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CLUSÃO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

“Mas o certo é que Deus ama toda vida humana. Por isso, não há na realidade nenhuma vida ‘reduzida’ ou ‘menos-válida’. Cada vida é, a sua maneira, vida divina, e como tal devemos reconhecê-la e respeitá-la” Jürgen Moltmann209

Nos capítulos anteriores, nós descrevemos o cenário da pessoa com deficiência no Brasil, desde sua história social até os desafios para uma educação e sociedade inclusivas. Percorremos estes caminhos perguntando pela antropologia subjacente aos paradigmas edu- cacionais que marcaram, e ainda marcam, a história social das pessoas com deficiência. Lo- calizamos modelos educacionais marcados ora pelo assistencialismo caritativo, ora pela atuação clínico-terapêutica, o que ocasionou, sobre a vida das pessoas com deficiência, as marcas da segregação e exclusão educacional e social e, por conseguinte, a invisibilidade social destas pessoas. O rompimento com este histórico de segregação e exclusão parece ser

209 Jürgen MOLTMANN. Diaconia en el horizonte del Reino de Dios. p. 80. Texto original em alemão: Diako-

nie im Horizont des Reiches Gottes, 1984. Todavía, nossa referência será o texto em espanhol (Tradução de Constantino Ruiz Garrido, 1987). Nas citações, porém, optamos pelos textos em português (tradução desta autora).

vislumbrado com a chegada de um novo paradigma – o da inclusão, onde a pessoa com de- ficiência ganha visibilidade e as incapacidades são compartilhadas com a sociedade no sen- tido de superação das barreiras (arquitetônicas, comunicacionais, atitudinais, etc.) impostas às pessoas com deficiência. Localizamos, ainda, a dimensão simbólica deste fenômeno que, por sua vez, indica os desafios que são postos à teologia – como instrumento de construção simbólica e de formação humana.

Na perspectiva do panorama histórico-social, os estigmas210 ou as objetivações im- postos às pessoas com deficiência têm, muitas das vezes, origens em antropologias religio- sas. Quando, por exemplo, na Antiguidade se colocava a pessoa com deficiência na catego- ria de sub-humana – a deficiência tinha origem divina (anjos) ou demoníaca (demônios). Ou ainda, quando, na Idade Média – no universo judaico-cristão, a deficiência era sinônimo de castigo divino. Enfim, os estigmas trazem em si uma conotação de des-humanidade que leva à discriminação, segregação ou exclusão e, muitas das vezes, eles se constroem fundamen- tados em antropologias religiosas.

Na verdade, coloca-se em discussão a condição humana, discussão esta carregada de forma simbólica - seja na religião (mito da criação) ou na ciência (mito do progresso) - ex- pressa no anseio pela perfeição humana. Como pode Deus criar pessoas imperfeitas (defici- entes)? Como pode ser humana (perfeita) a pessoa com deficiência? Como pode ser possível uma imperfeição original? Como podemos melhorar o ser imperfeito? São perguntas, carre- gadas do aspecto simbólico, que pressupõem uma certa noção de Deus presente na religião ou subjacente na ciência - o que nos leva ao campo teológico.

Entendemos que a inclusão é um tema pertinente à teologia, desde as pronunciadas confissões de fé até as práticas pastorais por elas suscitadas (ou vive-versa). Podemos, como exemplo, citar algumas idéias sobre perfeição. Se “todos, inclusive os cristãos, dizemos que o homem normal é um homem são, forte e apto para o trabalho. Todos, incluindo os cris- tãos, dizemos que, quando uma pessoa não é normal, deve ser normalizada” 211. Como, en- tão, poderemos dizer a uma pessoa com deficiência que ela é criada por Deus - se acredita-

210 Lígia Amaral insere os estigmas no contexto dos mecanismos psicológicos de defesa frente à deficiência.

Entende-se por estigma a “inabilitação para a aceitação social plena”. Lígia Assumpção AMARAL. Conhe- cendo a Deficiência: em companhia de Hércules, p. 111-123.

211 Jürgen MOLTMANN. (Trad. Constantino Ruiz Garrido). Diaconia en el horizonte del Reino de Dios, p.

mos que Deus cria apenas seres perfeitos? Ou seremos coniventes com afirmações do tipo: “Deus quis criar-me são também, mas algo saiu errado. De maneira que sou uma espécie de produto divino defeituoso”212? Entendemos, portanto, que a teologia tem uma tarefa crítico- profética, nos termos de uma antropologia teológica, que construa e não diminua o ser hu- mano em função de suas deficiências. Assim, nas palavras de Brakemeier,

É tarefa da antropologia, particularmente da teológica, construir o ser humano, não o es- magar sob o peso de seus fracassos e de suas deficiências. Coloca-se, por isto, o serviço do resgate da dignidade humana e da proteção à mesma, correspondendo assim ao pro- pósito do próprio Deus. Conseqüentemente, vai opor-se à degradação das pessoas a má- quinas, autômatos, mercadorias, cobaias, robôs, objetos de uso ou outra categoria de “coi- sas”. Para o bem da humanidade, não pode ser sepultado o sonho por um mundo mais humano, justo, fraterno, habitável, sustentável. (...) Na raiz da tão falada crise de valores da atualidade, está uma crise antropológica sem precedentes, ameaçando substituir a dig- nidade humana por mera funcionalidade.213

A aproximação que propomos (entre o paradigma da inclusão e a teologia) se dá, exatamente, no sentido do resgate da dignidade humana de todas as pessoas - buscando pe- las frestas da porta teológica, a contribuição da teologia para a construção de uma sociedade mais humana, onde as pessoas valham por sua inerente dignidade e não, somente, pela sua funcionalidade nos espaços sociais. Para tal, entendemos que é preciso dar visibilidade ao tema da inclusão (das pessoas com deficiência) na teologia e apontar a relevância de uma antropologia inclusiva no sentido da construção de uma sociedade para todos.

Se as igrejas e os discursos teológicos contribuíram historicamente para a criação de estigmas em relação às pessoas com deficiência (e a conseqüente segregação ou exclusão destas pessoas214), entendemos que, em um novo momento histórico, tanto as igrejas quanto a teologia devem rever seus conceitos e ações no sentido da inclusão das pessoas com defi- ciência – tanto como lugar teológico (a experiência de Deus na perspectiva das pessoas com deficiência) quanto em nossas práticas pastorais (com a implementação da acessibilidade

212 Jürgen MOLTMANN. (Trad. Constantino Ruiz Garrido). Diaconia en el horizonte del Reino de Dios, p.

114.

213 Gottfried BRAKEMEIER. O ser humano em busca de identidade: contribuições para uma antropologia

teológica, p. 48.

214 Vale lembrar, como exemplo, a história de Alessandro (apresentada no primeiro capítulo) - o menino de

nos espaços eclesiais). Nestes termos, trata-se de um desafio interno (eclesial) e externo (atuação profética na sociedade).

1. Inclusão em dois documentos confessionais

O tema da deficiência não é uma questão nova para as igrejas cristãs ou para a teolo- gia, mas a fala sobre as formas de inserção social (integração ou inclusão) das pessoas com deficiência traz em si uma novidade: o necessário rompimento com a segregação e a exclu- são. O que se propõe no paradigma da inclusão é a percepção da deficiência não mais como limitação (posto que todos somos limitados), mas sim como diferença – o que enfatizaria a linguagem da diversidade. Em termos teológicos, poderíamos falar da diversidade, não só das espécies, mas da singularidade de cada indivíduo.

A linguagem da diversidade, nos termos do paradigma da inclusão das pessoas com deficiência, já encontra ressonância no ambiente cristão. Alguns documentos confessionais têm apontado para uma antropologia inclusiva – no sentido da diversidade da criação. Po- demos citar, como exemplo, os textos: Uma igreja de todos e para todos: uma declaração teológica provisória – documento produzido pelo Conselho Mundial das Igrejas215 em 2005 e Levanta-te, vem para o meio! – texto-base da Campanha da Fraternidade de 2006 da Igreja Católica Apostólica Romana no Brasil. São iniciativas modestas, mas significativas no sen- tido da construção de uma teologia inclusiva.

a) A pessoa com deficiência na declaração teológica provisória do CMI