.

Ambos os Códigos acima apresentados levantam assuntos da infância, mas não foram desenhados focalizando exclusivamente as crianças, embora informem as questões que recebiam destaque. Tanto no Código Penal como no Código Civil, há                                                                                                                

84

Capítulo II (Da proteção da pessoa dos filhos) do título IV (Da dissolução da sociedade conjugal e da protecção da pessoa dos filhos) do Livro I (Do direito de família), primeiro livro da Parte Especial.

85 O Inciso V originalmente determinava “V. Representa-los nos atos da vida civil”. A redação acima

apresentada foi dada pelo Decreto do Poder Legislativo nº 3.725, de 1919.

86

A Lei nº 4.121 de 1962 determina que o pátrio poder seja exercido pelo marido com a colaboração da mulher, assim como revoga sua perda por parte da mãe que se casa novamente.

preocupações concernentes à capacidade de as crianças responderem por seus próprios atos e a intenção de protegê-las de atos ilícitos cometidos contra elas. No primeiro caso, fica evidente a diferenciação em razão de penas maiores a pessoas condenadas por cometer crimes contra menores e, no segundo, a principal proteção parece ser fazer parte de uma família, visto que muitos capítulos que tratam da infância estão contidos no direito da família.

Cabe destacar que, até este ponto do desenvolvimento da infância brasileira, pelo aspecto legal, a infância e as crianças são visíveis na legislação federal como um assunto familiar, sem qualquer menção à escola.