• Nenhum resultado encontrado

2 A EXPERIÊNCIA FEMININA NO RECOLHIMENTO DO MARANHÃO

2.4 Sociabilidade (des)construída: limites e possibilidades

2.4.3 Morrer no Recolhimento

Como não poderia deixar de ser, no Recolhimento também houve situações em que a doença levou à morte algumas recolhidas. Se o falecimento parecesse evidente, o Estatuto previa uma série de medidas a serem tomadas pela regente, as quais estavam diretamente ligadas à concepção que tinham da morte no período. Segundo Reis (2006, p. 96), que estudou o contexto da morte no Oitocentos no Brasil, esse momento era tido como uma passagem, motivo porque a ideia de deslocamento espacial e viagem estavam, sobremaneira, presentes nos ritos que a cercavam. As cerimônias e a simbologia que envolviam a morte eram produzidas para promoverem uma boa passagem para o outro mundo.

Dentre as primeiras medidas a serem adotadas pela regente, nessa circunstância, estava providenciar para que a moribunda recebesse a confissão e o santíssimo viático72, momento em que toda a comunidade era chamada à portaria com velas na mão para acompanhar a entrada e saída do sacerdote e do sacristão. Eles deveriam estar adequadamente vestidos de sobrepeliz73. A confissão diante da possibilidade da morte dava, portanto, a oportunidade de arrependimento dos pecados e era considerada importante para livrar a alma do inferno. Enquanto a queima de velas, do ponto de vista ritual, ajudava a abrir o caminho do morto para a vida eterna, simbolizando ainda o esvair-se da matéria (REIS, 2006, p. 118).

Outro importante procedimento nas situações de agonia da enferma era chamar o seu diretor espiritual ou o capelão do Recolhimento para dar-lhe a extrema-unção, e acionar o som da campainha para que toda a comunidade recitasse preces e ladainhas pela agonizante (ESTATUTO DO RECOLHIMENTO, 2009, p. 360).

Assim como os outros sacramentos da Igreja Católica, a extrema-unção reforçava a crença dos fiéis na ligação direta que existia entre os líderes espirituais e o sagrado, o poder de intermediar a palavra de Deus. Por ser carregada pela simbologia do perdão, a unção com o santo óleo ao enfermo tinha o papel de trazer paz ao coração aflito diante da morte, porque, fortalecia sua esperança na salvação de sua alma.

Também cabia à regente cuidar para que a agonizante não ficasse um único momento só e que as orações continuamente rogassem pela sua alma. Assim sendo, fazia com

72 Sacramento da eucaristia administrado aos enfermos acamados (FERREIRA, 2004, p. 750). 73

Por ser uma ocasião marcada por uma ritualística, a veste usada sobre a batina sacerdotal deveria ser branca, por representar a paz espiritual, assim como a castidade das mulheres ali confinadas (ESTATUTO DO RECOLHIMENTO, 2009, p. 360).

que corresse uma escala, a cada três horas, de duas recolhidas, “as quais fariam orações ao Senhor para que assistisse a enferma com a graça final até o último suspiro da vida humana” (ESTATUTO DO RECOLHIMENTO, 2009, p. 356). A hora da morte era, portanto, marcada pelo cuidado espiritual e, no caso das recolhidas, esse amparo não se dava pelos familiares, mas pelas mãos de companheiras de reclusão.

Às doentes era facultado o direito à licença para tratamento de saúde, desde que houvesse autorização de seu responsável legal. É provável que nesse momento elas preferissem que o tratamento fosse feito fora do Recolhimento, envoltas aos cuidados da família. Com a morte à espreita, talvez as recolhidas temessem morrer longe de seus entes queridos. Possivelmente isto explique os constantes pedidos de licença para tratamento de saúde encontrados entre a documentação consultada.

Mesmo que as autorizações para tratamento de saúde fora da Instituição fossem frequentes, catalogamos em um período de cinco anos (1871 a 1876) dezesseis mortes dentro da Casa, sendo treze de recolhidas, duas de servas (uma escrava e outra livre) e ainda de um escravo de propriedade do Estabelecimento, chamado Raimundo da Anunciação74. Os comunicados de falecimento feitos ao Bispo pela regente não apresentam dados completos quanto à causa mortis, idade, categoria a que pertencia dentro do Recolhimento, filiação, entre outras informações. Seu objetivo era simplesmente encaminhar os procedimentos fúnebres. Por isso, não foi possível colher informações mais detalhadas, apenas que as mortes mais comuns estavam relacionadas a doenças do aparelho respiratório, varíola (bexiga) e beribéri.

Os surtos de cólera e varíola não foram raros durante o período do Império e acabavam atingindo praticamente todas as províncias trazendo grande mortandade (ALENCASTRO, 2006). Portanto, o Recolhimento não esteve livre das epidemias que assolaram a Capital. Desse modo, não foram raras as mortes por varíola, como o surto de 1871, que levou à morte duas recolhidas75 (Francisca Rosa Rocha e Luiza Neres de Carvalho) e por outras doenças epidemiológicas. Isso demonstra que o Estabelecimento não estava tão isolado quanto queriam ou poderia parecer, principalmente porque utilizava os serviços de escravos(as), e estes (as) eram um elo com o mundo exterior, logo, um dos meios de contágio, a exemplo do escravo Raimundo da Anunciação, já citado, que morreu de varíola em agosto de 1874.

74 CORRESPONDÊNCIAS recebidas pelo Bispo da Diocese do Maranhão enviada do Recolhimento de N. Sra.

da Anunciação e Remédios (1873-1877). Cx. 216, 1º pacote.

Dada a natureza de seu cargo, é possível que o Bispo não se envolvesse diretamente nos pormenores do funeral das recolhidas e delegasse aos seus auxiliares (procurador, capelão e regente) poderes para procederem aos enterros daquelas cujas famílias não possuíssem condições financeiras para realizá-los, ou que residissem no interior da Província76, bem como para processarem os trâmites de entrega do corpo aos familiares quando estes o requeriam.

Como esclarece Reis (1997), uma das características da cultura funerária oitocentista era organizar a própria morte, como indicar no testamento a quantidade de missas que deveriam ser celebradas na intenção de sua alma, o modelo da mortalha, o tipo de caixão, local da sepultura, dentre outros pormenores77. O Estatuto do Recolhimento previa apenas que se procedessem aos ritos da Igreja como a missa de corpo presente. Mas, em 1761, a recolhida Ana Barbosa de Jesus Maria deixou dito em seu testamento que seu corpo devia ser “sepultado na capela do Recolhimento amortalhado no mesmo hábito de recolhida e levado no esquife da venerável Ordem Terceira de São Francisco das Chagas” da qual era irmã (MOTA, SILVA, MANTOVANI, 2001).

Conforme demonstramos anteriormente, durante o século XIX, eram comuns os enterros dentro das igrejas e, como não poderia deixar de ser, a igreja do Recolhimento, também realizava enterros tanto de recolhidas como de membros de irmandades. Todavia, os surtos epidêmicos que atingiram o Brasil ao longo do Novecentos serviram como catalisadores das mudanças, no que diz respeito ao modo de morrer 78. Assim, a preocupação com a questão higiênica e a falta de espaço no interior das igrejas para os sepultamentos levaram a uma progressiva dessacralização da morte79.

Agostinho Coe (2007), em estudo realizado sobre as mudanças nas práticas de sepultamentos ocorridos em São Luís, na segunda metade do século XIX, afirma que somente a partir da década de 1850 se extinguiram os enterros nas igrejas da capital do Maranhão.

Assim, em 1831, a regente do Recolhimento, Ana Francisca do Coração de Jesus,

76

Num período em que os meios de transporte se limitavam aos animais de montaria ou às embarcações a vapor, o translado de um corpo poderia levar dias, o que inevitavelmente acarretaria sua deterioração, em função das altas temperaturas dos trópicos.

77

Para uma leitura mais aprofundada sobre os ritos fúnebres no Maranhão durante o século XVIII, ler: FREITAS, Surama de Almeida. Ritos fúnebres e sociedade na Capitania do Maranhão (1750-1800). São Luís, 2000. Monografia. Universidade Federal do Maranhão.

78

Como parte das reformas liberais prometidas por D. Pedro I, a Lei de 1828, que reestruturava as municipalidades, estabelecia que as Câmaras providenciassem a remoção dos mortos das áreas urbanas. Com o passar dos anos, além das Câmaras, as Assembleias Provinciais que passaram a funcionar em 1835, produziram leis que obrigavam as irmandades, paróquias e conventos a abandonarem o costume de enterrar mortos nas igrejas (REIS, 2006, p. 135).

79

Para uma leitura mais aprofundada sobre o tema, ler: DOURADO, Marilde Rego. A dessacralização da morte na freguesia de N. Sra. da Vitória (1820 a 1849). São Luís, 2000. Monografia. Universidade Federal Maranhão.

em solicitação para que fosse dada licença para a ereção de um cemitério para as recolhidas, em um terreno lateral à Igreja da Instituição, manifestou-se favorável à Lei Imperial de 1828, a qual estabelecia que todas as províncias procedessem no sentido de estabelecer cemitérios fora do recinto dos templos80. De acordo com o documento, a regente ainda argumentava não haver dúvida de que o espírito da legislação era limitar e evitar que a humanidade fosse prejudicada pelos miasmas81 e pestilências dos cadáveres sepultados nos templos abafados e neles concentrados. Isto demonstra que o discurso higienista em voga começava a ser absorvido pela população.

O mesmo documento também informa que foi instituída, em 1829, uma comissão eclesiástico-civil que teria por função vistoriar os templos de São Luís, procurando saber, na ocasião, os lugares indicados pelos referidos párocos para a construção dos cemitérios exigidos pela Postura da Câmara Municipal. A comissão disse em seu relatório que estava convencida de que as posturas proibitivas de sepultamento no interior das igrejas não poderiam ter efeito imediato, ainda que fossem logo publicadas, visto que não eram suficientes para impedir que a população e os empreendedores desta prática continuassem a agir como se desconhecessem a lei.

É necessário pontuar que tais leis representam parte de um processo de mudança de mentalidade sobre os ritos funerários arraigados no seio da sociedade e que, portanto, precisavam de tempo para serem conhecidas, compreendidas e assimiladas.

Os enterros fora da igreja, promovidos pelo Recolhimento, não devem ter sido marcados pela presença de muitas pessoas, já que o cemitério destinado a elas foi construído contíguo ao prédio do Recolhimento. Apesar de o Recolhimento localizar-se próximo ao cemitério, não sabemos se era permitido às internas acompanharem o cortejo fúnebre. Isso nos leva a inferir que essa ocasião podia ser percebida pelas autoridades da Casa como um elemento facilitador de contatos considerados impróprios às reclusas. Desse modo, é possível que as defuntas acabassem por não receber a última homenagem de suas companheiras de reclusão: a presença no momento do enterro.