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a) Educar para a condição humana

Segundo Morin torna-se necessário resgatar “a condição humana como o objeto es- sencial de todo o ensino”188, considerando seriamente a complexidade humana, bem como a complexidade do próprio processo educativo no século XXI. Um dos caminhos para isto seria a “religação dos saberes”, onde “o ensino pode tentar, eficientemente, promover a convergência das ciências naturais, das ciências humanas, da cultura das humanidades e da Filosofia para a condição humana”189.

Entendemos que esta “religação dos saberes” é de extrema relevância quando pensa- mos a educação da pessoa com deficiência, no sentido da proposição de uma abordagem pedagógica que rompa com a exclusividade cartesiana e respeite as diferentes formas de aprender e ser. Trata-se de colocar, nas palavras de Assmann, a corporeidade humana como cerne do processo de construção de conhecimento.

Essa tarefa, entretanto, necessita de educadores/as lúcidos/as, pois se faz necessária a emergência da consciência da unidade / diversidade humana, ou seja, da complexidade hu- mana. A consciência lúcida carece de “múltiplos conhecimentos e de um esforço de pensa- mento para articular esses conhecimentos”190 dispersos em várias disciplinas. A unidade da consciência humana somente é possível como “circuito / anel reflexivo”191, dado o fato de que a própria consciência não é uma instância fixa e estável, mas está sujeita aos possíveis erros humanos, pois é humana.

188 Edgar MORIN. Os sete saberes necessários à educação do futuro, p. 15.

189 Ibidem, p. 46. O autor desenvolve também essa proposta em jornadas temáticas idealizadas e dirigidas por

ele na França e expressas no livro A religação dos saberes: o desafio do século XXI.

190 Edgar MORIN. O Método 5: a humanidade da humanidade – a identidade humana, p. 113. 191 Ibidem, p. 113.

Se considerarmos a complexa condição humana e perguntarmos pelo potencial auto- organizativo das corporeidades diferentes, poderemos nos surpreender com as diferentes propostas pedagógicas que surgirão. As pessoas com deficiência, citadas no primeiro capítu- lo desta pesquisa, podem nos dar algumas pistas. Afinal o processo de construção do conhe- cimento é muito mais que um processo mental, é também um processo existencial onde cor- poreidades distintas percorrem caminhos distintos na construção do conhecimento.

Leandra Certeza192, uma pessoa com Osteogenesis Imperfecta193, condenada à morte logo ao nascer, nos indica que as fraturas constantes e a dor não impediram o seu desenvol- vimento tanto físico como intelectual. Muito pelo contrário, estas experiências tornaram-se o fundamento de sua existência e de seu desenvolvimento como uma jornalista que compre- ende a vida a partir da diversidade humana. As barreiras físicas devem ter dificultado e até minimizado suas oportunidades, contudo não a impediram, mas a impulsionaram a ser uma jornalista que dá visibilidade às barreiras sociais que incapacitam as pessoas com deficiên- cia.

Marco Antônio Queiroz e o rapaz cego que se candidatou ao curso de Rádio e TV194 testemunham que é possível aprender sem ver através do potencial auto-organizativo de suas corporeidades: o recurso à memória (ou resíduo) visual para a reconstrução do seu co- tidiano (andar, vestir, trabalhar, estudar, etc.) e a utilização dos demais sentidos do corpo (olfato, tato, audição) para aprender e interiorizar novos conhecimentos.

As pessoas surdas (como Adriana195) também nos dão pistas das formas diferencia- das de ser e aprender, num constante processo de coincidência entre processos cognitivos e existenciais. É possível construir o conhecimento sem ouvir ou falar, sendo que a comuni- cação, imprescindível no processo educativo, pode acontecer por imagens – e não necessari- amente por sons. A barreira comunicacional pode ser rompida e o que antes era incapacida-

192 Citada no primeiro capítulo.

193

“A Osteogenesis Imperfecta (OI), ou Osteogênese Imperfeita, é uma doença genética relativamente rara (atinge em média 1 a cada 21. 000 nascidos) que provoca principalmente a fragilidade dos ossos. Uma defi- ciência do colágeno (proteína que dá consistência e resistência, principalmente ao osso, mas também à pele, veias e outros tecidos do corpo) do organismo é a responsável pelas características da doença. (... ) Como conseqüência de fraturas e microfraturas pode haver o encurvamento dos ossos das pernas, braços e às vezes da coluna. ” ABOI. O que é Osteogenesis Imperfecta? Disponível em: <www.aboi.org.br/oqueeh.html>. Acesso em: 17 de maio de 2006.

de agora é diferença. A surdez não precisa ser somente falta, ela também pode ser oportuni- dade – oportunidade de uma produção simbólica que passa por outros caminhos comunica- cionais, antes não considerados pedagógica e socialmente: como a LIBRAS.

E talvez, o mais intrigante de tudo (quando nos amparamos em paradigmas cartesia- nos), a corporeidade da pessoa com deficiência mental também indica outros caminhos pe- los quais podemos viver e aprender. Alessandro196 (e sua flauta) nos indica que: sem falar e ler, também é possível construir uma existência, é possível relacionar-se e ser humano. O olhar e o gesto podem comunicar, o amor pode ensinar. Para perceber isto, é preciso romper barreiras atitudinais (fundamentadas no racionalismo).

Educar para a condição humana é, antes de qualquer coisa, buscar compreender a con- dição humana vislumbrando a possibilidade de uma vida melhor para todas as pessoas, com ou sem deficiência. É reconhecer a cultura197 humana em sua complexidade e respeitá-la. Nestes termos, é possível olhar para a pessoa com deficiência como uma pessoa que com- põe o universo social e que tem um modo diferente de viver e aprender.

No momento em que podemos respeitar e considerar a condição humana das pessoas com deficiência, em sua complexidade, podemos incluir, no “ser” humano, novas categori- as, tais como: ser cego, ser surdo, ser surdo-cego, ser paraplégico, ser tetraplégico, ser autis- ta, etc. E mais que isto, podemos dar visibilidade à vulnerabilidade humana com todos os seus desafios postos, onde fraqueza, dor, medo, erro, instabilidade, incapacidade...etc pode- rão também ser categorias que nos ensinam a viver e aprender.

As diferenças, portanto, deixariam de ser legitimadoras de hierarquias. Como já vi- mos, quando a condição humana é entendida em padrões dicotômicos, como normal e a- normal, perfeito e imperfeito, constrói-se uma abordagem pedagógica limitada aos modelos classificatórios e lineares que não respeitam a corporeidade humana em toda a sua comple-

195 Citada no primeiro capítulo. 196 Citada no primeiro capítulo.

197 Especialmente quando nos referimos às pessoas com deficiência auditiva, o aspecto cultural é bastante rele-

vante. Os estudos surdos nos dão indicações disto quando perguntam pela cultura da pessoa surda, mais es- pecificamente, pela língua de sinais – como expressão maior do modo de ser e viver das comunidades sur- das. Nidia Regina Limeira SÁ. Cultura, poder e educação de surdos p. 48. Contudo, vale colocar o proble- ma do “mito da consistência cultural” que “supõe que cada cultura é harmoniosa, equilibrada, auto- satisfatória”, onde “cada sujeito adquire identidades plenas a partir de únicas marcas de identificação, como se por acaso as culturas se estruturassem independentemente de relações de poder e hierarquia”. Carlos S-

xidade e potencialidade. E ainda mais, quando se ignora a realidade social na qual o ser hu- mano se encontra, torna-se impossível a percepção e a superação de barreiras eminentemen- te sociais (arquitetônicas, comunicacionais e atitudinais).