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c) Impedimentos enfrentados pela pessoa com deficiência auditiva

“`Ah, você não pode trabalhar porque tem problema de audição´ e eu falava: `Mas eu te- nho experiência. Com aparelho, eu escuto´.”62 Adriana63

Adriana é uma jovem brasileira que nasceu com deficiência auditiva, ela é professora e já viveu muitos desafios em sua vida para se colocar em sociedade. A frase acima conta sua experiência em uma das primeiras entrevistas para ingressar numa escola como profes- sora. O fato de ser surda foi encarado como impedimento para o exercício do magistério, mesmo que ela fosse capaz de ouvir com a ajuda do aparelho auditivo. Na verdade, a expe- riência de Adriana, bem como a de muitos surdos em nosso país é de discriminação, a de ser reduzida à surdez. Vejamos um outro trecho de seu depoimento:

Porque é assim, (...). Eu não conseguia ter amiguinhos na escola, porque era surda. Não falava com namorado, porque era surda. Porque, se eu falasse, ele não ia mais namorar comigo, porque eu era surda. Eu não conseguia emprego, porque as próprias psicólogas, sabe, pessoas que você espera que tenham mais sensibilidade com isso; coordenadoras, falavam que eu não podia trabalhar porque era surda. E hoje, trabalhando com deficientes

aproveitamento da visão residual.

62 Maria Regina LUCHESI C. Educação de pessoas surdas: experiências vividas, histórias narradas, p. 42. 63 Adriana é uma das pessoas entrevistadas pela autora Maria Regina C. LUCHESI em Educação de pessoas

auditivos e nos próprios estágios, já presenciei uma professora falar assim: “Olha pra mim, se você não olhar para mim, você não vai ficar inteligente”. Isso me chocou demais (...). Então, o problema não é com a criança. O professor fica reforçando isso nela. “Olha para mim para ficar inteligente.”64

As dificuldades impostas à pessoa com deficiência auditiva65 vão desde o processo de comunicação centrado na audição até o processo de alfabetização fonética no sistema de ensino. O indivíduo que não tem o sentido da audição é extremamente prejudicado no pro- cesso de comunicação em sociedade, especialmente quando se estabelece a fala como uma das expressões da humanidade. É enorme a pressão que uma pessoa surda sofre no sentido de desenvolver sua oralidade (mesmo não escutando) para se colocar em sociedade e assu- mir os papéis sociais pretendidos (no caso de Adriana: estudante, amiga, namorada, profes- sora, etc.).

Pelos preconceitos e pela ignorância, coloca-se em risco a “sujeiticidade” desta pes- soa, objetivando-a. Chega-se, inclusive, a ponto de impor como condição para o “ser inteli- gente” (objetivação racional), a fixação do olhar no indivíduo ouvinte – a professora (capaz de ensinar a falar e escrever). Toda a possibilidade de superação do “problema da surdez” está nas mãos da professora ouvinte, basta olhar para ela. Será que para ser inteligente, o aluno surdo tem que olhar o tempo todo para a professora? Que tipo de conhecimento esta criança construirá - sem perceber o espaço, as pessoas, as relações e as ações em sua volta?

As ações da professora, acima citada, fundamentam-se na pedagogia oralista66, trata- se de uma pedagogia centrada no desenvolvimento da oralidade do surdo, que condiciona a alfabetização ao desenvolvimento da leitura labial e da fala. Entretanto, a discussão atual se dá em torno das abordagens pedagógicas mais adequadas para a alfabetização e educação dos surdos (o oralismo, a comunicação total ou o bilingüismo). Inserem-se neste contexto

surdas: experiências vividas, histórias narradas.

64 Maria Regina LUCHESI C. Educação de pessoas surdas: experiências vividas, histórias narradas, p. 39.

65

Nos termos da Lei de Acessibilidade Decreto 5296/2004, Art. 5º, §1, inciso I, alínea b, a pessoa com deficiência auditiva apresenta “perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas freqüências de 500Hz, 1. 000Hz, 2. 000Hz e 3. 000Hz”. Disponível em: <portal.mec.gov.br/seesp/index.php?option=content&task=view&id=63&Itemid=192>. Acesso em: 10 de novembro de 2005.

66 Um evento marcante na história do oralismo foi o Congresso de Milão, em 1880, que definiu pela obriga-

toriedade da língua oral (Oralidade), sendo que as línguas de sinais deveriam ser forçosamente erradica- das. Chegava-se a amarrar as mãos da pessoa surda para que ela não se comunicasse por gestos. Veja Ni- dia Regina Limeira SÁ. Cultura, poder e educação de surdos, p. 57.

muitas questões, tais como: Qual a importância da oralidade no processo de comunicação? Os surdos devem ou não ser inseridos em escolas de Educação Especial? Os surdos têm uma deficiência ou desenvolvem uma cultura diferente dos ouvintes?

O fato é que a surdez pode ser entendida como patologia (deficiência) ou como iden- tidade cultural (diferença) - como patologia, dá espaço para que a fala seja a medida da hu- manidade e define a incapacidade da pessoa surda e, como identidade cultural, abre espaço para uma nova discussão – a comunidade surda e sua construção cultural diferenciada, a começar pela língua própria: LIBRAS67.

Entende-se que “a pedagogia tradicional para surdos não considerou sua diferença, sua língua, sua cultura e suas identidades, por supervalorizar a voz, lhes negou a vez” 68. Nestes termos,

Os Estudos Surdos se lançam na luta contra a interpretação da surdez como deficiência, contra a visão da pessoa surda enquanto indivíduo deficiente, doente e sofredor, e contra a definição da surdez enquanto experiência de uma falta. Ora, os surdos, enquanto grupo organizado comunitária/culturalmente não se definem como ‘deficientes auditivos’, ou seja, para eles o mais importante não é frisar a atenção sobre a falta/deficiência da audi- ção – os surdos se definem de forma cultural e lingüística (...). Qualquer pessoa que tenha relativo conhecimento da comunidade surda sabe que a definição da surdez pelos surdos passa muito mais por sua identidade grupal que por uma característica física que preten- samente os faz ‘menos’ (ou ‘menores’) que os indivíduos ouvintes. 69

A idéia central é a de que os surdos são pessoas normais, felizes na sua forma de ser, com sua língua e cultura próprias. Portanto, como sujeitos, têm o direito de optar se querem ou não utilizar a fala. Afinal, será que a fala é a medida das habilidades humanas? Será que, para fazer amizades, estudar, namorar, trabalhar, etc.(expectativas de Adriana) é preciso comunicar-se através da fala? Em sociedade, não valem outras formas de comunicação, co-

67 A língua brasileira de sinais (LIBRAS – no caso do Brasil) é, inegavelmente, um instrumento importante

para o processo de construção simbólica e a comunicação de pessoas surdas. Contudo, a questão é bem mais complexa, não basta a LIBRAS ou o intérprete de LIBRAS em sala de aula para que se efetivem a comunicação e a construção do conhecimento. A língua de sinais (LIBRAS) possui uma construção gra- matical diferenciada da língua portuguesa o que, por conseguinte, dificulta a aprendizagem da língua por- tuguesa escrita e a produção de texto nos moldes gramaticais da mesma. Uma outra questão pertinente nesta discussão é sobre como se dá a relação surdos e ouvintes em sociedade: a comunidade surda pode se tornar um gueto?

mo a LIBRAS? O que se dá na educação dos surdos, na maioria das vezes, é a objetivação do “surdo ideal” como aquele que desenvolve sua oralidade e comunica-se com os ouvintes “normalmente”. Será que o “surdo ideal” não esconde o surdo real, tornando-o socialmente ausente?

Uma pessoa que não fala, mas gesticula para se comunicar, assusta, amedronta os ouvintes. Assume, aos olhos da sociedade, através das formas de produção da não- existência, formas desqualificadas de existir. Adriana foi segregada no “local”, no mundo dos surdos, quando a acessibilidade lhe foi negada por um mundo pensado nos padrões da audição e da fala. Em sua existência, ela viveu situações onde não poderia namorar, ter a- migos, estudar ou trabalhar porque era surda. Adriana foi considerada improdutiva e des- qualificada como professora porque suas habilidades ficaram escondidas na peça de um apa- relho auditivo. Afinal, era o aparelho que todos enxergavam, e, não, a pessoa que lutava, em sua “sujeiticidade”, para exercer suas habilidades como professora.

Hoje, Adriana é uma professora, trabalha com alunos surdos e entende que o mais importante é o professor “se preocupar em trabalhar, em desenvolver as capacidades” que o aluno tem como “indivíduo”, como “pessoa”70. Ela entende que a educação tem poder cons- tituidor de “sujeiticidades”, sendo relevante o uso de estratégias pedagógicas diferenciadas que possibilitem o acesso às informações e a construção do conhecimento - mesmo num mundo pensado a partir da audição e da fala. São ações importantes para que a pessoa não seja reduzida à condição da surdez e para que seja respeitada a “sujeiticidade” da pessoa surda.

A legislação brasileira contempla a maior parte das reivindicações das pessoas sur- das ou com deficiência auditiva. Em 22 de dezembro de 2005, foi promulgado o Decreto Lei 5.626 que, inclusive, supera a visão patológica da surdez, nos seguintes termos: “consi- dera-se pessoa surda aquela que, por ter perda auditiva, compreende e interage com o mun- do por meio de experiências visuais, manifestando sua cultura principalmente pelo uso da Língua Brasileira de Sinais – Libras”71. A presença de intérprete de LIBRAS em sala de

69 Ibidem, p. 48.

70 Maria Regina LUCHESI C. Educação de pessoas surdas: experiências vividas, histórias narradas, p. 38. 71 BRASIL Decreto Lei N. 5. 626 de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei nº 10.436, de 24 de abril

aula, a diferenciação metodológica no processo de avaliação, a formação de professores e de intérpretes de LIBRAS em cursos de graduação bilíngües, as janelas com intérprete de LI- BRAS e a legenda oculta nos meios de comunicação áudio-visuais, etc. são algumas dispo- sições do Decreto Lei 5.626 à sociedade.