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2 CALUNDUS COLONIAIS NO MUNDO ATLÂNTICO

2.3 A noção colonial de humanidade inviável

“Tão queimada, e destruída / te vejas, torpe cidade, / como Sodoma, e Gomorra / duas cidades infames./ [...] / Que eu espero entre Paulistas / na divina Majestade, / Que a ti São Marçal te queime, / E São Pedro assim me guarde” (MATTOS apud HANSEN, 1989, pp. 27-28).

As experiências humanas que se desenrolaram nos três primeiros séculos da colonização do Brasil produziram instituições religiosas, profissionais e lúdicas de características distintas daquelas pretendidas pela ortodoxia católica e pelos mais fiéis representantes do projeto colonial. Ao lado dos calundus coloniais, cabe destacar as irmandades religiosas, dentre as instituições que reuniram o maior número de associados e apoiadores, cujas atividades diversificadas atingiram o maior número de pessoas. A história das irmandades negras, sendo as mais numerosas aquelas dedicadas a cultuar e festejar Nossa Senhora do Rosário, é reveladora da capacidade dos afro-atlânticos de criar e manter instituições fundamentais para a coesão e solidariedade grupais e para enfrentar agruras de viver na iníqua sociedade escravista. Ainda que possam ter sido

[...] imaginadas como veículo de acomodação e domesticação do espírito africano, elas [as irmandades] funcionaram como meios de afirmação cultural, [...] como espaços de alianças inter étnicas ou pelo menos como canal de “administração” das diferenças étnicas na comunidade negra (REIS, 1991, p. 55).

Cumpriram funções sociais e políticas, sagradas e profanas, religiosas e recreativas, de ajuda mútua, como o de amparo aos enfermos e enterro dos mortos, construção e administração de templos, constituindo-se no meio mais eficaz de inserção social (SCARANO, 1978) de afro- atlânticos e uma das raras oportunidades que os escravizados e libertos “tinham de se organizar, encontrar, festejar e lamentar, com a aprovação dos senhores e da administração colonial” (SOUZA, 2002. p. 186)37 e, posteriormente, imperial. Foram as principais instituições

37 As confrarias negras começaram a ser criadas desde o século XV, em Portugal, e em meados do século XVI no Brasil, sendo que a imensa maioria delas foram dedicadas a Nossa Senhora do Rosário (SWETT, 2007, p. 142). A promoção anual de festas em homenagem a santa padroeira tinha como ponto alto a eleição e coroação de reis e rainhas negras. Eleições de reis negros foram registradas em Portugal, na Espanha, América portuguesa, na América espanhola, nas ilhas do Caribe e na América do Norte. Em todas as regiões “as comunidades negras escolheram reis que cumpriram papéis rituais e sociais e eram festejados com danças, músicas e teatralizações” (SOUZA, 2007, p. 181). Em geral, as festas eram antecedidas pelo trabalho das “folias” espécie de grupo musical que realizava o giro pelas casas da zona rural, das vilas e cidades visando arrecadar fundos e donativos (as

promotoras de festas, folguedos, danças e músicas praticadas pela maioria dos habitantes do território. Apesar de toleradas e, por vezes, incentivadas pelo sistema escravista, a história registra inúmeros conflitos entre as atividades lúdicas das irmandades e os poderes eclesiásticos e colonial (MACHADO NETO, 2008).

Em outras seções desta tese o tema das irmandades negras voltará a ser tratado. Cabe aqui pontuar a sua importância para ressaltar o fato de que enquanto as experiências da complexa rede humana construía e fortalecia instituições nas bases da sociedade, difundiu-se a ideia, entre letrados da Igreja e do poder temporal e seus agentes políticos e administrativos, de que nas terras do mundo Atlântico havia uma natureza paradisíaca, mas nela viveria uma humanidade monstruosa. “A ideia de humanidade inviável, de início atribuída ao índio, impregnaria toda a população da colônia, associando-se à própria condição colonial” (SOUZA, 1986, p. 64).

O engenheiro e militar francês Francisco Frezier, que esteve no Brasil entre 1712 e 1714, estimou que os africanos e afro-brasileiros representavam cerca de 90% da população da cidade da Bahia na época (TAUNAY, 1921, p. 344). Aquela população “selvagem”, “bárbara”, “impura” viveria “no estado de natureza que, como dizia Hobbes, era um estado contrário à instituição do Estado” (RIBEIRO, 1978, p. 18). Entre os agentes régios, difundiu-se “a certeza da relação entre a humanidade corrompida dos trópicos e a dificuldade de induzir a consciência do compromisso vassalar” (Ibidem, p. 19), ou seja, a maioria da população da colônia preferiria viver insubmissa ao poder e às leis emanadas da Coroa, deixando inquietos governantes e moralistas. Esta percepção foi particularmente aguda nas minas de ouro das primeiras décadas do século XVIII. Mesmo antes, pode ser verificada na Bahia. Os impactos da conquista e das operações da empresa colonial sobre aquela “humanidade inviável” produziram experiências sociais e culturais determinantes para as transformações que viriam a caracterizar a cultura brasileira.

O diplomata e poeta português D. Francisco Manuel de Melo, que viveu na Bahia, degredado, entre 1655-57, escreveu o soneto intitulado “Vária ideia, estando na América e perturbado no estudo por bayles dos bárbaros”38. Tinhorão (2008, p. 37) acredita que o estudo “esmolas”) para o financiamento das festas. Nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia há um título específico regulando essa atividade (VIDE, 1853, pp. 307-308), bem como outro título tratando da presença de “danças e folias” no interior dos templos, por ocasião das festas das irmandades (Ib. p. 269).

38 São dadas nove; a luz, e o sofrimento / Me deixão sò nesta varanda muda: / Quando a Domingos, que dormindo estuda, / Por hum nome, que errou, lhe chamo eu cento. // Mortos da mesma morte o dia, e vento, / A noite estava para estar sezuda; / Que desta negra gente, em festa ruda / Endoudece o lascivo movimento. // Mas eu que digo? solto o tão sublime / Discurso ao ar; e vou pegar da pena, / Para escrever tão simples catorzada? / / Vedes? não faltarà pois quem ma estime: / Que a palha para o asno, ave hè de pena, / Fallando com perdão da gente honrada. // Soneto publicado integralmente por Serra (2010, p. 128) de acordo com o texto fixado por VERDELHO.

e o sono do vate foram perdidos naquela noite, devido ao perturbador calundu: “Que desta negra gente em festa ruda/, endoudece o lascivo movimento”. Instigante análise da “catorzada” seiscentista do erudito português feita por Serra (2010) identificou no estado de espírito do poeta a “depressão do projeto ibérico de um Planeta Católico [...]. Depressão humoral melancólica, pois, pela falência do projeto evangelizador”. Este fracasso foi tematizado também por Baltasar Gracián, em livro publicado poucos anos antes da estada de D. Francisco Manuel de Melo no Brasil, no qual lamenta que “lo más del mundo no son sino corrales de hombres incultos, de naciones bárbaras y fieras, sin policía, sin cultura, sin artes y sin noticias” (SERRA, 2010, p. 135). O imaginário europeu – barroco – associava, como visto, o mundo ultramarino ao inferno (VAINFAS, 1989), ao purgatório dos degredados metropolitanos (SOUZA, 1986 e 2001); território onde viveria a “humanidade inviável”, povoada por corpos insurrectos. “Isto significa que em «negra gente», «bailes de bárbaros» ou «lascivo movimento» a linguagem – sons, letras, palavras, figuras – é utilizada [por d. Francisco Manuel de Melo] não para «iluminar», mas para colocar um espelho opaco diante da Natureza” (SERRA, 2010, p. 150).

No mundo barroco, a natureza é uma espécie de monstro marcada pela “mancha do pecado original que a faz carente do consolo das instituições. Negativa, a obscenidade é a sua semelhança malvada, derivada” (HANSEN, 1989, p.306). Um dos mais prestigiados comentadores da obra de D. Francisco Manuel de Melo, Prestage (1996, pp.279-280) refletiu sobre os termos em que se poderia avaliar a falência do Planeta Católico, na Bahia da época:

Predominava a gente de cor, pretos e mestiços, dos quais muitos se entregavam ao mister de valentões, de modo que um estrangeiro que aproava à Bahia disse dela que era terra em que se desconheciam por completo a subordinação e a obediência. A depravação dos costumes era notável, mesmo entre os religiosos, e chegava até aos conventos de freiras.

Evelina, Leitura Semidiplomatica, Índice de Formas e Concordâncias dos Sonetos das Musas Portuguesas de D. Francisco Manuel de Melo, tomando por base o livro Obras Métricas, 1665.

Figura 3 - No convento de Santa Clara, Bahia.

Fonte: LA BARBINAIS, Gentil de. Coleção José Mindlin, 1728.

O estigma de “humanidade inviável”, atribuído às populações diversificadas, diferenciadas em termos morais, sociais, históricos e culturais, que se recusavam a adotar bovinamente os ditames do poder colonial e senhorial, evidencia a impossibilidade da dominação absoluta sobre tanta gente que, particularmente em termos demográficos, sempre foi imensamente maior do que a população branca formada pela casta europeia e de “brancos da terra”. Toda aquela gente agia e reagia reelaborando costumes, relações de parentesco, subvertendo e/ou adaptando-se às novas regulações da vida social, todos processos marcados

por conflitos e formas materiais e simbólicas variadas de hegemonia e negociação. Tudo estava em reformulação profunda: a fé religiosa, os modos de vida, as

[...] leis, instituições e ideologias - tudo o que, em sua totalidade, compreende a “genética” de todo o processo histórico, sistemas que se reúnem todos, num certo ponto, na experiência humana comum, que exerce ela própria (como experiências de classes peculiares) sua pressão sobre o conjunto (THOMPSON, 1981, p. 189).

As formações sociais, históricas e culturais são atravessadas simultaneamente pelas experiências diversificadas de sentimentos, singulares e/ou cruzados, de todas os estratos, grupos e classes sociais. As experiências humanas são vivenciadas “na cultura, como normas, obrigações familiares e de parentesco, e reciprocidades, como valores ou (através de formas mais elaboradas) na arte ou nas convicções religiosas” (Ibidem) e, deste modo, fundamentam a produção de consciências afetivas e morais. Experiências e consciências diferenciadas dadas as condições materiais de existência, mas que, de modos insuspeitos, poderiam também ser comunicadas e simbolicamente interconectadas.

A suposta devassidão dos costumes da vida em colônia foi descrita por viajantes e moralistas, para retratar o comportamento observado em vários níveis sociais. Foi no convento das freiras da Ordem de Santa Clara, no Desterro, cidade da Bahia, que o navegante Le Gentil de La Barbinais passou a noite de Natal de 1717, na companhia do vice-rei Marques de Angeja. De acordo com seu relato, no interior da igreja, antes da encenação de uma “farsa” com episódios satíricos sobre “aventuras galantes de oficiais da corte vice-real”, ocorreu número de dança e música levado a cabo pelas mesmas jovens religiosas que

[...] surgiram numa alta tribuna aberta, cada qual com o seu instrumento: guitarras, harpas, pandeiros, violas. [...] Todas as freiras então se puseram a cantar as cantigas que com tantos cuidados tinham estudado. Cada qual recitava a sua e esta diversidade de cantigas e vozes formava um charivari que reunido ao dos instrumentos, em absoluta dissonância nos dava furiosa vontade de rir. Cantavam e dançavam com tal algazarra que cheguei a crer estivessem possuídas de algum espírito fátuo [...] (cit. TAUNAY, 1921, pp. 370-371).

Depois de viver três meses na Bahia, La Barbinais deixou-nos a narrativa – para alguns, exagerada – de uma cidade dominada pela devassidão. O vice-rei Marquês de Angeja seria implacável com criminosos, porém tolerante quanto aos costumes religiosos e festivos. Em fevereiro de 1718, La Barbinais assistiu a uma entusiasmada comemoração em louvor a São Gonçalo de Amarante, que reuniu “imenso poviléu” durante três dias, em torno da igreja do

santo, nos arredores da cidade, com muita dança “ao som de guitarras”39. O vice-rei compareceu

com a sua corte e, assim que chegou ao adro do tempo, foi suspenso e carregado no ar para dentro da igreja, vendo-se obrigado a dançar e pular: “violento exercício que não lhe ia nada bem com a idade e posição; mas seria uma impiedade digna do fogo se não prestassem essa homenagem ao santo de Amarante” (TAUNAY, 1921, p. 372).

O vice-rei cumpriu os ritos da festa do santo da fertilidade e das “marafonas”, que reunia gente de “todas as classes”, como então se dizia para indicar a presença de pretos e brancos. Segundo o relato, no interior da capela se via “padres, mulheres, frades, fidalgos e escravos saracotearem como loucos, todos misturados e a berrar Viva San Gonzaléz d’Amarante (sic!)” (Ibidem). Os devotos pegaram uma “estátua do santo de cima do altar e começaram a jogá-la uns para os outros “exatamente o que outrora obravam os pagãos num sacrifício especial anualmente oferecido a Hércules, cerimonia na qual fustigavam e cobriam de injúrias a estátua do semideus”” (TAUNAY, 1921, p. 373). Nos bosques em torno da ermida armou-se uma espécie de festa de largo: “se espalhavam numerosas barracas para onde haviam concorrido todas as marafonas da Bahia. O dia todo consagrou-o um ressoar de gritos de alegria e cordas de harpas e guitarras” (ib.). O navegador francês assistiu também ao giro de folias das irmandades, que circularam por todas as freguesias nas sextas-feiras do período da quaresma; e acompanhou a micareme na noite de quinta-feira santa, quando teve lugar um desbragado “carnaval dos portugueses” (ib., p. 375). La Barbinais havia visitado também algumas colônias espanholas, onde viu “o mesmo espírito libidinoso”, sentenciou: “se eram de espantar tantos abusos nas colônias, mas difícil ainda remediá-los” (ib).

O contemporâneo Nuno Marques Pereira compartilhava da mesma opinião de La Barbinais, quanto ao domínio da Bahia “pelas grandes devassidões de danças, músicas, e farsas tão desonestas, ainda dentro das igrejas, e procissões, que se fazem pelas ruas públicas, indo [os participantes das procissões] encaretados, provocando muita lascívia, como todos os anos se está vendo, e experimentando usarem estes tais dançantes bailarinos” (PEREIRA, 1939, pp. 109-110). Para o Peregrino da América a suposta ruína moral católica do Estado do Brasil era consequência do relaxamento dos costumes, que proporcionava a disseminação de “feitiçarias”, calundus e “modas profanas”40: no “profano das modas não havia negra, nem mulata, nem 39 Silva Campos (1930, pp. 396-398) refere-se à antiga ermida em louvor a São Gonçalo no alto do morro acima da praia do Rio Vermelho. É provável que seja o mesmo local da capela onde funciona atualmente a Universidade Católica do Salvador (UCSAL), segundo parecer do historiador Cândido da Costa e Silva, em comunicação pessoal.

40 PEREIRA, Compêndio Narrativo do Peregrino da América em que se tratam vários discursos espirituais e morais, com muitas advertências e documentos, contra os abusos que se acham introduzidos pela malícia diabólica no Estado do Brasil. Lisboa, 1728.

mulher dama que o não cantasse” (PEREIRA, 1728, p. 228). A generalização daquelas cantorias nas vilas e cidades, alcançando gente de diferentes condições sociais, foi por ele atribuída à criação e ao ensino promovidos pelo Demônio, que seria “grande poeta, contrapontista, músico e tocador de viola e [que] sabe inventar modas profanas para ensinar aqueles que não temem a Deus” (ib.). Na época a palavra “moda”, em Portugal e no Brasil, era usada para designar as canções populares (SANDRONI, 2001, p. 41).

A moderação do Marquês de Anjeja no trato com os usos socioculturais de escravizados e da plebe foi substituída pela tirania do seu sucessor, Vasco Fernandes César de Menezes (1720-1735), o Conde de Sabugosa, que tentou conter o “relaxamento dos costumes” e impor o fechamento do projeto colonial adotando a repressão contra folguedos e ritos de escravos, libertos, mestiços, índios e caboclos. Amante de música erudita, mandou construir casa de ópera em Salvador e adotou medidas contra práticas afro-brasileiras, festas e folguedos populares

[...] que se costumavam fazer pelas ruas publicas em dia de São Gonçalo, de homens brancos, mulheres e meninos, e negros com violas, pandeiros, e adufes, com vivas e revivas São Gonçalinho, trazendo o santo pelos ares, que mais pareciam abusos, e superstições, que louvores ao santo, [o conde de Sabugosa] as mandou proibir por um bando, ao som de caixas militares com graves penas contra aqueles que se achassem em semelhantes festas tão desordenadas (PEREIRA, 1939, p. 114).

Sabugosa investiu, também, contra “as demasias do entrudo, os excessos das festas de São João Baptista” (Ib.), e tentou evitar a proliferação dos calundus e das práticas “dos feiticeiros”, determinando “que se não alugassem casebres aos negros cativos pelas consequências que disso resultava de prejuízo à república” (ib.). Tais “prejuízos” e práticas tidas por satânicas e obscenas foram tematizados pelas sátiras de Gregório de Matos que soube, com maestria, fazer da poesia “sanção divina dos costumes [...] [em favor] de uma utopia política – a correção da Cidade e o bem comum de um mundo em que o próprio obsceno não teria lugar” (HANSEN, 1989, p. 307): “Tão queimada, e destruída / te vejas, torpe cidade, / como Sodoma, e Gomorra / duas cidades infames./ [...] / Que eu espero entre Paulistas / na divina Majestade, / Que a ti São Marçal te queime, / E São Pedro assim me guarde” (Apud HANSEN, 1989, pp. 27-28).

Ao satirizar e demonizar as práticas religiosas, recreativas, morais e afetivas dos africanos e seus descendentes, elites religiosas, intelectuais e senhoriais buscavam estabelecer mecanismos de controle e tentar garantir e sustentar as bases “da ideologia escravista: a ideia de que a escravidão era moralmente legítima porque tirava os africanos do paganismo e os conduzia à salvação por meio da cristianização e da purgação dos pecados” (MARCUSSI, 2015,

p. 370). Nestes termos, os calundus, as danças e músicas profanas, as irmandades negras que logravam ficar fora do controle absoluto da hierarquia eclesiástica, assim como os quilombos, revoltas e fugas tendiam a ferir e às vezes até abalar alguns dos pilares ideológicos do escravismo. Em consonância com o projeto colonial católico, o poeta Gregório de Mattos percebia a população preta e mestiça – além dos cristãos novos e religiosos libertinos – como habitantes que impediriam, inclusive, a produção citadina de uma “alma virtuosa”, pois seriam “bestiais” e “ridículos”, logo, alvos contumazes da maledicência satírica (HANSEN, 1989, pp. 312-323). Encarnando a persona da Cidade, que estaria sendo vilipendiada por esses seres desclassificados, o poeta barroco detrata os calundus e os costumes afro-brasileiros (cit. PERES, 1967, pp. 69-70):

Que de quilombos que tenho Com mestres superlativos, Nos quais se ensina de noite Os calundus e feitiços Com devoção os frequentam Mil sujeitos femininos, E também muitos barbados Que se prezam de Narcizos. Ventura dizem que buscam (Não se viu maior delírio) Eu que os ouço e vejo, calo Por não poder diverti-los. O que sei é que em tais danças Satanaz anda metido,

E que só tal padre mestre Pode ensinar tais delírios. Não há mulher desprezada Galan desfavorecido, Que deixe de ir ao quilombo Dançar o seu bocadinho. E gastam belas patacas Com os mestres do Cachimbo, Que são todos jubilados Em depenar tais patinhos. E quando vão confessar-se, Encobrem aos padres isto, Porque o tem por passatempo, Por costume ou por estilo. Em cumprir as penitências Rebeldes são e remissos,

E muito pior si as tais São de jejuns ou cilícios. A muitos ouço gemer Com pesar muito excessivo, Não pelo horror do pecado, Mas sim por não consegui-lo.

O poema sintetiza diversas observações sobre participantes e suas experiências compartilhadas nos calundus, tidos por “danças supersticiosas” realizadas nos quilombos, em geral lugares afastados das áreas urbanas, que acolhiam negros fugidos e onde os Ngánga, “mestres superlativos”, “mestres do Cachimbo” ensinavam as danças e realizavam as práticas de cura. Eram frequentados por homens e mulheres, gente pobre e por pessoas possuidoras de “belas patacas” que iam ao calundu em busca da boa fortuna, espiritual, moral, social, sexual, pagando pelos serviços divinatórios e curativos dos mestres. Tal como pregava a lei católica e os seus mensageiros, o poeta associou os calundus ao satanismo, considerando ato pecaminoso a participação neles, embora admitisse que parte dos frequentadores, ainda que professassem a fé católica, os veriam como diversão, costume da cidade, modo de expressão de parte dos seus moradores.

A construção poética de Gregório de Mattos encontra correspondências factíveis na experiência humana vivida na realidade da Bahia da época. D. Maria, africana, forra, habitante da sede do vice-reino, era bastante solicitada “para curar doentes por meio de uma dança ritual” (FERREIRA, 2016, p. 112), segundo denúncia feita ao Santo Ofício, em 1685, pelo frade carmelita Domingos das Chagas.

D. Maria se punha a bailar “ao som de instrumentos a que chamam tabaques”, derramando vinhos e outros licores pela casa e, depois de algum tempo, caía amortecida. Ao levantar, entoando voz diversa da sua, dizia as enfermidades das pessoas que com ela se consultavam. D. Maria explicava aos doentes que aquela voz que falava através dela era de um espírito (FERREIRA, 2016, p. 113).

Uma das inúmeras pessoas que recorreram aos serviços da africana d. Maria foi a senhora branca Maria da França, sogra de Francisco Pinheiro, capitão e engenheiro que atuava na Cidade. No depoimento que prestou aos inquisidores, o genro justificou o pedido de auxílio à africana para restabelecer a saúde de Maria da França, alegando que o tratamento com os médicos a quem recorrera teria sido ineficaz.

O mesmo frade carmelita Domingos das Chagas, que denunciou a preta d. Maria