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3 A HISTÓRIA DA TRADUÇÃO DA BÍBLIA NO

5.9 O CAMELO E O FUNDO DA AGULHA

Vejamos a tradução interlinear do grego para Mateus 19:23-26, conforme apresentada por Gomes e Olivetti (p. 79-80):

Então Jesus disse aos discípulos dele: “Em verdade digo a vós que dificilmente um rico entrará em o reino dos céus. De novo, digo a vós: Mais fácil é um camelo por um buraco de uma agulha entrar do que um rico em o reino do Deus entrar”. Tendo ouvido [isso] os discípulos dele, ficaram perplexos muito, dizendo: “Quem então pode ser salvo?” Fixando o olhar [neles], Jesus disse-lhes: “Para [os] homens, isto impossível é, para, porém, Deus, tudo (é) possível”.

Desde que o NT começou a ser propagado, a parte grifada da passagem acima tem soado estranha para os leitores ocidentais, provavelmente em virtude de os elementos usados no contraste hiperbólico (camelo e orifício de agulha) aparentarem não ter nenhuma relação lógica entre si. Stern (2008, p. 86), ao comentar essa passagem, diz que se trata mesmo de algo estranho, pois é óbvio ser impossível que o maior animal conhecido em Israel naquela época tentasse abrir caminho pela menor abertura normalmente encontrada. Dito isto, vejamos como nosso corpus traduziu a parte grifada da passagem:

Quadro 12 – Traduções propostas para a parte grifada da tradução interlinear de Mateus 19:24

camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus.

TEAV (p. 1308)

... é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus.

TNMES (p. 1156)

É mais fácil um camelo passar pelo orifício duma agulha, do que um rico entrar no reino de Deus.

TEB (p. 1896)

... é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus.

TBH (p. 632) ... é mais fácil passar uma corda pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Elohim.

Ao observarmos os trechos grifados do quadro acima, vemos que, na TBH, contrariando as demais versões, é uma corda que passa pelo orifício da agulha. Naturalmente, poder-se-ia concluir que estamos diante de uma tradução equivocada. Mas, como veremos, essa divergência tem uma explicação ideológico-doutrinária: ela demonstra que os tradutores da TBH são favoráveis à hipótese atualmente conhecida no meio teológico como primazia aramaica, a qual defende que os livros que compõem o NT foram originalmente compostos no idioma falado por Cristo e seus primeiros seguidores, a saber, o aramaico, e depois traduzidos para o grego, mas os originais em aramaico teriam se perdido e somente as traduções gregas sobreviveram. Apesar de ser válida e convincente em alguns casos específicos, essa hipótese, contudo, tem sofrido oposições. Por exemplo, Kurt Aland e Barbara Aland (2009, p. 98-99) defendem que

não há mais qualquer dúvida de que o grego era o idioma no qual todas as partes do Novo Testamento foram originalmente escritas, embora textos cristãos em aramaico possam ter circulado no período anterior ao dos nossos Evangelhos (se realmente existiu a tradição aramaica em forma escrita e não meramente oral).

Pelo que se nota, Aland & Aland parecem descartar qualquer possibilidade de que algum livro ou trecho do NT seja uma tradução de originais escritos em aramaico. Eles apenas cogitam que textos cristãos nessa língua podem ter circulado antes da escrita dos evangelhos. Entretanto, de acordo com Stern (2010, p. 40),

existem boas razões para afirmar que vários livros do Novo Testamento foram originalmente escritos em hebraico ou aramaico, ou derivados de composições nessas línguas; essa hipótese é levantada por diversos eruditos a respeito dos quatro Evangelhos, Atos, Apocalipse e de várias cartas gerais. [...] De fato, algumas expressões nos manuscritos [em grego] do Novo Testamento não fazem sentido, a menos que se alcance o significado hebraico subjacente às palavras gregas.

Lamsa (1968, p. i, tradução nossa e grifo nosso) também defende esse ponto de vista e vai além, informado que,

no primeiro século, Jesus e seus primeiros seguidores certamente falavam o aramaico a maior parte do tempo, embora também conhecessem o hebraico. Em virtude disso, a mensagem do evangelho foi primeiramente pregada no aramaico dos judeus da Palestina. Eruditos da atualidade dizem que os originais dos quatro evangelhos e das outras partes do Novo Testamento foram escritos em grego. A Igreja do Oriente e alguns conceituados eruditos ocidentais discordam disso. Independentemente do ponto de vista que for adotado, a língua aramaica é um fator latente, e é uma verdade inquestionável que documentos escritos em aramaico (a forma básica inspirada da mensagem cristã) foram esboçados pelos escritores do Novo Testamento54.

54 No original: “In the first century, Jesus and his earliest followers certainly spoke Aramaic for

the most part, although they also knew Hebrew. Therefore the Gospel message was first preached in the Aramaic of the Jews of Palestine. Modern scholarship tells that the originals of the Four Gospels and of other parts of the New Testament were written in Greek; this is disputed by the Church of the East and by some noted Westerns scholars. Regardless of which view one may accept, Aramaic speech is an underlying factor and it is unquestionably true that

E é já no prefácio da TBH (p. 13-14) que os tradutores manifestam seu posicionamento favorável à primazia aramaica, conjecturando que o termo camelo no texto grego do NT seria um equívoco de tradução, originado pela palavra aramaica ambígua gamla, que, segundo aponta Lamsa (1968, p. xvi), podia significar tanto camelo quanto corda. Partindo desse pressuposto, os tradutores da TBH defendem que o sentido correto da palavra é corda, pois elimina a estranheza da passagem, visto que os elementos usados no contraste hiperbólico (corda e buraco da agulha) agora passam a ter relação lógica entre si.

Apesar de a TBH apresentar uma justificativa válida para ter se afastado do texto grego do NT em um ponto específico de Mateus 19:24, convém mencionarmos que estamos diante de uma dificuldade que não é tão fácil de ser resolvida como parece, pois há outras evidências que enfraquecem o pensamento de que a palavra camelo no texto do NT em grego seria oriunda de um equívoco tradutório. Conforme afirmamos acima, comparar um camelo passando pelo buraco de uma agulha pode soar como algo estranho para os leitores ocidentais, mas não para os orientais, uma vez que, de acordo com a TEB (1994, p. 1896), essa é uma analogia de cunho bem oriental.

Além disso, para se referir a algo humanamente impossível, parece que era comum em Israel e imediações usar uma figura de linguagem que compara um animal de grande porte passando pelo orifício de uma agulha, pois uma alegoria dessa natureza aparece também em outras composições literárias que surgiram no mesmo contexto linguístico e cultural do NT. Por exemplo, no livro sagrado do Islamismo, o Alcorão (2009, p. 200, grifo nosso), na 7a Surata, versículo 40, está dito o seguinte:

àqueles que desmentirem os Nossos versículos e se ensoberbecerem, jamais lhes serão abertas as portas do céu, nem entrarão no Paraíso, até que um camelo passe pelo buraco de uma agulha. Assim castigamos os pecadores.

Já entre os judeus, há uma alusão semelhante no Talmude 352, Tratado Berachot 55b (grifo nosso): “Ninguém imagina, nem mesmo em sonho, uma palmeira de ouro, ou um elefante que passe pelo buraco de

documents written in Aramaic were draw on by writers of the New Testament, the basic inspired form of the Christian message”.

uma agulha”. No entanto, como a TBH apresenta o consistente argumento de que Cristo teria utilizado uma palavra aramaica ambígua (gamla), não há como saber ao certo se a referência foi a uma corda ou a um camelo. Sendo assim, devemos ser cautelosos, e admitir que as evidências disponíveis, ao que parece, não chegam a ser suficientes para resolver a dificuldade que reveste a passagem, tendo em vista o equilíbrio dos argumentos. No entanto, registre-se que os tradutores favoráveis à primazia aramaica estarão propensos a deixar de lado a informação que conta no texto grego do NT que diz ser um camelo e substituí-la por aquela que se encaixa na sua corrente ideológico- doutrinária, que defende ser uma corda.