• Nenhum resultado encontrado

A CAÇADA. Olinda Edimar Oro Waram

No documento GEOGRAFIA DA RE-EXISTÊNCIA: (páginas 125-129)

Tempos depois, apareceu um homem branco. Era seringueiro

NR 3: A CAÇADA. Olinda Edimar Oro Waram

Quando nós fazemos a festa da caçada, nós mulheres nos reunimos para fazer a festa.

Quando chega a noite, pegamos palhas e batemos nos homens devagar e pedimos para eles matar veado, porquinho, paca, qualquer outro animal que ele encontrar.

No dia seguinte, eles se reúnem para ir à caçada e ficam dois ou três dias na mata. Se eles matam alguma caça, eles fazem uma fogueira para assar o bicho e levam o bicho para a aldeia já assado, pronto para o consumo.

Nesses três dias que os homens estão na mata, as mulheres aprontam a chicha (chicha de milho, chicha de macaxeira), deixando ficar azeda.

Fazemos pamonha também e ficamos esperando o dia da chegada.

Quando é o dia da chegada, os homens vêm assoprando no cano da taboca, anunciando a chegada. De longe ouvimos o som.

As mulheres se aprontam, se pintam com colorau e vestem roupas diferentes para homem não reconhecer.

Pegam uma panela de dois litros para dar a chicha para os homens caçadores. Dão muita chicha para eles. Até não aguentar mais ou até provocar.

As mulheres pegam uma esteira nova para colocar as caças.

Os homens fazem a divisão das caças.

É assim a realidade da minha aldeia.

Este primeiro fragmento fala das mulheres no plural “nós mulheres”, o que deixa claro para o leitor o papel igual entre o mesmo gênero, mas diferente dos homens indígenas. Vejamos:

NR 3a: Quando nós fazemos a festa da caçada, nós mulheres nos reunimos para fazer a festa.

Quando chega a noite, pegamos palhas e batemos nos homens devagar e pedimos para eles matar veado, porquinho, paca, qualquer outro animal que ele encontrar.

O ritual que antecede a caçada é preparado pelas mulheres que se reúnem com antecedência para preparar os pedidos que serão feitos aos homens antes da saída para a caçada.

A batida com palhas nos homens deve ser devagar, apenas simbólica, como que para atrair a sorte que garantirá a alimentação do povo da aldeia por um bom tempo. Os animais mais lembrados são o veado, o porquinho22 e a paca. O porquinho é o cateto ou caititu, também conhecido como porco-do-mato, um porco pequeno, diferente da queixada, da anta e da paca. Não é da família do porco, porque só tem três dedos nas patas de trás.

NR 3b: No dia seguinte, eles se reúnem para ir à caçada e ficam dois ou três dias na mata. Se eles matam alguma caça, eles fazem uma fogueira para assar o bicho e levam o bicho para a aldeia já assado, pronto para o consumo.

Durante dois ou três dias os homens da aldeia ficam na mata caçando.

Neste parágrafo, a autora refere-se aos homens, utilizando o pronome anafórico “eles”. Os pronomes anafóricos são utilizados para estabelecer uma referência direta ou indireta com um termo anterior, de modo que, para compreendê-lo dependemos do termo antecedente. No caso da presente narrativa, o referente ficou no parágrafo anterior quando a narradora diz: “...

pegamos palhas e batemos nos homens devagar...”

Importante observar que “o bicho”, depois de morto, é assado ainda na mata para preservação da carne. Por isso é que chega “pronto para o consumo”.

Intercalando as atividades dos homens com as das mulheres, a autora mostra, no trecho que segue, o que fazem as mulheres indígenas, enquanto os homens caçam.

22O cateto se diferencia pelo "colar" de pelos brancos ao redor do pescoço. A pelagem geral é longa, áspera, espessa e geralmente preta. Possuem glândulas de cheiro, na região dorsal, soltando odores fortes e desagradáveis.

NR 3c: Nesses três dias que os homens estão na mata, as mulheres aprontam a chicha (chicha de milho, chicha de macaxeira), deixando ficar azeda.

Fazemos pamonha também e ficamos esperando o dia da chegada.

[...]

As mulheres se aprontam, se pintam com colorau e vestem roupas diferentes para homem não reconhecer.

Pegam uma panela de dois litros para dar a chicha para os homens caçadores. Dão muita chicha para eles. Até não aguentar mais ou até provocar.

As mulheres pegam uma esteira nova para colocar as caças.

As mulheres preparam a chicha23 e a pamonha para esperar o dia da chegada. Observa-se a forte presença do milho na alimentação dos indígenas, embora a chicha possa ser preparada com macaxeira também. Essa bebida, quando fermentada (azeda) apresenta teor alcoólico.

Ao se prepararem para a recepção, além da pintura com colorau24 e da vestimenta diferente, há o detalhe do não reconhecimento pelos homens. A caçada continua simbolicamente, através da vestimenta que disfarça e da ingestão da chicha. Afinal são dois litros que os caçadores devem ingerir, no mínimo. E é “oferecido” pelas mulheres “até não aguentar mais ou até

“provocar”25.

Por fim, as mulheres pegam uma esteira nova onde as caças são colocadas para ser dividida, pelos homens, com todos os habitantes da aldeia.

Uma lição que os não-indígenas poderiam aprender, já que os papéis masculinos e femininos são bem demarcados no texto, sendo possível reconhecer, pelas marcas de autoria deixadas pela narradora, o realce aos afazeres femininos, evidenciando sua importância, em pé de igualdade com os homens, na comunidade em que vivem. Outro aspecto importante a ser

23 A chicha é uma bebida fermentada a base de milho e outros cereais. Em outras etnias, a chicha é conhecida por “makaloba” – bebida feita de milho ou macaxeira.

24 Colorau - condimento e colorante de cor vermelha, feito do pó da semente do urucu ou urucum. Do tupi “uru-ku” = vermelho. É o fruto do urucuzeiro. Rondônia é o maior produtor nacional de urucum. Do livro: Carapanã encheu, voou: o portovelhês. AMARAL, Nair F. Gurgel do. Editora Temática, 2015.

25 Provocar - tem o sentido de vomitar. “Passei a noite provocando. Alguma coisa que comi me fez mal”. Do livro: Carapanã encheu, voou: o portovelhês. AMARAL, Nair F. Gurgel do. Editora Temática, 2015.

observado nesse ritual é a divisão de tudo que foi caçado com todos da comunidade, mostrando, assim, a união social e a vida em comunidade em harmonia.

Essa relação intercultural fica clara nas palavras de Candau (2009):

A perspectiva intercultural quer promover uma educação para o reconhecimento do outro, o diálogo entre os diferentes grupos socioculturais. Uma educação para a negociação cultural [...] A perspectiva intercultural está orientada à construção de uma sociedade democrática, plural, humana, que articule políticas de igualdade com políticas de identidade (CANDAU, 2009, p.

54).

Se entendermos a cultura humana como um espaço dentro do qual cada um constrói seu saber, sua forma de ser e ver o mundo, é possível pensar a interculturalidade como uma ação que pode promover a abertura desses espaços para que as culturas possam estabelecer interações umas com as outras.

Basta algum contato com os povos indígenas para saber que eles não precisam necessariamente do escrito no papel para que suas culturas permaneçam vivas nas aldeias. Ao reescrever suas narrativas, a voz dos povos indígenas buscam diálogo com os povos da cidade, apresentando-se por meio de um diálogo intercultural e histórico.

Os atos de escrita que apresentamos possuem em comum o manejo de procedimentos tradutórios e a disposição ao diálogo intercultural que nos permitem tornar mais legíveis a autoria indígena.

Passemos, agora, a análise de mais uma narrativa que evidencia a cultura indígena e sua relação intercultural. A narrativa “O milho” encaixa-se no gênero Lendas e possui cunho mitológico, exemplificando-se como manifestação oral, de propriedade coletiva da comunidade e herdadas dos antepassados, pois são aprendidas através da memória e passadas de geração em geração. Quem narra não se sente criador da narrativa, mas um transmissor, um contador que forma um elo na cadeia infinita de repetidores e guardiões das narrativas ao longo das gerações.

Considerando o contador de histórias como alguém que revive toda a tradição oral da comunidade, Souza (2006) reconhece que, apesar de o

conceito de contador não possuir diretamente o sentido de criador (autor), mas apenas o significado de repetidor da narrativa tradicional pertencente à comunidade, o contador acaba usando essas técnicas de uma forma personalizada para dar vida à narrativa, ao seguir as regras da performatividade26, interagindo com a plateia e lançando mão de várias técnicas de narrar, de acordo com as reações de sua audiência. Vejamos:

No documento GEOGRAFIA DA RE-EXISTÊNCIA: (páginas 125-129)