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Notamos no final do primeiro ato, que, questionado por Bárbara, o negro Henrique Dias desabafa, com mais uma fala acrescentada posteriormente:

Eu sei qual é o meu lugar. Sei a quem devo as armas que manejo, os coturnos que calço e tudo o que sou. Eu lutei, matei, perdi um olho, engoli em seco e, de tanto ser comandado, hoje eu sei o suficiente para poder comandar. E o suficiente para não cuspir no prato em que comi. (p. 49) [Destaque nosso]

Bárbara insiste em pressioná-lo, lembrando que existem muitos africanos escravos. Dias não se importa em ser negro. Admite que quem não nasce senhor de engenho é malfadado no Brasil, não obstante, ele próprio seria a demonstração de que sempre existe um espaço para quem se esforça, uma clara ironia a concepção de meritocracia da sociedade contemporânea. Inclusive, declara que quando a guerra acabar, não se surpreenderia em ser tornar um senhor e seus filhos semelhantes aos brancos. Muitos séculos depois, percebemos que o futuro não seria tão promissor assim para os afrodescendentes no Brasil:

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Já a massa dos negros das cidades continuou, após a Abolição, abandonada à sua própria sorte, ocupada nos trabalhos mais „pesados‟ e mais precários, muitos vivendo de expedientes, amontoada em habitações imundas, favelas e cortiços, mergulhada, também, no analfabetismo, na desnutrição e na doença.125

A personagem Anna, ao ouvir esta predição, não se contém e solta uma gargalhada. Camarão toma as dores do companheiro e afirma que Calabar errou no momento que desrespeitou a ordem das coisas, e, foi ingrato com os jesuítas que lhe ensinaram tudo, visto que Calabar, supostamente, teria sido educado pelos membros da Companhia de Jesus.

O nativo não fez o mesmo, pois foi o português que ofereceu a farda e o Evangelho. Bárbara, agora, lembra que muitos índios lutam contra os invasores portugueses. E o autóctone responde:

E quem é que me obriga a falar feito índio? Eu também posso pensar em português, como cristão que sou. Por que é que eu vou pra guerra de azagaia, se posso arranjar um mosquete? E quando for pra morrer, pra que é que vou querer virar lua, pedra, cachoeira, bicho, raio de luz, se posso arranjar uma alma e ficar de conversa com Jesus Cristo até o fim dos dias? (p. 51) [Destaque

nosso]

Bárbara ironiza a fala de Camarão. Mas o índio, resoluto, completa, novamente, com uma nova fala:

Não, acho que não sou. Meu nome não vai entrar nos contos que o índio pai contar pro índio filho, e este pro seu curimim, e deste pro curumim do curumim, até que não vai ter mais curumim nenhum pra escutar esses contos. Não. O meu nome vai ficar nos livros que o branco manda imprimir para sempre. (p. 51-52)

[Destaque nosso]

O fragmento reflete o discurso de poder, procedimento que Michel de Certeau denominou de escrita conquistadora, quando o invasor, para efetivar a invasão, apaga o

125

CARDOSO DE MELLO, João Manuel; NOVAIS, Fernando. Capitalismo Tardio e Sociabilidade Moderna. In: NOVAES, Fernando A. (Coord.). História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1998, p. 583. V. 4.

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que fora escrito, mas registrar o seu próprio querer. Certeau, inclusive, irá utilizar este conceito para afirmar que o estudo da escrita é uma prática histórica.126

O diálogo entre Bárbara e Camarão é finalizado com Anna cantando a música “Vence na vida quem diz sim”, ilustrando artisticamente, as ilusões do nativo brasileiro.

A pretensa homogeneidade entre as “raças” no Brasil insinuada na peça aparece explicitada na fala do próprio presidente-general Ernesto Geisel em 1977, em um diálogo com a primeira-dama dos EUA, Rosalynn Carter:

[O] que caracteriza melhor [...] o respeito profundo do Brasil e dos brasileiros pelos direitos humanos [é] a ausência de preconceitos raciais e religiosos. O Brasil seria talvez realmente um exemplo para o mundo, com sua sociedade multirracial convivendo em harmonia. Com uma legislação que data de muitos anos e que pune severamente quaisquer tendências racistas.127

O excerto, seguramente, ratifica a falácia governista sobre a concórdia e a paz social. A citação ainda enfatiza a ideia de que esta temática estava longe de ser olvidada por se tratar de um arremedo de tolerância no Brasil, como denota a fala da antropóloga Lilia Moritz Schwarcs:

Na representação vitoriosa dos anos 30, o mestiço transformou-se em ícone nacional, em um símbolo de nossa identidade cruzada no sangue, sincrética na cultura, isto é, no samba, na capoeira, no candomblé e no futebol. Redenção verbal que não se concretiza no cotidiano, a valorização do nacional é acima de tudo uma retórica que não tem contrapartida na valorização das populações mestiças discriminadas.128

Além do preconceito, percebemos outros temas correlatos na peça como, por exemplo, quando Bárbara e Anna fazem um dueto, e canta a música “Bárbara”.

Os versos da bela canção sugerem, de forma sutil, que a meretriz holandesa e a viúva se relacionam sexualmente: “[...] a contestação dos modelos estabelecidos de

126

CERTEAU, Michel. A escrita da História. 2 Ed. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002, p. 9-10.

127

GEISEL, 1977 apud GASPARI, Elio. A Ditadura Encurralada. São Paulo: Cia. das Letras, 2004, p. 395.

128

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na intimidade. In: NOVAES, Fernando A. (Coord.). História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Cia. das Letras, 1998, p. 178. V. 4.

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relacionamento afetivo e sexual permitiu também que o tema do homossexualismo começasse a emergir de sua secular clandestinidade e passasse a ser encarado como uma possibilidade erótica legítima”.129 Cremos, inclusive, que a canção tenha sido a primeira explícita referência a uma relação homoafetiva em composições da MPB:

ANNA (cantando) – Bárbara, Bárbara, Nunca é tarde, Nunca é demais. Onde estou, Onde estás? Meu amor Vou te buscar [...]

BÁRBARA (cantando) – O meu destino é caminhar assim Desesperada e nua

Sabendo que no fim da noite. Serei tua.

[...]

ANNA (cantando) – Deixa eu te proteger do mal Dos medos e da chuva]

Acumulando de prazeres Teu leito de viúva.

ANNA E BÁRBARA (cantando) – Bárbara Bárbara, Nunca é tarde, Nunca é demais Onde estou? Onde estás? Meu amor 129

ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de; WEIS, Luiz. Carro-Zero e Pau-de-Arara: o cotidiano da oposição de classe média ao regime militar. In: Ibid., p. 322.

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Vem me buscar

ANNA (cantando) – Vamos ceder, enfim, à tentação Das nossas bocas cruas

E mergulhar no poço escuro De nós duas

BÁRBARA (cantando) – E vou viver agonizando Uma paixão vadia

Maravilhosa e transbordante Feito uma hemorragia

ANNA E BÁRBARA (cantando) – Bárbara, Bárbara, Nunca é tarde, Nunca é demais. Onde estou? Onde estás? Meu amor Vem me buscar. Bárbara...130

Aliás, diga-se de passagem, essas transformações comportamentais não eram bem recebidas pelo Regime, tampouco pelas organizações de esquerda (assim como na narrativa de Herbert Daniel, no livro Passagem para o Próximo Sonho131). A peça

Calabar, enquanto produto deste tempo, não se furtou em abordar esse movimento em

seu próprio enredo (vide iconografia, onde podemos ver as duas versões teatrais desta cena).

Ademais, o protagonismo de Bárbara se aproxima, na época, da imagem da atriz Jane Fonda que, na década de 1970, além de ter sido premiada duas vezes pelo

130

BUARQUE, Chico; GUERRA, Ruy. Calabar – O Elogio da Traição. 4 Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974, p. 46-47.

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Oscar por sua atuação nos filmes Klute – O Passado Condena (1971) e Amargo

Regresso (1978), não se negou ao engajamento na luta contra a Guerra do Vietnã.

Inclusive, os teatrólogos Buarque e Guerra remetem a ela ao ilustrar a contemporaneidade do conceito de traição, quando a atriz teria sido alvo de processo judicial por um senador norte-americano por traição à pátria.132

Ainda sobre Bárbara, vale lembrar que o protagonismo da personagem, também, prenunciava a participação efetiva das mulheres nos movimentos feministas da década de 1970 e 1980, no Brasil, a partir do retorno de várias militantes que, outrora, haviam lutado contra o Estado de Arbítrio, em anos anteriores. Estas primeiras lideranças femininas foram formadas a partir das experiências compartilhadas no exterior.133

Já que estamos especulando, no caso de Anna, é surpreendente como a figura dramática personifica a essência da atriz Leila Diniz, que, inclusive, fora casada com o próprio Guerra entre 1965 e 1971, se divorciando e sendo vitimada por um trágico acidente aéreo no ano seguinte.

É difícil acreditar que a imagem da mesma esteja desassociada da elaboração cênica da personagem pelos autores. Sabemos que Anna fora baseada na figura histórica Anna de Ferro,134 meretriz francesa, logo não “de Amsterdã”, que, como tantas outras, embarcaram para cá para “satisfazer a flamengos menos propensos a exotismos”.135

O espírito que anima a personagem parece ser de Leila Diniz, que parecia também ter “embarcado para cá”, vindo de outra realidade, tamanho o seu contraste com as idiossincrasias brasileiras como o conservadorismo do final de 1960 e início de

132

Cf. A RODA VIVA de Calabar: Dialética da traição. DCE – PUC, Rio de Janeiro, p. 24, 1973.

133

Cf. RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: Unesp, 1993, p. 198.

134

Sobre a vinda de prostitutas para o Brasil, neste período, Gonsalves de Mello, em Tempo dos Flamengos, acrescenta: “[...] veio da Holanda um número considerável de prostituas que surgem constantemente nos documentos de então como „mulheres fáceis‟ („lichte vrouwen‟ ou „vuijle vrouwen‟). E muitas são referidas pelos seus próprios nomes: Christinazinha Harmens, Anna Loenen, Janneken Jans, Maria Roothaer (isto é, Maria Cabelo de Fogo), Agniet, Elisabeth, apelidada Admirael, Maria Krack, Jannetgien Hendricx, Wyburch van den Cruze, Sara Douwaerts, uma apelidada A Senhorita de Leyden e outra a Chalupa Negra (de Swaerte Chaloepe) e Sijtgen”. GONSALVES DE MELLO, José A. Tempo dos Flamengos. 2 Ed. Recife: Departamento de Cultura, 1979, p. 124-125.

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1970, posto que, além de filmes e novelas, Diniz se destacou por sua irreverência e coragem na qual enfrentou a intolerância de sua época.

Paradoxalmente, a sociedade do slogan “Pra frente, Brasil”, não admitia fotos da atriz grávida correndo pela praia de biquíni, ou então de declarações como: “Transo de manhã, de tarde e de noite”, ou “amar uma pessoa e ir para cama com outra. Já aconteceu comigo”.

Após o término da canção, Bárbara, realizando uma espécie de aparte, se volta para a plateia e provoca o público. A rubrica registra o fim do primeiro ato, e intervalo.