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3 A HISTÓRIA DA TRADUÇÃO DA BÍBLIA NO

5.5 OUTRA PROFECIA MESSIÂNICA?

Consideremos, a seguir, a tradução interlinear do hebraico para Isaías 9:6, tomada de Kohlenberger III (p. 19, versão nossa). Com o objetivo de tornar a tradução interlinear mais fluente, convém esclarecer que as palavras entre colchetes nessa e nas demais passagens são acréscimos nossos. Vejamos:

Pois [uma] criança nasceu a nós, [um] filho foi dado a nós, e estará a autoridade sobre seu ombro, e será chamado seu nome Maravilha de

Conselheiro, Deus de Poder, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz.41

No que se refere ao contexto histórico-literário dessa passagem, a Bíblia de Estudo Defesa da Fé (2010, p. 1079-1080) registra que

41 No original: “For child he is born to us, son he is given to us, and she will be the government

on shoulder of him, and he will call name of him Wonder of One Counseling, God of Might, Father of Everlasting, Prince of Peace.”

alguns comentaristas acreditam que Isaías estava descrevendo um governante judeu que viria durante o seu próprio tempo; assim, estes nomes foram aplicados aos reinados de Ezequias, Josias e até mesmo de Acaz.

Quanto à dimensão religiosa, a interpretação tradicional do Cristianismo é que se trata de mais uma das profecias messiânicas que teriam se cumprido na pessoa de Jesus de Nazaré, e uma das justificativas apresentadas para esse pensamento é que Mateus 4:1642, passagem que o evangelista registra antes de começar a narrar como se deu o início do ministério de Cristo, nada mais é do que uma citação direta de Isaías 9:243, que, por sua vez, seria o versículo que introduz a profecia messiânica da qual Isaías 9:6, que estamos analisando, é parte integrante. Agora vejamos as traduções do nosso corpus:

Quadro 6 – Traduções propostas para Isaías 9:6

TB (p. 669)

Porque a nós nos é nascido um menino, e a nós nos é dado um filho: o governo está sobre os seus ombros, e ele tem por nome Maravilhoso, Conselheiro, Poderoso Deus, Eterno Pai, Príncipe da Paz.

TEAV (p. 950)

Porque um menino nos nasceu, um filho nos foi dado; a soberania repousa sobre seus ombros, e ele se chama: Conselheiro admirável, Deus forte, Pai eterno, Príncipe da paz.

TNMES (p. 846)

Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu; e o domínio principesco virá a estar sobre o seu ombro. E será chamado pelo nome de Maravilhoso Conselheiro, Deus Poderoso, Pai Eterno, Príncipe da Paz.

TEB (p. 618) Pois uma criança nasceu para nós, um filho nos foi

42 Na tradução da Bíblia de Jerusalém (2002, p. 1709): “O povo que jazia nas trevas viu uma

grande luz; aos que jaziam na região sombria da morte, surgiu uma luz”.

43 Na tradução da Bíblia de Jerusalém (2002, p. 1268): “O povo que andava nas trevas viu uma

dado. A soberania repousa nos seus ombros. Proclama-se o seu nome: Conselheiro Maravilhoso, Deus Forte, Pai para sempre, Príncipe da Paz.

BH (p. 375)

Pois nasceu entre nós uma criança, um filho (de Ahaz [Acaz], da dinastia de David) nos foi dado. E sobre seus ombros estará a autoridade; por isso o Maravilhoso Conselheiro, o Deus Todo- Poderoso e Pai eterno, alcunhou-o (a Hizikiáhu [Ezequias], o filho de Ahaz) de Sar-Shalom (‘Príncipe da Paz’).

TBH (p. 455)

Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu, e o principado está sobre os seus ombros, e se chamará o seu nome: Maravilhoso, Conselheiro, Elohim Poderoso, Pai da Eternidade, Príncipe da Shalom.

Como mostra o quadro acima, a BH se desviou do original em alguns aspectos. O que se nota no texto de chegada dessa versão são interpolações que, à primeira vista, podem estar pretendendo elucidar o texto fonte, pois, lembrando, o prefácio da obra (p. 8, grifo nosso) registra o seguinte:

usou-se a inserção criteriosa de certas palavras (normalmente entre parênteses) quando extremamente necessárias à compreensão do texto, [...] a fim de possibilitar sua leitura à luz dos ensinamentos e orientações técnicas dos Sábios do Talmud e dos consagrados exegetas bíblicos judeus dos últimos 2 mil anos.

Esta é a explicação que os editores fornecem para a incidência de interpolações no texto de chegada da BH. Em alguns casos, elas podem até ser esclarecedoras, mas, em outros, certamente são a estratégia que os tradutores lançaram mão para introduzir informações complementares no texto de chegada. Aliás, os próprios editores da BH assinalam que foi levada em conta uma tradição paralela de interpretação do Tanakh (AT), conforme denota a parte grifada da citação acima, o que parece indicar que o escopo do projeto tradutório

certamente foi produzir uma tradução alinhada com uma tradição interpretativa específica. Felizmente, este ponto foi esclarecido para o leitor no prefácio.

Porém, quando levamos em conta o que o original de Isaías 9:6 diz literalmente, vem à luz o que parece ser o motivo que levou os tradutores a deixarem de lado determinados aspectos do texto fonte, ou seja, que foi provavelmente com o intuito de romper uma potencial associação da passagem com a pessoa de Jesus de Nazaré, que não é visto como Messias pelo público-alvo da BH (os judeus tradicionais). Desta maneira, além das já citadas interpolações, nota-se que uma outra estratégia dos tradutores para ajustar Isaías 9:6 aos seus pressupostos ideológico-doutrinários foi reformularem-na de tal maneira no texto de chegada que um outro personagem é introduzido na narrativa, a saber, Deus. E eles atingiram esse efeito ao posicionarem o verbo alcunhar antes de Sar-Shalom e ao inserir dois sintagmas que não encontram apoio no texto fonte (por isso e o artigo definido o anteposto a Maravilhoso).

Assim, percebe-se que a suposta profecia messiânica de Isaías 9:6, a qual os cristãos costumam vindicar para Jesus de Nazaré, fica ainda mais descaracterizada na BH quando se leva em conta que os adjetivos foram deslocados para Deus (exceto Príncipe da Paz), que, além disso, passa a ser o sujeito do verbo alcunhar, e a criança passa a ter apenas o atributo de Príncipe da Paz. No entanto, não se pode ignorar que o original parece não deixar dúvidas de que a sentença outorgante dos atributos do personagem (parte negritada da tradução interlinear) possui sujeito indeterminado e que tais atributos (Maravilhoso, Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade e Príncipe da Paz) estão mesmo se referindo à criança, tradicionalmente identificada no Cristianismo com o Messias, que teria o poder sobre os seus ombros quando nascesse.

Assim, nota-se que a BH introduziu em Isaías 9:6 algumas informações que não constam no original, a ponto de a presença discursiva do tradutor ficar bem à vista no texto de chegada dessa versão. De qualquer forma, parece que tal atitude está fazendo jus em atender ao escopo do projeto tradutivo no que concerne a produzir uma tradução condizente com os pressupostos ideológico-doutrinários do Judaísmo tradicional para atender às expectativas do seu público alvo.