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Retornando ao diário do diretor de Calabar, vemos que, no final de outubro, pela primeira vez a equipe adentra ao Teatro João Caetano. Na obra “Teatro em movimento”, na seção dedicada aos profissionais, Fernando Peixoto divulga alguns fragmentos do caderno de notas, da primeira montagem, a partir do dia 25 de outubro de 1973. Nele, o encenador admite que os ensaios apresentam dificuldades esperadas, e destaca a importância de desenvolver o trabalho em um teatro profissional, em detrimento de um espaço adaptado como havia ocorrido nas semanas anteriores, na atual Casa da Cultura Laura Alvim, em Ipanema. No João Caetano, Fernando Peixoto antevia muitas modificações no aspecto cênico.

Sabemos que a escolha do Teatro João Caetano não fora fortuita, visto que o centro do Rio de Janeiro visava contemplar o público da Zona Norte, que, além de encontrarem dificuldade de deslocamento para os teatros de Ipanema, poderiam contar com um ingresso de valor mais acessível. Além disso, as apresentações da peça já estavam confirmadas em várias metrópoles como Brasília, Porto Alegre, Belo Horizonte, Curitiba, Salvador, Recife, São Paulo e Santo André.

Quanto às dificuldades, outras também seriam percebidas pelo dramaturgo Chico Buarque: “Não faço mais musical histórico, dá muito trabalho. E o sucesso vai depender muito. Geralmente os musicais brasileiros têm vida curta. Nós só fizemos

Calabar porque o Rui já tinha a ideia como filme”.212

Não obstante, os obstáculos não se resumiriam à atividade teatral. Mal sabiam que o projeto seria abalado por outros empecilhos. Primeiro, o cancelamento da típica apresentação para os censores, agendada para o dia 4 de novembro. O encenador suspeita desta deliberação, pois poderia ser o indício de algo maior, talvez a interdição da própria montagem.

Adiantando no tempo, sabemos que os temores se confirmariam, com o veto definitivo do musical no dia 15 de janeiro de 1974. Entretanto, voltemos até outubro para acompanhar a apropriação deste processo por parte do receptor Fernando Peixoto.

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No caderno de anotações, o diretor destaca um aspecto positivo, pois, com o adiamento o mesmo teria mais tempo de trabalho. Neste tempo, os artistas seriam atingidos diretamente pela repressão política, pois o mesmo assinala que, no dia 30 de outubro, enquanto o cenário estava quase concluído (atrasado por uma Conferência ocorrida no teatro naqueles dias), o produtor Fernando Torres, em Brasília, comunica que o texto fora recolhido para reexame, por tempo indeterminado, pelo Serviço Nacional de Informação (SNI), órgão criado em 1964, para gerenciar as ações de informação e contra informação. O prazo para definição da questão seria indeterminado (vide iconografia)

Na ocasião, a atriz Bibi Ferreira viajaria para Brasília para interceder, pessoalmente, junto a Médici, em favor da liberação da peça. O presidente se comprometeu a realizar “um reestudo da Censura”.213

É sabido que a repressão de ideias não fora uma invenção dos militares durante a Ditadura,214 aliás, acompanha a história brasileira desde a chegada dos colonizadores, com o fito de garantir os bons costumes da sociedade, nas manifestações culturais, como nas produções cênicas. O controle censório ao teatro permaneceu vigente, nas democracias ocidentais até o século XX, segundo Luís Fernando Ramos. O pesquisador salienta que:

Em geral, ela serviu à Igreja e ao Estado, tornando-se uma prática regular de controle político utilizada pelos governos e pelo clero, com poder de aliviar ou suprimir, nos dramas e em suas encenações, quaisquer elementos que fossem contrários aos interesses ou valores dominantes [...] a censura teatral caracterizou-se sempre pelo impedimento à realização de espetáculos sem prévia aprovação da dramaturgia correspondente, o que, necessariamente, cerceava a liberdade artística e intelectual do dramaturgo.215

Desse modo, desde o período da colonização, as atividades teatrais enfrentaram o controle da Igreja e do círculo de poder metropolitano. Com a chegada da Corte

213

ARRABAL, José; LIMA, Mariângela A. de; PACHECO, Tânia. Anos 70: teatro. Rio de Janeiro: Europa, 1979-80, p. 96-97.

214

Cf. COSTA, Cristina. Censura em cena: teatro e censura no Brasil. São Paulo: Edusp/ Fapesp/ Imprensa Oficial, 2006.

215

RAMOS, Luís Fernando. Censura. In: GUINSBURG, Jacó; FARIA, João R.; LIMA, Mariângela A. de. (Orgs.). Dicionário do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 77.

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Portuguesa, em 1808, eleva-se tanto a qualidade das montagens teatrais, quanto os mecanismos de censura. Em 1829, ficou determinado que todas as peças representadas no Teatro de São Pedro de Alcântara, no Rio de Janeiro, deveriam ser minuciosamente examinadas.216 O controle continuará ocorrendo na República Velha até a Revolução de 1930, na Ditadura Varguista (1937-1945) e, na fase de escritura de Calabar, quando os militares abandonaram a caserna para controlar a política brasileira de 1964 a 1985, distinguindo apenas pelo vigor e os motivos com o qual foram implantados.

Durante o referido período, as peças estavam sob o monitoramento rigoroso do Departamento Federal de Segurança Pública. Cabe ressaltar que a censura transcendia o âmbito governamental, e contava, inclusive, com o colaboracionismo de membros da própria população, como verificamos em uma missiva, datada do dia 7 de junho de 1974, enviada ao governo, denunciando um programa televisivo, com o intuito de auxiliar o departamento de censura: “Achei que era um dever de consciência escrever - lhe, pois acho que o nome do Senhor deve ser respeitado”.217 A pesquisadora Cristina Costa confirma este procedimento salientando que:

[...] os censores não agiam sozinhos e que valiam de manifestações de apoio da sociedade civil, que se expressava através de telefonemas, telegramas e cartas de entidades e associações e da mídia que se posicionava a favor ou dava espaço para que certas pessoas se fizessem ouvir e ler.218

Diga-se de passagem, sobre a censura e os meios de comunicação, notadamente a TV, em um tempo em que a Copa do Mundo de 1970, no México, fora

216

A título de ilustração, a peça Marie Tudor, do representante da literatura romântica francesa Victor Hugo, não escapou da avaliação prévia, como podemos verificar no parecer da censura daquela época: “O drama Maria Tudor apresentando o deplorável espetáculo de uma Princesa soberana, digna de censura pelos escândalos de sua moral pervertida, como mulher e como Rainha, não pode deixar de deprimir, e muito, o prestígio da Realeza, se chegar a representar-se. E como, segundo meus princípios, só devam aparecer em cena os atos heroicos, morais e virtuosos dos soberanos, capazes de inspirar nos Povos sentimentos de amor, veneração e respeito, não posso convir em que se autorize a representação do referido Drama, e muito principalmente no Teatro de S. Pedro de Alcântara, honrado frequentes vezes, e sem prévia participação, com a augusta presença da Família Imperial”. LEÃO, 1960 apud FARIA, João Roberto. Victor Hugo e o teatro romântico no Brasil. Araraquara: Lettres Françaises, 2003, p. 111. V. 5.

217

LIGO, Hermelinda E. V. [Carta endereçada ao Dr. Rogério Nunes]. Censura Musical. Disponível em: <http://www.censuramusical.com.br/includes/docs/Cartadeumacidada1.pdf>. Acesso em: 1 Nov. 2013.

218

COSTA, Cristina. Censura em cena: teatro e censura no Brasil. São Paulo: Edusp/ Fapesp/ Imprensa Oficial, 2006, p. 226.

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acompanhada em tempo real por milhões de brasileiros, manifestando o papel fundamental dos televisores na implantação do Plano de Integração Nacional (PIN), os telenoticiários se transformariam em estratagemas poderosos de um governo arbitrário que manipulava a notícia convenientemente, influenciando sobremaneira, no “espaço de experiência” de cada telespectador que realiza o processo de incorporação de experiências alheias, também a partir da observação de novelas e noticiários. Em 1974, a censura prévia ocultou um ataque repentino de meningite no Brasil, deixando de divulgar a morte de 2.575 pessoas em São Paulo,219 ou então, validou ludibriosos filmes governamentais, veiculado por uma emissora de TV,220 consistindo este, o efeito mais danoso provocado pela TV Globo ao apoiar o governo militar. Ciente deste engodo, o presidente Médici teria declarado:

Sinto-me feliz, todas as noites, quando ligo a televisão, para assistir o jornal. Enquanto as notícias dão conta de greves, agitações, atentados e conflitos em várias partes do mundo, o Brasil marcha em paz, rumo ao desenvolvimento. É como se eu tomasse tranquilizante, após um dia de trabalho221

Sob esta atmosfera asfixiante, Peixoto, imediatamente, marca uma reunião, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, com Buarque e Guerra. A proposta de filmar o espetáculo, ou encená-la em Buenos Aires, fora cogitada. Sobre esta segunda alternativa, o encenador sugere o nome da atriz, dançarina e cantora argentina Nacha Guevara para o papel de Bárbara, inclusive se prontificando a ligar, naquela noite mesmo, para Augusto Boal, exilado na Argentina. A deliberação do trio é continuar.

Segundo Fernando, os ensaios começam às vinte e duas horas, e avançavam pela madrugada. Neles, surpreendido, o diretor identifica uma harmonização dos artistas, no novo espaço:

Os atores se integram no espaço e na cenografia, sem problemas maiores. A adaptação ao espaço definitivo não é angustiante. A linguagem do espetáculo agora se define [...] A batalha será corrigir,

219

A CENSURA. Veja, São Paulo, p. 30, 26 Dez. 1979.

220

Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=eoJOrwGa0ZU>. Acesso em: 1 Nov. 2013. 221

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em poucos dias, questões de ritmo, harmonia de movimentos, tempo.222

Entretanto, ao mesmo tempo em que a montagem avança cenicamente, o espectro da possibilidade do malogro de todo o trabalho ronda os pensamentos do diretor de Calabar.

No dia seguinte, o caderno de notas revela algumas considerações importantes a respeito da concepção teatral da peça. Por sua vez o autor declara que o aspecto visual do espetáculo aos poucos vai se constituindo, a partir de bandeiras, telões de boca e muitos outros objetos e adereços, simbioticamente, interagindo com o enredo da peça. Neste momento, Peixoto procura destacar o excelente trabalho de cenografia de Hélio Eichbauer, possuidor de “um vigor épico expressivo”.223

Em um texto, em que se propõe a examinar todas as parcerias com o cenógrafo, totalizando seis produções teatrais, Fernando Peixoto destaca a importância do elemento cênico no trabalho artístico de Eichbauer na peça Calabar, de 1973 e 1980: “[...] a primeira fundamentada numa postura historicista e narrativa, a descrição crítica de um instante histórico, a segunda, ao contrário, o estabelecimento de um espaço teatral seco e despojado, cru e nu, armado com uma textura tosca e corajosamente bruta”.224

Estas características estarão consonantes com concepção artística e histórica das duas montagens, como poderão ser observadas no desenvolvimento deste capítulo.

Notável como a citação denota a historicidade excepcional e inerente de outras linguagens artísticas, no caso, a construção cenográfica de um espetáculo, e, também, revela a influência da mesma na montagem teatral, que, no caso de Eichbauer, se tornava fundamental na concepção cênica do espetáculo.

Mister se faz destacar, também, que o trabalho de cenografia não se resume a mera decoração de um palco como se supunha na primeira metade do século XX, no Brasil. Não por acaso, o próprio cenógrafo era denominado pelo termo francês décor. Trata-se de uma linguagem muito mais abrangente. O cenógrafo se responsabiliza por

222

PEIXOTO, Fernando. Teatro em movimento. São Paulo: Hucitec, 1985, p. 191.

223

Ibid.

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toda a realidade visual onde se executa a ação dramática, e, neste quesito, Fernando Peixoto, sem surpresas, estava muito bem assessorado, demonstrando, como em uma reação em cadeia, competentes artistas vão estabelecendo uma coalização produtiva.

Hélio Eichbauer fora aluno em Praga, de Josef Svoboda, tido na década de 1970 como o melhor cenógrafo do mundo. Inclusive, o encontro entre o estudante Hélio, e, naquele tempo, ainda apenas ator Fernando Peixoto ocorreu, na capital da República Tcheca, em 1966.

De volta ao Brasil, o cenógrafo se tornou um dos principais profissionais do gênero no país, por ter participado da renovação da cenografia brasileira moderna, por exemplo, por meio de produções importantes como O Rei da Vela (1967), onde atuou também como figurinista, sendo consagrado com os prêmios Governador do Estado de São Paulo e Associação Paulista de Críticos Teatrais (APCT). Antes de Calabar, Eichbauer se reencontraria, profissionalmente, com Peixoto, nas produções A Semana e

Frei Caneca, ambas de 1972.

Além da cenografia, musicalmente, se já não bastasse letristas competentes como Chico Buarque e Ruy Guerra, a peça de 1973 contou ainda, como já escrevemos, com Dori Caymmi na direção, Edu Lobo na orquestração, e músicos como o próprio Dori, seu irmão Danilo Caymmi, João Palma, Maurício Mendonça e Tenório Jr (que, inclusive, desapareceria na Argentina em 1976).

Sobre o trabalho musical na peça, Dori Caymmi, em uma entrevista, pouco antes da provável estreia do espetáculo, declarou que se tratava de um trabalho inédito no Brasil onde todos os atores, obrigatoriamente, teriam que saber cantar. Ele prossegue:

Será um espetáculo rápido e lépido, com grande precisão. Para conseguir isso os atores estão cantando quatro horas por dia. Cantam a quatro vozes e fazem o coral gregoriano. Nos outros musicais que trabalhei sempre estive preso, talvez por não acreditar muito em minhas possibilidades. Contudo consegui excelentes resultados me valendo de um trabalho rígido.225

225

GODINHO JR, Ivandel. Calabar, o traidor (ou será que ele não foi?). Diário de Notícias, Rio de Janeiro, p. 12, 07 Out. 1973.

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O diretor musical na mesma entrevista ainda lamentava o pouco tempo para a estreia, mas, otimista, esperava que as atrizes Tetê Medina e Betty Faria estivessem cantando como Barbra Streisand, na Broadway.