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Ainda segundo o registro no caderno de direção, enquanto Buarque e Guerra rumaram para o teatro São Pedro para assistirem ao espetáculo Frank V, baseado na obra do escritor suíço Friedrich Dürrenmatt e dirigida por Peixoto, o mesmo se dirige para o bar Riviera para ler o texto datilografado de Calabar, que já estava liberado desde abril de 1973, bastando apenas o ensaio geral.

No final, reencontram-se e firmam compromisso com o projeto. Além dos dramaturgos, Peixoto sugere também o envolvimento de Fernando Torres e Fernanda Montenegro na produção da montagem.

Um mês depois, Chico Buarque e Ruy Guerra concedem uma entrevista à revista Veja, na qual afiançam o caráter metamórfico do texto: “Vamos acompanhar a montagem bem de perto para fazer qualquer remanejamento, já que não se trata de um texto fechado [...]”.167

De fato, a documentação revela o contato constante entre dramaturgos e o próprio diretor.

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GIRON, Luís Antônio. Comando de Caça aos Comunistas diz como atacou Roda viva em 68 (17 Jul.

1993). Site oficial Chico Buarque. Disponível em:

<http://www.chicobuarque.com.br/critica/rep_fsp_170793.htm>. Acesso em: 1 Nov. 2013.

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Com a certeza da liberação da peça pela Censura Federal desde abril do corrente ano, o diretor viaja para o Rio de Janeiro para conversar com os detentores do direito de produção do espetáculo, Fernando Torres e sua esposa Fernanda Montenegro, com o objetivo de definir a equipe de trabalho.

Consultando o relatório de liberação da peça, certificamos que, apesar da concessão, o parecer não estava isento de ressalvas, demonstrando no próprio documento o cunho ufanista e político:

Peça que traz sentido controverso a passagens da história pátria, com textos em que se generaliza aspectos políticos intrínsecos, levantando a tese da meritoriedade dos feitos de Calabar e tentando desmistificar a heroicidade de outros participantes da Insurreição Pernambucana. Com tais características, a peça é, na minha opinião, recomendável apenas para maiores de 18 anos. Chamo atenção dessa Chefia para textos assinalados às págs. 61, 68 e 70 para possíveis implicações de seu sentido político na atualidade.168

Em seguida, Peixoto anota que a estreia ficaria agendada para o mês de novembro, sendo agosto o prazo final para a seleção do elenco. Os ensaios se iniciariam em setembro e avançariam até outubro de 1973, no Rio de Janeiro.

O local exato seria em Ipanema. Atualmente, este espaço foi transformado na Casa da Cultura Laura Alvim, na Avenida Vieira Souto, de frente para o vasto Oceano Atlântico:

[...] a história deste teatro merece uma reportagem a parte. Alguém me informa que a casa e o teatro pertencem a uma senhora cuja vida se consumiu durante 30 anos numa demanda judicial finalmente vitoriosa. Em vez de valer da conquista de um terreno em plena praia de Ipanema para uma incorporação de 20 andares, fez questão de reformar a casa já existente e construir aos fundos esta sala de espetáculos, como preito aos dias de pobreza consumidos numa bilheteria de teatro. A única condição por ela exigida, aos que vierem aqui encenar suas peças, é a de que não haja palavrão. E enquanto não se inaugura, o local é emprestado para ensaios [...].169

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Parecer da censora Maria Luiza B. Cavalcante, n. 3096/73, Brasília, 16/05/1973. Arquivo Nacional/DF, proc. 316. livro 1/ reg. 2079-AN/DF

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SABINO, Fernando. Chico, ou o elogio da criação. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 59, 29 Out. 1973.

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Nesse ínterim, Buarque e Guerra chegaram a declarar que desejavam contatar a atriz Marília Pêra. Provavelmente, para dar vida à figura dramática Bárbara Calabar, pois a mesma era considerada por ambos uma ótima dançarina e cantora, predicados importantes para o musical.170 Vale lembrar que Pêra havia feito a personagem Juliana na segunda temporada de Roda Viva, de Buarque, em 1968. Contudo, mais tarde, Tetê Medina seria escalada para o papel de Bárbara para contracenar com Betty Faria, que por sua vez, já havia trabalho com Fernando no Teatro Oficina.

Durante a concepção cênica da peça, no início de setembro de 1973, Peixoto concederia uma importante entrevista a Yan Michalski, do Jornal do Brasil. Neste colóquio, o diretor teatral divulga que estava naquele momento, concentrado na definição do elenco de Calabar. Segundo a reportagem, foram mais de 250 candidatos, para ocuparem uma equipe de quarenta pessoas, sendo dez atores para os papéis mais importantes, e o restante para personagens secundários e figuração.

O processo de seleção do elenco fora exaustivo, posto que para o encenador, não existia um modelo categórico de classificação dos candidatos. Desse modo, o diretor decidiu criar um procedimento, longe de ser exato, mas que não deixava de apresentar uma metodologia válida.

Primeiramente, o diretor começou montando uma lista nonsense de artistas, que contava com o ator norte-americano Marlon Brando e a brasileira Carmen Miranda. Brincadeiras a parte, descobrimos que Gal Costa teria sido contatada pelo diretor, obviamente, por suas inegáveis qualidades vocais, mas que devido a agenda, a mesma não poderia permanecer no elenco, prejudicando futuramente o musical.171

Com o tempo esta lista foi reduzindo, permanecendo atores e atrizes que, de alguma forma, haviam marcado Peixoto, na cena teatral, e, que, obviamente, se adequavam ao perfil dos personagens. A segunda etapa constituiria na tarefa de contatar os pré-selecionados.

Concomitante, foram abertas vagas para testes no Rio de Janeiro e em São Paulo. Parafraseando Peixoto, além de alguns loucos e curtidores, também, surgiram

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MARINHO, Azevedo. Calabar revisado. Veja, São Paulo, p. 84, 25 Jul. 1973.

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Depoimento de Fernando Peixoto concedido aos professores Rosangela Patriota Ramos e Alcides Freire Ramos, em 16 de novembro de 2001. Não publicado. (Acervo NEHAC)

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muitos jovens estudantes das escolas de teatro. Sem espanto, a quantidade de postulantes inexperientes prevaleceu sobre atores experimentados. Explica-se: depois de alguns espetáculos, são poucos os que admitem se submeter a uma audição.

Após esboçar uma provável lista de artistas, o encenador decidiu auscultá-los com o objetivo de conhecê-los melhor. Neste processo, o perfil continuava sendo um dos principais critérios de seleção, no entanto, existia um fator preponderante para o diretor: “O que mais me interessava era a conversa: no fundo, não me sinto em condições de escolher os melhores atores, e sim, aos menos, aquelas pessoas com os quais sinto que é possível uma transa criativa, um diálogo”.172

Apesar de todo o aparato neste procedimento, Fernando Peixoto, publicamente, reconheceu ter cometido algumas injustiças, contudo admitiu que os equívocos foram inevitáveis. Cabe ressaltar, que, neste processo, participou ativamente o próprio produtor Fernando Torres, e, em menor grau, Chico Buarque e Ruy Guerra.

Desta fase, restaram apenas cem atores e atrizes, que ainda precisavam enfrentar outra bateria de testes, visto que Calabar configurava-se como um musical.

Para tanto, foi acionado Dori Caymmi, responsável pela direção de música, que procurou ouvir os artistas, cantando composições de suas próprias preferências, procurando perceber a potencialidade de cada um. Enquanto isso, Peixoto valia-se desse momento, para observar dados minuciosos como a forma como o ator/atriz entrava no palco ou como se dirigia a Caymmi. Tudo era anotado no perfil do candidato.

Mais uma vez, o encenador registra uma espécie de mea-culpa por mais uma leva de injustiças, pois devido ao natural estado de excitação, muitos não puderam ter revelado sua potencialidade de forma plena. Quem seriam esses candidatos eliminados? Temos a certeza de que a atriz Tânia Alves não classificada durante a seleção, anos depois, seria escalada como a protagonista Bárbara, em 1980.

Em seguida, Fernando Peixoto propõe uma conversação franca com grupos de artistas que haviam atingido aquela etapa. Vejamos como foi:

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MICHALSKI, Yan. Fernando Peixoto e a preparação para “Calabar”? Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 4, Set. 1973.

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Antes do teste de interpretação propriamente dito, fiz uma questão absoluta de abrir o jogo com os sessenta que restaram, e declarei que, apesar das notícias saídas nos jornais, ninguém havia sido escolhido nem para os papéis principais nem para os secundários; que havia uma lista de atores profissionais mais conhecidos sendo sondados para os principais papéis, mas que isto não impedia que um ator ou uma atriz totalmente inexperiente viesse a interpretar um destes papéis; que eu queria saber quais os candidatos que topavam qualquer tipo de trabalho no espetáculo, e quais os que estavam apenas interessados nos papéis principais; e que tudo seria discutido abertamente, sem jogo escondido.173

Provavelmente, Peixoto estava referindo-se a rumores, como a indicação de Marília Pêra para o papel de Bárbara, divulgado por Buarque e Guerra, como foi mencionado anteriormente. Além da honestidade, o diretor teatral também revela sua percepção coletiva ao evidenciar que não acreditava na figuração no sentido usual, mas em um grupo de artistas que fossem um contingente de atores e atrizes ativos na montagem teatral. Esta afirmativa seria confirmada no depoimento da atriz Nina de Pádua que integrava o elenco.174

Após esta conversação, Peixoto propôs dois exercícios. O primeiro visava submeter o candidato a uma situação criadora, onde seria observado o aspecto emocional do grupo. O segundo, de forma antagônica, os atores/atrizes descontraídos seriam induzidos, sob estímulos, a inventarem cenas de personagens improvisados “[...], sobretudo, sob o ponto de vista social, enfatizando as deformações causadas pelas profissões, diferenças de classe, comportamento diante de uma estrutura social definida”.175

Este fragmento evidencia a percepção do diretor teatral acerca do poder subversivo da linguagem teatral, e sua filiação a um conceito de atuação cujo profissional necessita representar a realidade brasileira, refutando o mero ator - intérprete. Em suma, a crença que:

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MICHALSKI, Yan. Fernando Peixoto e a preparação para “Calabar”? Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 5, Set. 1973.

174

Depoimento de Nina de Pádua concedido aos professores Rosangela Patriota Ramos e Alcides Freire Ramos, em 1 de agosto de 2001. Não publicado. (Acervo NEHAC)

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Invertendo o preceito aristotélico, a História, em vez da arte, é a disciplina privilegiada, uma vez que a função do ator é transformá-la. O modelo sobre o qual se pautam as formalizações é a „realidade brasileira‟ e da observação direta devem nascer formas de enunciação, gestos e a própria dinâmica do espetáculo.176

A citação materializa a opinião crítica e imutável do diretor, segundo a documentação consultada, sobre o que ele chama de divertimento inconsequente, e até, irresponsável.

Depois deste fatigante processo, Fernando Peixoto, com a colaboração do diretor assistente Mário Masetti, encerra a formação do elenco de Calabar. Em 18 de setembro, os ensaios se iniciam com a leitura de mesa, processo este que inclusive irá contar, nos momentos finais, com a participação efetiva de Chico e Ruy.

Este longo relato da formação do elenco demonstra as grandes pretensões do musical, e, como o arbítrio pode anular, através de uma assinatura, horas de trabalho altamente profissionais.

Terminado esta etapa, o diretor divulga a ficha técnica da produção, com os músicos Dori Caymmi e Edu Lobo, o cenógrafo Hélio Eichbauer, o coreógrafo Zdenek Hampl,177 do já mencionado Mário Masetti e atores selecionados, reiterando que a construção teatral seria um compromisso de todos, justificando a crença do diretor no processo colaborativo de criação.178

Aliás, esta superprodução para os padrões da época, com a participação de artistas renomados como Torres, Montenegro, Lobo, Caymmi, Eichbauer e do próprio Peixoto, apresentava uma intenção subjacente importante, como explica o próprio encenador: “Esta visão tinha uma função para época, quando o teatro estava sendo

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LIMA, Mariângela Alves de. Ator. In: GUINSBURG, Jacó; FARIA, João R.; LIMA, Mariângela A. de. (Orgs.). Dicionário do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 43.

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Falecido em 2007.

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Muitos anos depois, Fernando Peixoto reconheceria que o: “Teatro de Grupo é sem dúvida a forma de organização mais vigorosa e produtiva de um processo de investigação, transformação e criatividade cênica. Um coletivo de trabalho é a única fonte rigorosamente penetrante e estimulante, capaz de aprofundar um projeto artístico de forma a mantê-lo permanentemente inserido na vida social e no constante confronto com a realidade, sem que perca sua capacidade de reinventar-se a si mesmo, de pesquisar linguagens inesperadas e diversificadas”. PEIXOTO, Fernando. O teatro em aberto. São Paulo: Hucitec, 2002, p. 243.

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esmagado, reduzido a dramas intimistas de dois ou três personagens, e quanto à tentativa de devolver-lhe o caráter de teatralidade tinha nítida importância”.179 O depoimento codificado do diretor teatral seria uma resposta pública aos responsáveis pelo “esmagamento” da produção teatral.