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Chulas, lundus e viola na Guerra de Independência da Bahia

4 FESTAS E REVOLTAS: DO LÚDICO ÀS LUTAS

4.3 Chulas, lundus e viola na Guerra de Independência da Bahia

Na noite de 23 de dezembro de 1822, em Salvador, um grupo de militares de baixa patente e seus amigos estavam reunidos na casa do pardo forro Marcos Pinheiro de Queirós “à rua do Caquende, em sociedade e ajuntamento com toques de viola”. Ao avistarem o cabo de milícias Jose Dias Macieira, gritaram: “mata que é maroto”! O cabo escapou, mas pouco depois voltou ao local, acompanhado pela patrulha do Batalhão N. 1. Instrumentistas e parceiros da festa foram cercados, e nove deles presos, acusados pelo cabo de estarem promovendo um “motim”144. A primeira testemunha, o sargento Luiz Ferreira Sobral, informou ter encontrado,

no “mesmo sítio [...], uns poucos de homens sentados à porta de uma casa tocando viola e outros dentro da mesma”. Outra testemunha, o furriel Domingos Nunes Ramos, acrescentou que no 144 Os presos foram Luis Gonzaga, do 5o. Regimento de Milícias, João Mauricio, do 4o. Regimento, Daniel Alexandrino, soldado de 2a. Linha (exército) e Izidro dos Santos, desertor do 5o. Regimento. Com eles estavam os paisanos Manoel Luís, Francisco da Silva, José Pedro e Zeferino Brás. Mata-maroto: Processo contra militares e paisanos acusados de atacar o cabo de milícias José Dias Macieira, gritando “mata que é maroto”. Cópias de Devassas – processos datilografados. APEB Seção Colonial e Provincial. Ano 1821-23. Maço 6023

“ajuntamento de homens tocando viola na porta” da casa, alguns homens estavam “sentados e outros a pé [...] fugindo outros que estavam dentro da casa”. A rua do Caquende ficava na freguesia de Santana, a cerca de 2 km do centro da cidade. O “ajuntamento” de soldados – quatro da ativa e um desertor – tocando viola na véspera de Natal demonstra que nem a guerra, nem a carestia dos gêneros alimentícios “e ameaça de fome que a acompanhou foram impeditivas para que milicianos, desertores e outros conhecidos se reunissem para celebrar, de quando em vez, suas alegrias ou quiçá afogar as mágoas que os conflitos entre Portugal e Brasil suscitavam” (SOUZA FILHO, 2008, p. 116). Considerando o período do evento, 23 de dezembro, há a possibilidade de aquele grupo de soldados-músicos e festeiros constituírem uma espécie de rancho de Reis, que anualmente reúne pessoas para cantar, tocar e dançar em homenagem ao nascimento do Deus Menino, e que utiliza instrumentos de cordas e outros, percussivos, a exemplo de pandeiros. Se foi este o caso, o repertório musical e coreográfico dos festeiros deveria incluir chulas, lundus e sambas. Como abordado no próximo capítulo, soldados e outras pessoas das baixas camadas sociais tinham, entre seus costumes, naquela época, a cantoria de sambas acompanhados de viola.

O fato de a festa ter reunido soldados na casa de uma pessoa saída da condição de escravo – o forro pardo Marcos Pinheiro – denota que se tratava de um grupo situado no piso da pirâmide social145. As bases das forças militares e policiais – exército e milícias – eram

constituídas por gente oriunda da “ínfima plebe”146. “Maroto” era o termo pejorativo usado para

designar os portugueses. O grito “mata que é maroto” ressoava quase todos os dias nas ruas da cidade, indicando que parte da população de filhos da terra, que permaneceu em Salvador desde o início da guerra, compartilhava sentimentos antilusitanos, ainda que fossem milicianos integrantes de regimentos comandados por oficiais portugueses147.

145 As testemunhas informaram que várias pessoas que estavam no interior da casa aproveitaram a confusão e fugiram pelo quintal dos fundos. É possível que entre elas houvesse mulheres.

146 Entre as milícias havia os regimentos de pretos, pardos e brancos. O 1º Regimento era formado por portugueses, o 2º e o 5º Regimentos por brancos brasileiros, o 3º. Regimento era o de pretos e o 4º Regimento era formado pelos pardos. Para uma visão aprofundada do assunto ver KRAAY, Hendrik. Política racial, estado e forças armadas na época da independência: Bahia, 1790-1850. São Paulo: Hucitec, 2011.

147 Para o resumo e análise de fatos relacionados à guerra da independência na Bahia ver, p. ex., KRAAY, H. “Muralhas da Independência e liberdade do Brasil: a participação popular nas lutas políticas (Bahia, 1820-1825)” in MALERBA, Jurandir (org.). A independência Brasileira – Novas Dimensões. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006; REIS, J. J. “O jogo duro do 2 de julho: o “Partido Negro” na Independência da Bahia” in REIS & SILVA, Negociação e conflito – a resistência negra no Brasil escravista, São Paulo: Companhia das Letras, 1989; GUERRA FILHO, Sergio Armando Diniz. “O povo e a guerra – participação das camadas populares nas lutas pela independência do Brasil na Bahia”, dissertação de mestrado, PPGH/UFBA, 2004; SOUZA FILHO, A. R. “Projetos políticos na Revolução Constitucionalista na Bahia (1821-1822)” in Almanack Braziliense, N. 07, maio 2008; e FRANÇA, A. D. P. da (org.). Cartas Baianas – 1821-1824. São Paulo: Editora Nacional; Rio de Janeiro: UERJ, 1980.

Fora, maroto, fora, Viagem podem seguir Brasileiros já não querem Marotos mais no Brasil

(PEREIRA DA COSTA, 1907, p. 283).

A cantoria de Reis foi prática importada de Portugal. No Brasil, os Reisados foram reelaborados e incorporados, desde os primeiros séculos da colonização, aos costumes afro- indígenas. Sentimentos antilusitanos professados por festeiros natalinos pobres devem ser compreendidos no contexto em que a lusofobia funcionou como desaguadora de profundas tensões que tornavam a vida dos setores sociais subalternos ainda mais difíceis, particularmente naquela conjuntura de profunda crise econômica e política.

A prosperidade iniciada na década de 1790 chegou ao fim às vésperas da guerra pela independência (REIS, 1976, p. 351). Esta, por sua vez, desorganizou a produção e circulação de mercadorias e colaborou com a depressão econômica que caracterizou a economia baiana durante as duas décadas depois da guerra. Talvez pelo fato de os mais ricos comerciantes da Bahia serem portugueses – os ‘praístas’148, que controlavam o comércio a atacado e o varejo –

, o lusitano tornou-se uma espécie de “bode expiatório” dos conflitos internos manobrados habilmente pelas elites no poder (REIS, 1976, p. 343). No lugar da luta da maioria pobre contra a minoria rica, prevaleceu o combate dos “brasileiros” contra os “portugueses”, fossem estes pobres ou ricos.

Marinheiro pé de chumbo, Calcanhar de frigideira, Quem te deu a confiança De casar com brasileira?

(PEREIRA DA COSTA, 1907, p. 283).

A criação poética e musical popular recebe influxos do contexto político e econômico. Os folcloristas lograram coletar fragmentos poéticos relacionados às lutas políticas travadas no Brasil nos séculos XVIII e XIX (ib., p. 282). No caso das lutas pela independência, “a musa popular não foi insensível aos acontecimentos. As classes oprimidas tiveram ocasião de derramar a sua bílis contra os corcundas e marinheiros e fazer a apoteose dos vultos mais simpáticos, cuja força as admirava” (PEREIRA DA COSTA, 1907, p. 283). Silvio Romero coletou no meio popular e publicou a Conversa política entre um corcunda e um patriota (ROMERO, 1897, pp. 113-118) e Pereira da Costa referiu algumas quadras escritas na época

148 ‘Praísta’ era termo usado para designar os ricos comerciantes portugueses que dominavam o grande comércio de Salvador. Compunham o que também era chamado de “partido da Praia”, alusão ao nome da freguesia da Conceição da Praia, na qual estava a praça comercial da cidade.

da revolução pernambucana de 1817 e Confederação do Equador de 1824 (PEREIRA DA COSTAS, 1907, pp. 284-288).

(...)

P – Tratemos da Independencia C – Isto é um passo muito errante: Dom Pedro no Brasil

Não pode ser imperante P – Por que? Ele não é Bragança? C – Se o Rei ainda é vivo

Não pode haver uma herança. P – Já não posso, seu Corcunda, Suas loucuras calar,

Quer por gosto, quer por força, Ouça-me agora falar.

Diga-me homem sem brio Amante do cativeiro Somos terra, somos gado Que dom Pedro seja herdeiro?

(...) (ROMERO, 1897, p. 116).

Os principais fatos da conjuntura política interferiam no estado de ânimo de parcelas da população, tanto a letrada quanto a iletrada. A notícia da Revolução do Porto chegou à Bahia em fins de outubro de 1820, aumentando o interesse do tema “constitucional” entre civis e militares, produzindo intenso debate entre “patriotas de classe baixa, mais radicais ou exaltados, e os mais moderados de classe média e alta” (KRAAY, 2006, p. 312). Era intensa a circulação de pasquins em manuscritos, pregados nas esquinas, enquanto as sátiras e os epigramas picantes corriam de boca em boca (PEREIRA DA COSTA, 1907, p. 284).

(...)

P – Faça-me a honra apear Venha me dar um clarão Só o senhor pode dizer-me O que é a Constituição.

(...)

C – Não querem ter rei, nem roque, E menos religião

Por isso desprezaram O nosso Rei dom João. A lei deles é anarquia Da tal Constituição

(...) (ROMERO, 1897, p. 114).

Cartas da Bahia, recebidas por um espião policial no Rio de Janeiro, relatavam que, em dezembro de 1820, entre os baianos “só se fala da Constituição” (KRAAY, 2006, p. 312). Ouviam-se com frequência “canções políticas” nas ruas, enquanto publicamente se liam periódicos portugueses “entre grupos de trinta a quarenta pessoas e ao aplauso dos ouvintes,

tanto burgueses [isto é, civis] como militares” (KRAAY, 2006, p. 312). No primeiro momento, a revolução liberal portuguesa havia criado expectativa positiva nas elites baianas – e também entre federalistas e republicanos como os “exaltados” João Primo e Cipriano Barata; este, veterano revolucionário da sedição de 1798, de atuação destacada na revolução pernambucana de 1817 e eleito deputado às Cortes de Lisboa em setembro de 1821. Depois de rompidos os laços com a Corte Joanina, instalada no Rio de Janeiro, em 10 de fevereiro de 1821, a junta de governo da Bahia, eleita, convocou voluntários para defender a província contra a reação do Príncipe Regente. Houve baianos que assentaram praça com fins explicitamente políticos, como foi o caso do pequeno comerciante João Primo, que declarou, posteriormente, ter se alistado como “soldado voluntário a fim de rogar a tropa do país para não anuir no desembarque dos lobos lusitanos” (KRAAY, 2011, p. 184).

(...)

Quando a voz da pátria chama, Tudo deve obedecer;

Por ela a morte é suave Por ela cumpre morrer.

(...) (PEREIRA DA COSTA, 1907, p. 282)149.

A conjuntura mudava velozmente. A guerra tornou-se incontornável quando ficou evidente que a maioria dos deputados portugueses das Cortes de Lisboa movimentava-se para o retorno do Brasil à condição colonial, anulando, inclusive, mudanças iniciadas pelo então Príncipe Regente d. João, durante o período que a família real morou no Brasil.

Na Bahia não se usa mais roupa no quarador por causa da tropa lusitana

olho viu e mão andou

(PEREIRA DA COSTA, 1907, p. 450).

Com o título “Estava em fora de portas”, o fragmento de poema acima foi publicado no conjunto de modinhas, cantigas, lundus e chulas do Folk-lore pernambucano. Acredita o folclorista que deve ter sido composto durante a guerra da independência da Bahia, quando Salvador ficou ocupada pelas “tropas lusitanas” entre fevereiro de 1822 e junho de 1823. O verso “olho viu e mão andou”, explica Pereira da Costa, significa “furto”, sentido semelhante ao que se encontra na estrofe “Oração de São Raimundo / os olhos no céu / e a mão no mundo”, reelaborada na letra da canção pelos versos “No meio do mundo/ olhando pr’a o céu”. “Estava em fora de portas” – o poema seria cantado como chula ou lundu - apresenta mais associações

com a vida na cidade durante a guerra, como o toque de recolher no final da tarde, e transmite uma percepção irônica do cotidiano vivido por parte de seus habitantes:

Estava em fora de portas Sentado no areal

E quando bateu cinc’oras Ouvi corneta tocar Yayá está doente? Está sim senhô Yayá me disse Yayá me confessou Trabalha o feio Pr’a o bonito comedor Ai cascaio

Cascaio meu caboré Quem quiser moça bonita Diga olê

Quem quiser mulatinha Bata com o pé

Eu comi cação Arrotei xaréu No meio do mundo Olhando pr’a o céu [...]

(PEREIRA DA COSTA, 1907, pp. 449-450).

No período em que a cidade ficou sob controle das tropas portuguesas, esteve seriamente afetada a garantia da segurança dos moradores, generalizando-se, por exemplo, furtos de objetos pessoais. “Fatal política tem sido a da conservação desta tropa [portuguesa]: roubos, insultos constantes é o que cabe na partilha desta cidade malfadada” (FRANÇA, 1980, p. 67), escreveu a senhora de engenho Maria Bárbara Garcez, em 28 de junho de 1822, e completou: “A facção mercantil [os praístas] cada dia mais insolente e temível. Daquela Praia, foco do mal, sobem nossos desgostos. Que gente! Os ratos do porto com o poder na mão. [...] [C]om estas notícias, só se vê gente fugindo, gente tremendo” (FRANÇA, 1980, p. 67).

Apesar dos rasgos poéticos e musicais flagrados na época da guerra, deve-se admitir que aqueles foram momentos fugazes.

A batalha pela sobrevivência, por uma porção de farinha, por um emprego, numa época de crise econômica em que altos preços e baixos salários se combinam com a escassez de produtos de primeira necessidade, levou, pouco a pouco, os mais pobres a se cobrirem com bandeiras como a "República" ou a "Federação" (REIS, 1976, p. 343).

A exacerbação dos conflitos políticos e sociais no pós-guerra produziu intensa mobilização e iria caracterizar o período 1820-1840, quando foram registradas mais de vinte revoltas militares e federalistas, distúrbios populares urbanos e rurais e revoltas escravas (REIS,

1976, p. 347). Ao investigar a participação popular nas lutas políticas da Bahia, entre 1820- 1825, a pesquisa histórica vem constatando que escravizados, libertos, livres pobres e pessoas das camadas médias, a exemplo de artesãos, pequenos agricultores, pequenos comerciantes atuaram em várias frentes, particularmente como soldados e oficiais das forças patrióticas formadas para expulsar as tropas portuguesas150.

Mas haveria um projeto político articulado pelos grupos populares? Esta questão é analisada pelos especialistas (KRAAY, 2006; REIS, 1989), que identificaram, pelo menos, três “partidos” em disputa na época: o que reunia os ricos portugueses da Praia; o dos baianos endinheirados; e o dos republicanos e federalistas radicais, que politizavam o debate público e tentavam levar a revolução liberal para além dos interesses dos ricos proprietários151. O

detalhamento das distintas posições está fora do foco desta tese, mas entre os exaltados e os africanos havia também muita animosidade. Cipriano Barata condenava as táticas insurrecionais dos africanos islamizados. Porém, uma das prisões de Barata deu-se sob a acusação de “haitianismo”, ou seja, de partidário do programa da revolução do Haiti, o que ele sempre negou. Enquanto os ‘praístas’ portugueses e os ricos senhores baianos constituíam parcialidades politicamente consistentes, a imensa maioria da população da Bahia, formada por escravizados, libertos e livres africanos e brasileiros pobres e camadas médias, era muito mais heterogênea, em termos sociais, culturais e políticos.

A historiadora Gladys Sabina Ribeiro verificou que escravizados e pobres livres do Rio de Janeiro, nas décadas de 1820 e 1830, “tinham uma ideologia própria, elaborada a partir das suas vivências e dos conflitos naquelas sociedades” (RIBEIRO, 2002, pp. 248-250). Na capital do Império, os diversos “grupos ‘de cor’ aparecem sempre unidos”, nas lutas políticas da época, “ao contrário do que se passava na Bahia, onde distinções entre africanos e crioulos (e entre escravos e livres) dividiam as classes populares” (cit. KRAAY, 2006, pp. 308-309). Porém, mesmo que haja inúmeros exemplos, na Bahia, de divisões entre escravizados e livres de camadas diversas, há indícios de que poderia também haver articulações entre eles.

A senhora do engenho Aramaré, Maria Bárbara, em 13 de abril de 1822, informou ao seu marido Luís Paulino, deputado nas Cortes lisboetas pela Bahia, “que a crioulada da Cachoeira fez requerimentos para serem livres. [...] Aviso-te mais, que, em nome dos cativos daqui, há aí [em Lisboa] quem meta às Cortes requerimentos” (FRANÇA, 1980, p. 35),

150 Sobre a participação popular nas lutas pela independência no Maranhão ver Matthias Röhrig Assunção (1990, 1999 e 2003); Pernambuco (CARVALHO, 1996, 2002a e 2000b); Bahia (REIS, 1989; 2003), (KRAAY, 2006), (GUERRA FILHO, 2004); Rio de Janeiro (RIBEIRO, 2002).

evidenciando que a “crioulada da Cachoeira” contava com aliados na Bahia, que ajudaram na preparação dos requerimentos; e em Lisboa, onde poderiam torná-los acessíveis aos parlamentares. A rebeldia de brasileiros escravizados, libertos, livres e seus aliados ameaçava ruir o pacto paternalista que caracterizava as relações sociais escravistas:

Comparados aos africanos, os escravos nascidos no Brasil eram melhor tratados – tinham certos privilégios ocupacionais, podiam mais facilmente constituir famílias, adquiriam a alforria em maior número. Além disso, eles tinham algum trânsito nos modos de ser, ideias, costumes, idioma e anseios dos homens livres da Bahia. Sentiam-se, eram brasileiros, e por isso achavam natural que pudessem se libertar junto com o país (REIS, 1989, p. 90).

Observador da cena política da época, o barão francês Roussin constatou que até mesmo africanos ladinos estavam sendo contagiados pelo liberalismo: “É já certo que não somente os brasileiros livres e crioulos desejam a independência política, mas mesmo os escravos nascidos no país ou importados há vinte anos, pretendem-se crioulos brasileiros e falam de seus direitos à liberdade” (cit. REIS, 1989, p. 94).

Para esses escravos, o regime constitucional significava mais do que direitos políticos para os livres, e alguns chegaram a cogitar a abolição – ou pelo menos sua própria liberdade – como um resultado possível das lutas pela independência. De fato, em todos os cantos do Brasil, historiadores encontram evidências da crença entre os escravos de que seriam libertados em decorrência do regime constitucional ou da proclamação da independência (KRAAY, 2006, p. 318).

D. Maria Bárbara sintetizou o pensamento das elites senhoriais contra o desejo de liberdade dos escravizados nos seguintes termos: “Estão tolos, mas a chicote tratam-se” (FRANÇA, 1980, p. 35). Com o que concordava o seu irmão, José Garcez Pinto de Madureira: “Os que não são nada e que querem pilhar o bom buscam a anarquia ... Se faltasse a tropa, eram outros São Domingos” (ib., p. 42), uma referência à Revolução do Haiti. Há indícios de que entre os patriotas soldados, milicianos pretos e pardos e escravos derrotados militarmente nos conflitos de 19, 20 e 21 de fevereiro de 1822, em Salvador, existiam partidários dos movimentos políticos republicanos que sacudiram Pernambuco em 1817 e, posteriormente, em 1824 (KRAAY, 2006, p. 314).

As forças patrióticas formadas no Recôncavo, ao longo do ano de 1822, que estiveram na linha de frente da guerra, eram formadas, sobretudo, pela gente “de cor”, incluindo muitos escravizados que fugiram e se alistaram nas tropas de Labatut152. Porém, as divergências

152 Ver, p. ex. KRAAY, H. “‘Em outra coisa não falavam os pardos, cabras e crioulos’: o “recrutamento” de escravos na guerra da Independência da Bahia” in Revista Brasileira de História, v. 22, n. 43, São Paulo, 2002.

internas eram muitas, e o poder econômico, político, ideológico e militar dos senhores falou mais alto, como ficou demonstrado durante e depois da guerra da independência, quando os grandes proprietários do Recôncavo, que sustentaram o Exército Pacificador procuraram, de maneiras diversas, reduzir a ameaça potencial do temido “partido negro” (REIS, 1989, p. 90). Algumas medidas repressivas adotadas pelas elites senhoriais demonstram que a intensa relação de africanos e afro-brasileiros com atividades lúdicas musicais e coreográficas continuaram sendo praticadas no Recôncavo, mesmo no período da guerra. Em novembro de 1822, o Conselho Interino decidiu manter tropa de reserva para policiar os distritos açucareiros, montou operações de desarmamento dos escravos e controle de sua circulação, instituiu toque de recolher, ordenou repressão a quilombos. Os conselheiros recomendaram às autoridades policiais do Recôncavo, inclusive, que proibissem “severamente que estes [escravos] se reúnam, a pretexto de funções, ou tabaques (grifos nossos), e vigiando muito escrupulosamente sobre a conduta dos mesmos” (cit. REIS, 2002, p. 115). Como se vê, além de temer revoltas escravas, os senhores “brancos da terra” buscaram impedir a diversão dos escravizados, inclusive para evitar fatos como o que ocorreu em Cachoeira, naquele mesmo 1822, quando o crioulo Antônio, escravo do coronel Rodrigo Antônio Falcão, matou o crioulo José Paixão, escravo da viúva Maria Rosa Santa Rita, em frente a uma taverna de Cachoeira, durante um lundu de pretos. “Resultado: um escravo morto, outro preso, prejuízo para ambos os senhores, menos dois escravos na força de trabalho” (REIS, 2002, p. 115).

Depois da expulsão das tropas portuguesas, a atenção dos senhores voltou-se para as medidas de contenção da rebeldia153 dos escravizados, dos libertos e dos soldados. Em 31 de

julho de 1823, o governo provisório emitiu ordem para retomar os meios de captura de negros fugidos, determinando o retorno à cena da figura do capitão-do-mato (ib., p. 97). Naquele contexto, os relevantes serviços prestados pelas “classes de cor” às lutas pela independência passaram a ser vistos pela classe senhorial como um problema grave. Muitos soldados-escravos continuaram armados. O governo imperial ordenou que a província providenciasse a alforria aos que permaneciam servindo como soldados. A medida, por outro lado, tornava o exército demasiadamente negro para o gosto das elites locais. O crescimento das fugas, o banditismo e a lusofobia ampliaram a insegurança geral (KRAAY, 2006, p. 323).

153 Depois do novo estado independente, as estruturas socioeconômicas coloniais permaneceram inalteradas. Nos anos que se seguiram à guerra, do ponto de vista do poder político e econômico das elites, houve um retorno ao status quo anterior. A independência política foi grandemente limitada pela dependência econômica. “Até mesmo os comerciantes portugueses, [...] líderes da reação colonialista, e principal alvo de críticas por parte da elite emancipadora, mesmo estes, mantiveram, grosso modo, suas antigas posições de agentes comerciais” REIS, 1976, p. 342). A pesquisa histórica vem constatando o mesmo fenômeno de “manutenção das estruturas econômicas