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1 A RECLUSÃO FEMININA NO BRASIL COLÔNIA

1.3 Caminhos e descaminhos que levam à reclusão

Elaboradora de ideais de comportamento feminino, a sociedade colonial e imperial não deixava de se preocupar com as ações e posturas das mulheres. Num momento em que a honra feminina configurava-se como algo imprescindível e explicitamente vinculado à sexualidade, ou seja, ao uso que a mulher faria do próprio corpo, os homens não pouparam

18 A teorização em torno do enclausuramento das ordens religiosas femininas remonta à Idade Média, quando os

papas Gregório IX e Inocêncio IV legislaram sobre a forma de vida religiosa das mulheres. No século XIII havia uma tendência em considerar o uso da fala pelas mulheres como tagarelice, assim, difundia-se a ideia de que os muros dos conventos protegeriam as mulheres de si mesmas, privando-as de verem e interagirem com o mundo exterior e livrando os homens de sua influência (LIMA, 2002).

esforços para preservar a honra feminina, já que publicidade da desonra de uma filha, irmã ou esposa significava a própria desmoralização pública (SILVA, 1998). E nesse sentido, como afirma Bourdieu (2002), “o homem “verdadeiramente homem” é aquele que se sente obrigado a estar à altura da possibilidade que lhe é oferecida de fazer crescer sua honra buscando a glória e a distinção na esfera pública”.

Nesse contexto, os Recolhimentos expressavam as vontades e os valores masculinos e moldavam-se às necessidades da sociedade, fazendo com que nas diversas instituições que existiram fosse aceito o ingresso de mulheres pelos mais diversos motivos, os quais variaram entre religiosos, caritativos, educativos e punitivos. Em muitas circunstâncias a motivação inicial para a reclusão não abarcava apenas uma dessas quatro situações, mas acabava por ser uma mescla, com maior ou menor ênfase, de todas elas. Os ingressos definitivos ou passageiros por um Recolhimento servem para evidenciar que, quando a reclusão doméstica não se mostrava eficiente, o homem não se omitia em recorrer à reclusão institucional para punir e preservar a sua honra.

Dessa maneira, um dos grupos de mulheres acolhidas por esse tipo de instituição era formado por aquelas que de alguma forma haviam transgredido os valores morais ou colocado em risco a sua honra e a de sua família. O ato de enclausurar para preservar ou restabelecer a moral feminina representava em muitos aspectos uma punição, já que a reclusão significava o afastamento do convívio familiar e público, este último entendido, à época, como propício à corrupção moral das mulheres por oportunizar experiências e contatos que não estavam circunscritos ao ambiente doméstico. “Em uma sociedade em que o poder pertencia aos homens, os Recolhimentos configuravam-se como soluções para mulheres que de alguma forma ousavam colocar a moral de sua família em risco” (SILVA, 1998, p. 233).

A reclusão, quando aplicada de forma alheia à vontade da mulher, isto é, como punição, acabava por representar uma possibilidade de perturbação da rotina da Instituição, pois dava margem à indisciplina e a tentativas de fuga, o que evidenciava que nem todas aceitavam com resignação essa condição. Tal quadro se aplicava àquelas que foram levadas aos Recolhimentos por produzirem tensões e disputas familiares de fundo econômico, isto porque alguns homens interessados em promoverem divisões desiguais de patrimônios ou controlarem os bens familiares, e encontrando resistência das esposas ou irmãs, puderam observar na reclusão a possibilidade de terem sua autoridade reconhecida e seus problemas solucionados.

sexualidade das mulheres coloniais, o Recolhimento constituía parte da engrenagem social do Setecentos. Fazendo-o funcionar, à medida que mantinha o status de uma camada social privilegiada, garantia a ordem pública, quando controlava as ações das mulheres de camadas médias e, ao mesmo tempo, promovia subsídios morais, religiosos e intelectuais para adequar a mulher às necessidades do Estado de formar os futuros cidadãos.

Os Recolhimentos também aceitavam o ingresso de mulheres casadas, desde que a permanência fosse temporária e que todas as despesas com a hospedagem fossem pagas pelo requerente. As circunstâncias que levaram as mulheres casadas à reclusão giravam em torno da preservação da honra de um marido ausente, abandono, violência contra a esposa e depósito judicial, enquanto corria um processo de divórcio19

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Voltando suas atenções para a educação, os Recolhimentos também aceitaram em sua clientela meninas para receberem educação moral e religiosa, os conhecimentos elementares da leitura, escrita e do cálculo. Além de educar e proteger mulheres pobres e desvalidas, alguns Recolhimentos recebiam mulheres abastadas, mas como estas dependiam moralmente de uma tutela masculina, o pedido de ingresso deveria ser feito por um protetor legal. A presença de mulheres das classes mais altas era marcada pela introdução no interior da Instituição de escravas para servi-las, o que acabava por criar certa diferenciação entre as internas.

De todo modo, a experiência de uma vida contemplativa esteve sempre presente nos Recolhimentos, na medida em que muitas mulheres, por não terem acesso às congregações femininas e à vida conventual, viveram devotamente, mesmo sem os votos perpétuos. Entre o casamento e a vida religiosa, muitas mulheres escolheram ou foram forçadas a aceitar a segunda opção.

Mesmo que levadas a um Recolhimento por motivos distintos, a reclusão, às vezes, chegava a unir irmãs, primas e até mesmo tias e sobrinhas. Ao dividirem com uma ou mais parentas uma vida reclusa, as internas acabavam por reproduzir no interior da Instituição algumas práticas características do circulo familiar, como a troca de confidências e a preocupação com o bem-estar mútuo.

Segundo Muniz (1999), qualquer que tenha sido o motivo da reclusão, o certo é que essas instituições configuravam-se como espaços domesticadores e homogeneizadores da

19 Para uma leitura mais aprofundada dos motivos que levaram as mulheres casadas a serem depositadas no

Recolhimento do Maranhão ler: CORREIA, Maria da Glória Guimarães. Do amor nas terras do Maranhão: Um estudo sobre casamento e o divórcio entre 1750-1850. 2004. Tese (Doutorado). Universidade Federal Fluminense, 2004.

conduta feminina, processo que se deu por meio de uma poderosa ação disciplinar que incluiu conformismo e resistência, submissão e rebeldia, transigência e transgressão.