• Nenhum resultado encontrado

Calundu, batuque, lundu: Entre a tolerância e a repressão

3 DO CALUNDU AO LUNDU-CANÇÃO

3.4 Calundu, batuque, lundu: Entre a tolerância e a repressão

seria inaceitável “a dissolução dos costumes da Corte”:

Tive finalmente de assistir à assembleia de F... [D. Leonor de Almeida, Marqueza de Alorna] para que tantas vezes tinha sido convidado; que desatino não vi? Mas não direi tudo quanto vi; direi somente que cantavam mancebos e donzelas cantigas de amor tão descompostas, que corei de pejo como se me achasse de repente em bordéis, ou com mulheres de má fazenda. Antigamente ouviam e cantavam os meninos cantilenas guerreiras, que inspiravam ânimo e valor [...]. Hoje, pelo contrário, só se ouvem cantigas amorosas de suspiros, de requebros, de namoros refinados, de garridices. Isto é o com que embalam as crianças; o que ensinam aos meninos; o que cantam os moços, e o que trazem na boca donas e donzelas. Que grandes máximas de modéstia, de temperança e de virtude se aprendem nestas canções! Esta praga é hoje geral depois que o Caldas começou de por em uso os seus rimances, e de versejar para as mulheres. Eu não conheço um poeta mais prejudicial à educação particular e pública do que este trovador de Vênus e de Cupido; a tafularia do amor, a meiguice do Brasil e, em geral, a moleza americana que em seus cantares somente respiram as imprudências e liberdades do amor, e os ares voluptuosos de Paphos e de Cythera, e encantam com venenosos filtros a fantasia dos moços e o coração das Damas. Eu admiro a facilidade da sua veia, a riqueza das suas invenções, a variedade dos motivos que toma para seus cantos, e o pico e graça dos estribilhos e retornelos com que os remata; mas detesto os seus assuntos e, mais ainda, a maneira com que os trata e com que os canta (cit. ARAUJO, 1963, pp. 39-40).

No trânsito entre o calundu e o lundu-canção, analisado neste capítulo, cabe destacar a indissociabilidade entre práticas religiosas e recreativas desenvolvidas nos ambientes dos calundus e das irmandades religiosas e como batuques exclusivamente recreativos se autonomizaram por volta da metade do século XVIII. Sublinhar, também, a presença marcante de músicos negros no mundo atlântico, desde o século XVI, no teatro ibérico; e, pelos séculos seguintes, nas capelas das igrejas, nas festas de rua das irmandades religiosas, nos calundus, nos bordéis, nos salões e no teatro, influencindo e sendo influenciados pela música do período barroco e do iluminismo. Outra pontuação a se fazer aqui diz respeito ao registro pioneiro do vocábulo batuque, nas Minas do Ouro, em 1753, assim como do substantivo batuqueiro, cerca de 100 anos antes de viajantes e dicionaristas portugueses fixarem o termo, referindo-o às músicas e danças africanas, como foi o caso de Alfredo Sarmento.

3.4 CALUNDU, BATUQUE, LUNDU: ENTRE A TOLERÂNCIA E A REPRESSÃO

Na segunda metade do século XVIII, período em que expressões musicais e coreográficas afro-atlânticas, combinadas, cruzadas e traduzidas nos lundus (dança e canção),

penetravam “nas casas mais honestas e palácios”, o que ocorria nas bases da sociedade colonial era a persistência de africanos e afro-brasileiros comandando a realização de calundus e batuques em espaços abertos e humildes casebres nas roças, vilas e cidades. Estas práticas populares dividiam opiniões e instigavam diferentes atitudes das autoridades civis e eclesiásticas, e de outros setores da população, quanto à melhor maneira de lidar com aqueles costumes, cada vez mais generalizados.

A casa da africana Custódia Gege, moradora da Cidade da Bahia, na rua das Laranjeiras, esquina com a Travessa da Ordem Terceira de São Francisco (no atual bairro do Pelourinho) foi invadida, em 1754, por autoridades judiciárias e eclesiásticas, que determinaram a prisão de catorze pessoas: dez mulheres e quatro homens. Entre os presos havia africanos e afro- brasileiros, escravos e forros. Várias outras pessoas que estavam presentes fugiram na hora da batida policial, que se deu por ordem do reverendo promotor Antônio da Costa. Segundo a denúncia, na casa de Custódia Gege muitas pessoas se reuniam regularmente para celebrarem “as festas de Calundus” (FERREIRA, 2016, p. 141-142).

Um ano depois das prisões, o Santo Ofício, por entender que na casa de Custódia se invocava o demônio por meio de superstições, determinou realizar diligências para apuração circunstanciada do caso. Os mesmos meirinho-geral e escrivão do juízo eclesiástico, que haviam comandado a batida policial, disseram aos inquisidores nada saber sobre os significados de calundus, garantiram desconhecer se Custódia Gege promovia regularmente aquelas festas, e nem podia assegurar que nelas se invocasse o demônio. O que disseram foi que, na noite das prisões, os “ditos pretos e pretas” tangiam atabaques “com grande gritaria e clamor do costume das suas terras” (ib., p. 142).

Todas as testemunhas, inclusive dois religiosos, negaram-se a corroborar a pretensão do Santo Ofício, de demonizar as práticas sagradas, curativas e festivas da sacerdotisa africana e dos seus companheiros. Custódia Gêge vivia escravizada pelo alfaiate Inácio Manoel, mas morava em casa separada da do seu senhor. Um dos vizinhos da africana, o também alfaiate João Pinheiro de Lemos, comentou “que em alguns domingos e dias santos ouvia da casa de Custódia Gege tanger tabaques e cantar ao modo das terras da Costa da Mina” (ib. p. 143). Outro vizinho, o entalhador Alexandre Baracho, informou que “na casa de Custódia se costumavam juntar aos domingos e dias santos e alguns dias mais além desses, várias pessoas cujo nome ignora ele testemunha, com clamores ao som de um tabaque a festejar a quem não sabe ele testemunha” (ib.). Explicou também que as festas na casa da vizinha foram informadas a Inácio Manoel, senhor de Custódia, o qual respondeu “que aqueles festejos eram dedicados aos santos de sua terra e que deles não vinha prejuízo a pessoa alguma” (ib.).

O auto de apreensão feito pelo escrivão relacionou dezenas de objetos de culto encontrados na casa da calunduzeira, entre os quais altares, oferendas alimentícias, animais, instrumentos para sacrificar animais, partes de animais sacrificados, panelas e cabaças com folhas e raízes dentro, “cuia da costa com água de pemba”; foi identificado o local de assentamento da divindade, encontrados búzios, contas azuis, miçangas, instrumentos musicais como “viola de freixos”, um “tambaque encoirado em uma panela”, “umas cabaças com umas contas ou miçangas por fora”105. As mesmas testemunhas que disseram nada saber sobre

calundus revelaram aspectos do ambiente e dos artefatos encontrados na casa, sugerindo tratar- se o local de “uma congregação bastante ativa, e o próprio tom reticente das testemunhas talvez indique que elas tentavam proteger a existência daquele espaço ou as pessoas que nele se reuniam” (FERREIRA, 2016, p. 143). Os documentos a que Elisangela Ferreira teve acesso foram insuficientes para esclarecer as razões que levaram ao “pacto de silêncio” que se estabeleceu entre os dois religiosos, as quatro testemunhas, o meirinho-geral, o escrivão e o senhor de Custódia, que se recusaram a demonizar as práticas da sacerdotisa, como pretendia o Santo Ofício.

Atitude parecida a esta adotada pelas testemunhas, em relação à Custódia Gege, foi constatada também por Mott (1986), para o caso da dança de Tunda ou Acotundá, reprimida por capitães-do-mato no Arraial das Minas do Paracatu, em 1744, e que era comandada pela africana Josefa Courá. As testemunhas ouvidas também declararam nada saber dos significados religiosos das danças, adotando postura que poderia ser interpretada como cumplicidade, “ou pelo menos indiferença, em torno de algo que lhes era de alguma utilidade, em todo caso não se percebe nenhuma hostilidade contra a dança de Josefa Courá nos seus depoimentos” (SILVEIRA, 2006, p. 231). Postura bastante distinta em relação aos costumes afro-brasileiros foi aquela manifestada pelo professor de língua grega Luís dos Santos Vilhena. Escrevendo as suas Cartas Soteropolitanas, na última década do século XVIII, deixou claro a preferência por uma política tirânica de controle social, visando conter a presença das músicas e danças afro- atlânticas na paisagem urbana da cidade da Bahia:

[...] não parece ser muito acerto em política, o tolerar que pelas ruas, e terreiros da cidade façam multidões de negros de um, e outro sexo, os seus batuques bárbaros a toque de muitos, e horrorosos atabaques, dançando desonestamente, e cantando canções gentílicas, falando línguas diversas, e isto com alaridos tão horrendos, e dissonantes que causam medo, e estranheza, ainda aos mais afoitos, na ponderação de consequências que dali podem provir, atendendo ao já referido número de escravos que há na Bahia,

105 A longa lista de objetos apreendidos no dia da prisão foi ampliada, no dia seguinte, depois de uma segunda visita das autoridades ao local/ a relação completa foi publicada por Ferreira, 2016, pp. 144-145.

corporação temível (grifo nosso), e digna de bastante atenção, a não intervir

a rivalidade que há entre crioulos e os que o não são; assim como entre as diversas nações de que se compõe a escravatura vinda das costas da África (VILHENA, 1969, p. 134).

As autoridades coloniais da época eram politicamente mais realistas do que o professor de grego. Afinal, a pura e simples proibição e repressão das atividades lúdicas e religiosas das “multidões de negros” de “línguas diversas” que ocupavam as ruas da cidade poderiam gerar mais do que medo na minoria branca. A “corporação temível” de africanos e afrodescendentes, incluindo escravizados e livres, compreendia 64,5% da população de Salvador em 1775; e estava crescendo naqueles anos, alcançando 72% em 1807 (REIS, 1991, p. 35). Uma das chaves para entender os motivos pelos quais aquela esmagadora maioria demográfica submetia-se à violência escravista da minoria escravocrata foi fornecida pelo próprio Vilhena, que enfatizou “a rivalidade” que havia “entre crioulos e os que o não são; assim como entre as diversas nações de que se compõe a escravatura vinda das costas da África” (VILHENA, 1969 p. 134).

As rivalidades entre distintos grupos étnicos cavavam um “fosso que dividia o mundo dos africanos de um lado e o dos nascidos no Brasil do outro (não importando a cor) [e] era maior do que o que separava brancos de não brancos” (REIS, 1988, p. 80). Alguns dos indivíduos afro-brasileiros, inclusive, eram recrutados para formar o quadro de feitores, milicianos e soldados que atuavam na repressão cotidiana e nas tentativas de revoltas (ib.). Como apontou Vilhena, as rivalidades dividiam também os africanos das “diversas nações” que viviam no Brasil. A diversidade de procedência havia crescido ao longo do século XVIII quando o tráfico negreiro reduziu a hegemonia dos portos de Angola. Particularmente, entre 1790 e 1830, estima-se em 7 mil pessoas/ano trazidas da região do golfo do Benin, oriundas de grupos aja-fon-ewe (ioruba, hauçá, nupe e outros) que eram povos do antigo reino do Daomé – aproximadamente o que hoje corresponde à República Popular do Benin – e da atual Nigéria (REIS, 1991, p. 35). Apesar das acirradas disputas entre africanos de distintas “nações” e destes com afro-brasileiros, o fato é que a população branca dirigente temia revoltas escravas, pois o ambiente escravista – violento, hierarquizado, racista - era permanentemente tenso. “Na escravidão, nunca se vivia uma paz verdadeira; o cotidiano significava uma espécie de guerra não convencional” (REIS & SILVA, 1989, p. 32).

Dado o alto número de pessoas escravizadas vivendo na cidade da Bahia, a precária estabilidade social era obtida pelo uso ou pela capacidade senhorial de instilar o “temor da violência”, ao lado de “poderosas correntes de negociação e sabedoria política” (REIS & SILVA, 1989, p. 14). Ao invés da revolta armada, lançava-se mão de manifestações lúdico- religiosas. Dispostos a afirmar as suas próprias forças, de garantir o direito ao lazer e exprimir,

de forma autônoma e cada vez mais generalizada, seus costumes próprios, africanos e afro- brasileiros ocupavam as ruas, como relatou Vilhena no caso dos batuques, gerando medo e incômodos diversos na sociedade branca. A disponibilidade transacional seria uma das características dos modos de proceder dos africanos para fazer crescer a suas próprias forças (o axé para os iorubas e muntu, o ser-força dos bantu) – força aqui entendida como poder de transformação e realização, que perpetua a dinâmica da vida (SODRÉ, 2002, p. 19):

Negocia-se com os deuses, as coisas, os animais, os homens, com tudo capaz de realimentar a força. [...] Quando os negros faziam ou fazem coincidir as suas celebrações litúrgicas com as datas de determinadas festividades cristãs, ou quando permitiam a associação de algumas de suas divindades com análogos católicos, na verdade procediam a essa lógica transacionalista do "acerto" (SODRÉ, 2002, p. 113).

Por essa lógica, ao invés de “questionar intelectual ou militarmente o sistema explorador, aproveita[va]-se dele. Este aproveitamento implica uma troca, uma coordenação analógica de oportunidades” (ib., p. 114). A capacidade de negociação encontrou reciprocidade nas “próprias estruturas do grupo branco hegemônico (transplantadas da Idade Média portuguesa) [que] tinham, no fundo, pontos de afinidade com as formas do poder político negro” (ib.)106. Do mesmo modo como ocorria em outras sociedades escravistas do período,

africanos e afro-brasileiros “negociaram mais do que lutaram abertamente contra o sistema” (REIS & SILVA, 1989, p. 14). Negociar é algo muito distinto de anular-se perante o outro. “Seria muito para desejar que [os escravizados] se pusessem em um estado de subordinação tal” (Vilhena, 1969, p. 134) para aceitar a escravidão de cabeça baixa, inteiramente submissos ao sistema. Dentre as “tecnologias pacíficas de resistência” (REIS & SILVA, 1989, p. 32) adotadas, inclusive, a capacidade de tirar partido do governo paternalista adotado por muitos senhores.

Observou Vilhena que havia brancos desejosos de exercer poder de mando sobre escravizados dos quais estava ausente seu direito de proprietário. Estas intenções senhoriais eram rechaçadas, sobretudo, pelos cativos “que são de pessoas que figuram por suas qualidades, empregos e haveres”, ou seja, escravizados por senhores poderosos tendiam a atrair para si a simbologia desse poder, tratando

[...] todos os mais brancos com aquela displicência, e pouco apreço com que observam serem tratados por seus senhores; muito curta serão as luzes de quem não conhecer a suma importância de um tal rasgo de política em uma

cidade povoada de escravos, cafres e tão bravos como feras” (grifo nosso) (VILHENA, 1969, p. 132).

As injustas relações sociais escravistas eram enfrentadas, portanto, por meio de alianças “com libertos, crioulos e mesmo brancos, ou procurando esconder-se atrás das costas largas de seus senhores” (REIS, 1989, p. 9). Desta intrincada rede de relações, os escravizados lograram, p. ex., afirmar o direito de tocar, dançar, cantar, brincar, cultuar seus deuses, apesar da repressão policial. Como lembra Reis, “poucas instituições negras desenvolveram e aperfeiçoaram como o candomblé a sabedoria da negociação escrava” (ib.).

Quando as negociações falhavam, podiam advir variadas formas de rupturas, que funcionavam, de alguma forma, como tentativas de limitar os “excessos da tirania senhorial”: a fuga, tanto a transitória como a que levava aos quilombos; e as revoltas, que representaram as rupturas mais radicais e, quase sempre, trágicas. Porém, mesmo diante das situações de aparente acomodamento e presumida aceitação do status quo – como alguns analistas podem apontar para o caso das irmandades católicas negras e dos batuques - “[c]orrentezas perigosas e fortes passavam sob aquela docilidade e ajustamento”, apontou Eugene Genovese” (cit. REIS & SILVA, 1989, p. 32).

Episódio exemplar para a exposição dos campos de forças envolvidas no trato com danças e cultos afro-brasileiros ocorreu por volta de 1780, em Pernambuco, cujos fatos expuseram distintas posições dos praticantes, do governo local, da Coroa e de alguns dos seus altos funcionários. Segundo correspondência do governador José Cesar de Menezes, o evento foi deflagrado por dois

[...] frades barbadinhos, de novo chegados dessas Cortes, os quais com um indiscreto zelo, e coligidos com dois Clérigos, se lançaram pelas casas onde moravam os Negros que guardavam os instrumentos das danças e os entraram a quebrar de que os negros se quiseram levantar, e foi preciso um dos ditos frades tirar um Santo Cristo e dizer-lhes que aquele Senhor é que mandava; isto fez logo aquietar os Pretos; depois foram os ditos Padres à casa de uma mulher casada, que estava tocando uma cítara, e lhe quebraram. Representando-me esta repreendi os Padres Missionários e Clérigos, que foram mostrar as casas, e fiz pagar o desmanche dos instrumentos (cit. SILVA, 2005, pp. 277-278)107.

Como se vê, os missionários barbadinhos entraram em terreno minado. As suas ações arbitrarias romperam o acordo tácito que garantia a realização semanal das danças de africanos e seus descendentes. A ameaça de levante dos atingidos, de acordo com o relato dos fatos, foi

107 Carta de José César de Menezes a Antonio Verissimo de Larre, Arcebispo de Lacedemonia, presidente do Santo Ofício, em Lisboa. Arquivo do IHGB, D.L. 864, 1-2, Livro IIIo. Fls. 101v.-, 102. Recife, 22/03/1780

contornada graças à aquiescência dos pretos à reverência cristã; e, talvez sobretudo, pela medida do governador que, agindo por “razões de Estado”, obrigou os frades a pagar pelo prejuízo dado aos instrumentistas – entre eles uma mulher que apelou à interveniência da autoridade maior da Capitania. Continuou o governador na sua carta:

[...] não é verossímil que estando aqui um Bispo, tantos párocos, e Prelados, tantos Missionários, com tantos Antecessores meus, nenhum deles achasse razão para se proibirem as tais danças, antes se fecha os olhos a isso por uma razão de Estado; porque uns homens constituídos em um Cativeiro pesado desesperariam, se não tivessem no Domingo aquele divertimento, se lançariam a distúrbios mais sensíveis (cit. SILVA, 2001, p. 278).

Assim que se viram desautorizados por José Cesar de Meneses, ainda em 1779, os capuchos enviaram representação ao Santo Ofício, acusando o governador de defender “danças gentílicas”. Os termos usados pelos padres, acerca das danças que pretendiam proibir, podem ser apreciados na correspondência enviada pelo Santo Ofício ao governador, informando-o de que estava sob avaliação do Tribunal da Inquisição

[...] a torpe escandalosa e abominável desordem que praticam nessa Capitania Estado de Pernambuco os Pretos Católicos do Gentio de Angola, e com especialidade os Costa [da Mina], que usando de danças acompanhadas dos Ritos e cerimônias gentílicas e supersticiosas, com que nas trevas da sua desgraçada gentilidade costumavam festejar e adorar as suas falsas Divindades, umas vezes enxertam atos demonstrativos de piedade e de Religião, e outras executando fatos e proferindo palavras inteiramente destrutivas dela se propõem como objetos de divertimento próprio, e do público, que a presencia (cit. ib., p. 279)108.

O Santo Ofício advertiu o governador a agir em favor do “Santíssimo Nome” de Deus e da “verdadeira Lei” para extinguir “a tão horroroso mal”; e que deveria atuar para por fim a “um costume, que não respira mais do que superstição, Idolatria, e dissolução, tão pouco admissível e disfarçável, quanto dign[o] da mais pronta estranheza e eficaz providência” (cit. ib.). José Cesar de Meneses rechaçou as acusações de “gentilismos” dos costumes afro- brasileiros assacadas pelo presidente do Tribunal lisboeta; e garantiu ter “o coração inteiramente católico para proteger qualquer pessoa eclesiástica, e muito mais aqueles que promulgam a Palavra de Deus”, porém, pontuou que era “custoso proibir o divertimento de uns homens penosamente trabalhados, que nada conservam nas tais danças de seus ritos gentílicos, como falsamente se representou” (cit. SILVA, 2001, p. 279).

108 Carta de Antonio de Verissimo de Larre, Arcebispo de Lacedemonia, a José Cesar de Menezes. AHU, Caixa 68, papéis avulsos. Lisboa, 25 de novembro de 1779.

Representante máximo da ortodoxia católica inquisitorial, o Arcebispo de Lacedemonia atuava visando impor pela força das armas ou da catequese a “verdadeira Lei”, a Verdade europeia supostamente universal, àquela parcela de supostos “não-homens” africanos, membros da “humanidade inviável”: selvagens, bárbaros, negros109. Para dirimir o conflito de

opiniões entre o Santo Ofício e o governador José Cesar de Meneses, acerca do caráter “gentílico” das danças africanas praticadas em Pernambuco, a rainha d. Maria I e seus funcionários do Ministério da Marinha e Domínios Ultramarinos solicitaram, em 09 de junho de 1780, a D. José da Cunha Grã Ataíde e Melo, o Conde de Povolide, parecer circunstanciado acerca da questão. Este, àquela altura, vivia em Lisboa, mas havia sido governador das capitanias de Pernambuco e da Bahia, entre 1768 e 1774.

No dia seguinte (10/06) Povolide encaminhou correspondência com o seu juízo sobre o tema, ponderando que o Santo Ofício e o governador estariam se referindo a coisas distintas: enquanto o Tribunal Inquisitorial cobrava a condenação de “danças supersticiosas”, o governador mencionava “danças que, ainda não sejam as mais Santas, não as considero dignas de uma total reprovação” (cit. SILVA, 2001, p. 280). As danças defendidas pelo governador, segundo o Conde, eram aquelas realizadas pelos

[...] pretos divididos em nações e com instrumentos próprios de cada uma, [que] dançam e fazem voltas como arlequins, e outros dançam com diversos