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Dissemos que, ao contrário das últimas edições da peça, identificamos na primeira versão a reprodução da bibliografia histórica consultada pelos dramaturgos durante o processo de confecção do texto dramático, no final da publicação. São elas:

Os Holandeses no Brasil, de Francisco Adolfo Varnhagen, os dois volumes de O Valeroso Lucideno e Triunfo da Liberdade; escritos pelo Frei Manoel Calado, Os Holandeses no Brasil, de C. R. Boxer, Tempo dos Flamengos, de José Antônio

Gonsalves de Mello, Os Holandeses no Brasil, de Netscher, O Domínio Colonial

Holandês no Brasil, de Hermann Wätjen, A Civilização Holandesa no Brasil, escrita

por José Honório Rodrigues em parceria com Joaquim Ribeiro, e, por fim, as duas biografias – em comemoração ao tricentenário da Restauração Pernambucana – D.

Antônio Filipe Camarão e Henrique Dias, do já citado José Antônio Gonsalves de

Mello.

A propósito, a consulta desta bibliografia, disponível aos autores, nos primeiros anos da década de 1973, nos permitiu esquadrinhar o texto dramático, com o propósito de compreender a relação simbiótica do material histórico no processo criativo da

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MARTINS, Christian A. O inconformismo social no discurso de Chico Buarque. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais, v. 2, n. 2, Abr./Maio/Jun. 2005. Disponível em: <http://www.revistafenix.pro.br/PDF3/Artigo%20Christian%20Alves%20Martins.pdf>. Acesso em: 1 Nov. 2013.

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peça.53 Neste procedimento, concluímos que estávamos lidando com dramaturgos pesquisadores, que se debruçaram sobre a historiografia nacional disponível naquele tempo.

Constatamos que o processo completo de escritura do texto consumiu alguns meses de trabalho, iniciando, no final de 1972, e concluído no início de 1973.54 Vale lembrar que a carga de leitura fora tão intensa que os escritores declararam, em entrevista, o quão haviam aprendido sobre a História do Brasil. O diretor Ruy Guerra, além de viajar para Minas Gerais em busca de livros raros,55 também confessou: “[...] foi preciso frearmos um pouco nossa sapiência, para que a peça não acabasse uma aula e a gente não ficasse ostentando erudição”.56

Buarque completou: “Lemos todos os livros sobre o assunto”.57

Este procedimento investigativo se fez necessário, já que, na ocasião, os dramaturgos-pesquisadores almejavam garantir a credibilidade do musical histórico, apesar de se tratar de uma criação artística. Esta propositura fica nítida na declaração do próprio Guerra: “A gente sabia que era um tema delicado, de maneira que a gente não queria que nossa proposta fosse anulada por nenhuma falha de pesquisa ou de erudição”.58

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Este trabalho resultou no capítulo 1 intitulado “O Elogio da Criação” da dissertação de mestrado “Diálogos entre o passado e o presente: Calabar – O elogio da traição (1973), de Chico Buarque e Ruy Guerra”. (MARTINS, Christian Alves. Diálogos entre o passado e o presente: Calabar – O elogio da traição (1973), de Chico Buarque e Ruy Guerra. 2007. 201 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação, Instituto de História, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2007.)

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Diferentemente, do que confidenciou Ruy Guerra: “Eu ia para a casa de Chico e Marieta [Severo] nos via sentados, escrevendo à máquina. Até que um dia, dissemos para ela: „[...] Marieta, a peça está pronta. Com as músicas e tudo‟. Ela não acreditou, porque nos via rindo e achava que estávamos brincando. Era uma brincadeira, mas uma brincadeira que levávamos a sério [...]”. BARROS, Eduardo Portanova. O Cinema de Ruy Guerra: um imaginário autoral na pós-modernidade. 2009. 378 f. Tese (Doutorado em Comunicação) – Programa de Pós-Graduação Social da Faculdade dos Meios de Comunicação Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009, f. 269.

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FONSECA, Rodrigo. Marco da censura no Brasil, Calabar faz 40 anos com nova montagem. O Globo, [versão online], Rio de Janeiro, 12 Maio 2013. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/cultura/marco-da-censura-no-brasil-calabar-faz-40-anos-com-nova-

montagem-8363246>. Acesso em: 1 Nov. 2013.

56

MARINHO, Azevedo. Calabar revisado. Veja, São Paulo, p. 84, 25 jul. 1973.

57

Ibid.

58

GUERRA, Ruy. Entrevista concedida para a Mostra de Cinema: Ruy Guerra, Filmar e Viver. 20 ago. 2006. Não publicada. Transcrição nossa.

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Fica patente que Calabar, mesmo não se configurando como uma pesquisa historiográfica, não deixa de ser uma reflexão importante para historiadores de ofício, pois apontam para novos caminhos, que, no caso, seriam materializados como a revisão da própria historiografia.

Esta suposição surgiu na medida em que decidimos nos distanciar da bibliografia consultada pelos teatrólogos, e, interpelarmos algumas obras editadas nas últimas décadas, versando sobre a História do Brasil, visando identificar mudanças e permanências em relação à historiografia disponível no início da década de 1970 até os dias atuais.

Feito isso, de modo geral, comprovamos de imediato, uma visão mais tolerante a respeito de um dos mais célebres traidores da historiografia, afastando-se da aporia de seus crimes de lesa-majestade.

Como afirma o historiador Boris Fausto, ao discutir o tema das Invasões Holandesas, nesta época, sobressaiu-se o personagem Domingos Fernandes Calabar, que contribuiu para determinar os rumos da guerra em favor dos flamengos, por ser este um profundo conhecedor do campo de batalha.

Fortalece esta visão, os estudos do especialista deste período, o pesquisador Evaldo Cabral de Mello:

Tudo indica ter sido Calabar quem familiarizou os holandeses com um estilo de luta em que ele mesmo se distinguira ao lado dos conterrâneos. Embora, por um lado, fontes holandesas creditem-lhe apenas os „bons serviços‟ prestados como guia, enquanto, do outro, o comando da resistência tinha interesse em transformá-lo em bode expiatório da perda do Nordeste, o protagonismo de Calabar é

inegável. Mercê do seu grande conhecimento da região litorânea, ele

teria persuadido o comando holandês a fazer não só o ataque precursor a Igaraçu: segundo o donatário, “de quase todas as sortidas [...] Foi Calabar o motor principal, donde Mathias de Albuquerque ter tentado fazê-lo voltar ao aprisco com promessas de perdão e de mercês, e, não conseguindo, procurado eliminá-lo fisicamente.59 [Destaque nosso]

De fato, o destaque do desertor na guerra é incontestável. Em outra obra atual, denominada Traição – Um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela

59

MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda restaurada – Guerra e açúcar no Nordeste, 1630-1654. São Paulo: 34, 2007, p. 291-292.

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inquisição, do historiador Ronaldo Vainfas, o autor avalia que se, no século XIX,

pesquisadores distinguiam a infâmia de Calabar, no século seguinte, operou-se uma ampla revisão, atribuindo à figura histórica, uma reputação heroica por sua luta contra o modo de colonização portuguesa, embora a peça não tenha sido mencionada em nenhuma obra consultada.60 O autor conclui que Calabar:

[...] provavelmente, avaliou que a balança da guerra pendia mais para os holandeses, com tantos outros, queria tirar vantagem de seus talentos. Calabar não foi o primeiro a fazer a passagem, mas foi o mais importante nessa altura dos acontecimentos. Exímio conhecedor da língua geral (o que reforça a hipótese da origem mameluca), aprendeu logo o holandês e prestou serviços inestimáveis à WIC.61

O pesquisador resvala, na história do mestiço, por ter sido o mesmo, contemporâneo do personagem principal de seu livro, o jesuíta Manoel de Moraes, que, também, optou pela tutela holandesa após a invasão.

Não por acaso o título do capítulo dedicado a ele fora “Calabar, patriarca dos traidores”, demonstrando ainda se tratar de uma celeuma entre os historiadores. A própria progênie de Calabar permanece nebulosa, pois se para muitos ele teria sido filho da negra Ângela Álvares, para outros, a mãe dele seria uma “negra da terra”, designação usual naquele tempo para mulheres indígenas no Brasil. Portanto, Calabar seria mulato ou mameluco?

Levando adiante com esta busca por novas abordagens sobre o tempo de Calabar, conseguimos em uma livraria de livros usados, na cidade de Recife, em Pernambuco, duas obras até então desconhecidas sobre o tema. São elas: Calabar,

(traidor, vilão ou idealista?) de Flávio Guerra e Calabar, o herói desconhecido, de

Audemário Lins.

A primeira, editada na própria capital pernambucana em 1985, apresenta concordância com outras pesquisas sobre o tema. Embora o autor advogue a

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Por outro lado, chegamos a identificar muitas referências ao texto dramático em livros didáticos e em questões envolvendo o tema das Invasões Holandesas. Há poucos anos, a publicação, fez parte da seleção principal de leituras obrigatórias para o vestibular na Universidade Federal de Uberlândia. Fato, inclusive, que nos proporcionou muitas oportunidades para discutir o tema com alunos secundaristas.

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VAINFAS, Ronaldo. Traição – Um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela inquisição. São Paulo: Cia. das Letras, 2008, p. 88.

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veementemente a tese de que tendo o mestiço crescido sob a dominação espanhola durante a União Ibérica (1580-1640), o mesmo direcionaria suas ações futuras não somente contra os colonizadores lusitanos, mas, principalmente, contra a dinastia filipina.

A propósito, este sentimento coadunava, perfeitamente, com os holandeses que tinham como inimigo a Espanha dos Filipes, bem antes do interesse pelo açúcar do Nordeste brasileiro, quando os Países Baixos foram dominados pelos ibéricos.

O autor rebate o argumento de que o mestiço tenha se bandeado para as hostes invasoras por ter roubado uma fazenda do erário real. Baseado em alguns cronistas da época, como Frei Manoel do Salvador e Mathias de Albuquerque, Guerra esclarece que ambos almejavam buscar uma razão (“bode expiatório”) que explicasse o êxito neerlandês. Para o autor, com base no próprio relato de Salvador, muitos combatentes abandonaram as tropas de resistência, após a chegada de uma esquadra de soldados estrangeiros, pois passaram a ser desconsiderados pelo comando superior, entre eles Calabar, que, entrega as armas e volta para sua terra natal, Porto Calvo, no Estado de Alagoas.

Além do mais, no dia 13 de janeiro de 1632, a Holanda institui, segundo o autor, um regime mais liberal e lucrativo para os pernambucanos. Em abril do corrente ano, juntamente com outras defecções, Calabar, que, também, era um pequeno proprietário de engenho alista-se no exército holandês, para combater a monarquia espanhola. Guerra, diante da crença de uma nação inexistente no Brasil no século XVII, e das vantagens holandesas, mesmo sob a égide do sistema mercantil, conclui:

Assim, quando não havia uma pátria ultrajada, nem ofendida a defender, Calabar inteligente, esclarecido e objetivo, deve ter feito uma opção dentro do paralelismo das linhas de progresso e liberdade oferecidas pela Holanda, e da experiência do servilismo e exploração do domínio espanhol. Escolheu a civilização mais avançada e moderna ao tempo.62

O discurso do autor leva-nos a pensar que a histórica deserção, em verdade, poderia ter sido considerada um gesto louvável contra o julgo espanhol sobre Portugal

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desde 1580, apesar dos registros de estupros e decapitações durante as escaramuças arquitetadas por Calabar.

O autor Flávio Guerra nos traz um desconhecido documento, consistindo em um relatório de um oficial holandês, traduzido por um certo Dr. Wallitz, e divulgado por Assis Cintra, em 1933, na obra A Reabilitação Histórica de Calabar: Estudo

documentado, onde prova que Calabar não foi traidor. Depoime nto, acusação, defesa e reabilitação. Por ser extremamente interessante para esta pesquisa,

deliberamos citá-lo na íntegra:

O general mandou-me dizer que consentiria a minha saída e na dos meus soldados do reduto em que nos achávamos e que nos concederia livre passagem até os nossos, com a condição de entregarmos Calabar. Recusei terminantemente. Mas o nosso amigo não concordou, dizendo-me: „Aceitai! Mais vale a vossa vida e a de vossos soldados que a minha. Eles me humilharão, eles me insultarão mesmo até depois de morto, mas eu ficarei satisfeito com esse sacrifício; serei um brasileiro que morre pela liberdade de pátria‟ [...] Vós, os holandeses, oferecestes a liberdade ao Brasil, ao meu amado Pernambuco. O destino não quis que eu assistisse à consumação de vossa oferta, com a adesão de todos os pernambucanos, de todos os brasileiros. Eles me chamam de traidor... Vós bem sabeis que um homem que se bateu como eu, que recusou honras e proventos, não é traidor; se houve traição foi uma traição justificada pela nobreza do motivo. E demais um homem tem o direito de derramar o seu sangue pela causa que quiser. Derramei primeiramente o meu sangue defendendo o interesse da Espanha. Foi um erro. Morrerei agora pela liberdade de Pernambuco, que é a promessa dos holandeses.63

O documento não consta na bibliografia consultada pelos dramaturgos, contudo, estes dados foram mencionados no rascunho da peça do acervo particular de Chico. Acreditamos que mesma não fora explicitada por questões de segurança, pois reforçaria argumento principal da peça, antecipando, inclusive, o revisionismo da traição de Calabar.

Por sua vez, o livreto de Audemário Lins, intitulada Calabar, o herói

desconhecido,64 ultrapassa esta disposição historiográfica contemporânea, elevando o

mesmo a herói nacional. Trata-se de uma obra tendenciosa de um autor alagoano,

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ASSIS CINTRA apud GUERRA, Flávio. Calabar, (traidor, vilão ou idealista?). Recife: Asa Pernambuco, 1986, p. 69.

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empenhado em defender a reabilitação de seu próprio conterrâneo Domingos Fernandes Calabar, como o próprio título denota.

Assim, após trafegarmos pelos meandros do processo criativo de Calabar, a seguir pretendemos confrontar alguns temas abordados por Buarque e Guerra, sobretudo, na revisão da versão revisada da peça. Reiteramos que não pretendemos aprofundar nestas temáticas, pois este procedimento tornaria este trabalho inexequível. Contudo, aspiramos examinar e urdir estes temas de forma celular, visando compor o caleidoscópio recepcional construídos pelos artistas durante a releitura da peça.