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4. Contribuições para a integralidade na formação médica

4.7. Caminhos para uma formação moral na medicina

(4) A metodologia científica proposta demanda um trabalho introspectivo do estudante e a apropriação pessoal de seus princípios está impreterivelmente imbricada com o desenvolvimento

de certas qualidades morais.

Neste último ponto, abordaremos os aspectos interiores e morais apontados por Steiner como elementos essenciais da formação médica. Alcançar o tipo de conhecimento do processo de saúde-adoecimento-cuidado proposto por Steiner não requer apenas um trabalho de observação externa. Seu método, apresentado em nossa pesquisa como fundamentalmente fenomenológico, inclui tanto experiências dos sentidos físicos voltadas para o mundo “externo” como experiências voltadas a uma percepção e educação de elementos internos da subjetividade humana, tais como a vontade, os sentimentos e pensamentos. O objetivo da fenomenologia é mais amplo do que a produção de conhecimento. Ela busca integrar pensamentos e sentimentos numa vivência cognitiva, que promove, aos moldes de Goethe, metamorfoses na alma do pesquisador.

Esta orientação interior da formação médica foi apresentada no subitem O caminho interior do médico, no segundo capítulo. Como ali descrito, Steiner sugeriu, nos cursos de páscoa e de natal, diversas práticas com esta finalidade. Analisando estas sugestões, identificamos um traço comum nos exercícios de desenvolvimento moral, também chamados de meditações pelo fundador da antroposofia. Todos têm como método o direcionamento dos pensamentos e sentimentos do estudante a uma contemplação interna de certas imagens em movimento, dentro de um dado contexto de significação moral. A partir desta contemplação, o estudante pode

alcançar novos insights tanto de como conduzir o tratamento quanto de ânimo e dedicação moral à sua tarefa terapêutica.

4.7.1. A meditação de Steiner em diálogo com outras tradições

Estas indicações para o desenvolvimento interior dos profissionais médicos nos permitem associar a proposta de educação médica de Steiner a inúmeras tradições filosóficas e espirituais da história da humanidade. Este tipo de exercício contemplativo ou meditativo foi e segue sendo indicado por muitas delas como recurso para o desenvolvimento de um equilíbrio emocional individual e coletivo de seus praticantes e também para o reconhecimento de novos elementos constituintes da realidade. Nossa principal referência para esta afirmação é A mente meditativa, obra de Daniel Goleman (1997).

Goleman faz uma ampla revisão de práticas meditativas em tradições filosóficas e religiosas do Oriente e Ocidente, demonstrando que elas possuem um fio condutor em comum. “Nesse nível mais universal, todos os sistemas de meditação são variações de um único processo de transformação da consciência.” (GOLEMAN, 1997, p. 119). Goleman identifica como principal elemento comum às práticas meditativas a reeducação da atenção. Ele afirma: “Mas a necessidade de o meditador reeducar sua atenção, seja através da concentração ou da atentividade, é o único ingrediente constante em cada receita de cada sistema de meditação para se alterar a consciência.” (GOLEMAN, 1997, p. 124).

O psicólogo norte-americano aponta a existência de duas estratégias básicas para a reeducação: a concentração e a atentividade ou introvisão. Na concentração, a mente focaliza um objeto mental fixo. Este processo possui certos atributos-chave: perda da consciência dos sentidos, atenção unidirecionada para um objeto com exclusão dos demais pensamentos e sentimentos sublimes de êxtase.

Na atentividade, a mente deve observar a si mesma. Os passos desta segunda via são semelhantes nos diversos sistemas: percepção cada vez mais refinada da mente do meditador, desprendimento desses eventos e uma focalização imperiosa no momento presente. Também podem ser encontradas práticas meditativas que combinam ambas as vias, que Goleman denomina integradas. (GOLEMAN, 1997, p. 122, 126-127). O psicólogo norte-americano salienta que as vias de meditação possibilitam não apenas um equilíbrio emocional dos

meditadores, mas uma mudança no estado de consciência e de compreensão e interação com a realidade:

A meta de todas as vias de meditação, sejam quais forem sua ideologia, fonte ou métodos, é transformar a consciência do meditador. Nesse processo, o meditador morre para o seu eu passado e renasce para um novo tipo de experiência. [...] Cada escola rotula este estado final de modo distinto. Mas não importa quão diferentes sejam os nomes, essas escolas todas propõem a mesma fórmula básica numa alquimia do eu: a difusão dos efeitos da meditação nos estados de vigília, sono e sonho do meditador. [...]. À medida que os estados produzidos por sua meditação se misturam com sua atividade diária, o estado desperto amadurece. Quando atinge a maturidade total, ele muda permanentemente a sua consciência, transformando a vivência de si mesmo e de seu universo. (GOLEMAN, 1997, p. 128-129)

Partindo desta análise de Goleman, podemos promover uma categorização da proposta meditativa de Rudolf Steiner para a formação médica. De início, as sugestões do filósofo de Kraljevec incluem principalmente exercícios de concentração. A própria investigação fenomenológica de base goetheana pode ser considerada uma prática meditativa desta via. Primeiro, existe um momento de focalização e descrição do objeto em estudo. Depois, esta mesma atenção se volta a uma concentração nas imagens e idéias que surgem à mente. Ao final, a atenção mergulha de tal forma no objeto que ocorre uma integração íntima com o objeto (conferir, por exemplo, a contemplação do orvalho em STEINER, 2006, p. 71-72).

Além do estudo fenomenológico da natureza, o fundador da antroposofia ensinou outros exercícios meditativos, a partir da visualização interior de processos de desenvolvimento, como as mudanças que acontecem nas formas de um embrião até se tornar uma criança. Estas visualizações são associadas muitas vezes a versos que possuem uma significação moral. Ele denominou estes versos de mantras (conferir, por exemplo, STEINER, 2006, p. 231-236). Steiner indica que estas imagens deveriam estar presentes à mente, evitando-se a interpelação pelo intelecto, para que as mudanças na alma do estudante pudessem acontecer. O processo meditativo de Steiner aponta também, neste sentido, para uma transformação da maneira como o meditador ver o mundo (STEINER, 1999b, p. 108).

Quando tomamos as sugestões meditativas mais gerais de Steiner – nos passos da imaginação, inspiração e intuição (STEINER, 2010) –, há uma mescla de concentração e atentividade. Na imaginação, os pensamentos são contemplados como objeto de percepção do

próprio pensar. Na inspiração, avança-se no sentido de contemplar o próprio processo de pensar até que se atinja uma consciência esvaziada. Pensar o pensar é o caminho que Steiner aponta para que possa ressoar a dimensão espiritual da realidade. Ao esvaziar a mente, ocorre uma superação de nossa separação do mundo e nos experimentamos unidos espiritualmente à realidade. Só então alcançamos a intuição steineriana (STEINER, 1996b, p. 19-35).

4.7.2. Uma releitura da proposta meditativa de Steiner

O físico norte-americano, professor do Amherst College, Arthur Zajonc desenvolveu nos últimos anos um importante trabalho de desenvolvimento das propostas meditativas de Rudolf Steiner. No campo teórico, ele estudou os exercícios meditativos de Steiner fazendo uma ponte com as propostas meditativas de várias tradições filosóficas, culturais e espirituais da humanidade. Em seu livro Meditação como indagação contemplativa (2010), Zajonc propõe um modelo de prática meditativa que busca recolher o fundamento dos exercícios steinerianos, independente de seu conteúdo, isto é, do objeto da meditação. O físico norte-americano consegue identificar que, para além dos fatos e personagens da cosmovisão do filósofo de Kraljevec – que, frequentemente, representam uma dificuldade de aproximação da obra de Steiner, com indica Moraes (2005, p. 53) – a base do exercício pode ser desenvolvida com outros conteúdos, desde que guardadas as correspondências com o significado moral de cada etapa. Este tipo de exercício meditativo Zajonc denomina de indagação contemplativa.

O núcleo da indagação contemplativa é o movimento entre duas formas de atenção: atenção focalizada e atenção aberta. Zajonc toma como referência a afirmação do próprio Steiner de que seu objetivo com os exercícios propostos na obra O conhecimento dos mundos superiores era “trazer o ritmo do processo da respiração para o processo da cognição” (STEINER apud ZAJONC, 2010, p. 53). Identificamos a atenção focalizada como uma prática da via da concentração e a atenção aberta, da via da atentividade. Vejamos como o próprio autor as explica:

Na meditação, nós nos movemos entre atenção focalizada e atenção aberta. Dedicamos toda a nossa atenção às palavras individuais do nosso texto escolhido, bem como às suas imagens e significados associados. Depois nos movemos para o seu mútuo relacionamento, de modo a vivenciar um organismo pensamental vivo. Permitimos que essa experiência se intensifique, mantendo interiormente o complexo de significados diante de nós. [...] Após um período de vívida concentração no conteúdo da meditação, o conteúdo é liberado. Aquilo

que foi retido se foi. Nossa atenção se abre. Nós estamos inteiramente presentes. Um espaço psíquico interior foi preparado intencionalmente, e nós permanecemos naquele espaço. Aguardamos, não com expectativa e nem com esperança, mas presentes para acolher bem o que possa ou não possa surgir dentro da calma infinita. (ZAJONC, 2010, p.41).

Nesta citação, o professor do Amherst College se refere ao conteúdo da meditação como textos. Porém, mais adiante, ele também apresenta o universo do mundo natural como um possível foco de atenção, com base na fenomenologia de Goethe (ZAJONC, 2010, p.94-119). Zajonc faz questão de propor a indagação contemplativa como caminho para uma forma de conhecimento denominada conhecimento contemplativo. O conteúdo da meditação pode ser um tema ou questão de pesquisa do próprio mundo acadêmico, da vida pessoal ou profissional de um indivíduo ou coletividade. Zajonc sugere que podemos alcançar respostas para nossas interrogações nas inúmeras áreas da vida humana através desta prática, tomando caminhos diferentes das explicações causais do paradigma positivista. O conhecimento, fruto da indagação contemplativa, são discernimentos ou insights (ZAJONC, 2010, p. 37). Em resumo, a indagação contemplativa “é a aplicação do respirar da atenção à pesquisa realizada pela pessoa. Eu acredito que, de maneiras informais e inconscientes, isto já faz parte do processo de descoberta de indivíduos criativos.” (ZAJONC, 2010, p.45).

A segunda frente importante de trabalhos de Zajonc é a prática dos princípios da indagação contemplativa na formação de estudantes universitários. Os resultados desta frente são apresentados em parceria com outro educador norte-americano Parker J. Palmer na obra The heart of higher education: a call to renewal (PALMER; ZAJONC, 2010). Zajonc desenvolveu uma proposta denominada pedagogia contemplativa em que integra os conteúdos teóricos e práticos, sistematizados em Meditação como indagação contemplativa, ao seu trabalho de ensino universitário. Os princípios da pedagogia contemplativa são semelhantes às propostas de Dahlin, Ostergaard e Hugo para o ensino em ciências (2009). Entretanto, Zajonc e centenas de professores de várias instituições de ensino superior dos Estados Unidos as têm experimentado em várias áreas de ensino como física, artes, humanidades, etc. (PALMER; ZAJONC, 2010, p.114). O elemento principal desta abordagem pedagógica é a vivência integral do aprendizado. Diante de uma pergunta, de um fenômeno ou de uma teoria, devemos nos aproximar não só de forma cognitiva, mas também existencial, estética e afetiva. Para isso, é preciso viver as questões que estão sendo ensinadas. Zajonc destaca que, entre os recursos importantes para pedagogia

contemplativa, estão o desenvolvimento da imaginação, da experimentação em campo das questões estudadas e os próprios exercícios de indagação contemplativa.

A literatura, a história, a filosofia, de fato, qualquer campo oferece ao estudante uma forma de exploração imaginativa, seja ela uma cultura não-familiar, um novo dilema humano, as propriedades desconcertantes da geometria não- euclidiana. É esta exploração que leva à mudança. A admoestação moral “a discriminação é algo errado” não muda nada em nós. Mas “viver a questão verdadeiramente” nos transforma empaticamente e imaginativamente. É o caminho através do qual elaboramos um significado moral e intelectual para o mundo.(PALMER; ZAJONC, 2010, p. 106, tradução nossa)

Zajonc critica a tendência atual do ensino de não deixar espaço para um aprofundamento nos conteúdos estudados. As demonstrações da física, os poemas, as pinturas, todos são apresentados com observações relevantes, brilho acadêmico e análise crítica. Os estudantes registram em seus cadernos e fazem as perguntas ocasionais, da maneira como foram ensinados a fazer. No entanto, raramente internalizam o que aprenderam, menos ainda o utilizam para um real desenvolvimento pessoal. Na direção contrária, o físico norte-americano recorda uma professora de Harvard que provoca seus alunos a adotar uma postura contemplativa diante do tema de estudo: ler um poema lentamente e repetidamente, observar e refletir sobre uma planta diante de si, selecionar uma única linha do poema e mantê-la em mente até que comece a revelar seus significados em várias camadas de profundidade. “Entregue-se a cada órgão da planta até alcançar ‘um sentimento para todo o organismo’” é um dos convites feitos por esta educadora (PALMER; ZAJONC, 2010, p. 112).

Para Zajonc e vários professores, cuja experiência ele toma como horizonte, o ensino universitário tem deixado de lado sua tarefa principal: a da formação humana. A formação para um bom exercício da cidadania e para o trabalho não deve ser o objetivo principal do ensino universitário. Elas são conseqüências esperadas quando a universidade não se desconecta da sua verdadeira finalidade: a formação de seres humanos. (PALMER; ZAJONC, 2010, p. 1). Palmer afirma na mesma obra:

Dar aos estudantes conhecimento como poder sobre o mundo, enquanto se falha em ajudá-los a alcançar um tipo de autoconhecimento, que lhes dê poder sobre si mesmos, é uma receita perigosa - e estamos vivendo com a prova deste chamado em cada aspecto da vida, da economia à religião. Devemos parar de jogar nossos

estudantes na barbárie sem sistematicamente desafiá-los a tomar uma jornada interior tanto quanto uma exterior. (PALMER; ZAJONC, p. 49, tradução nossa). Estes autores são muito firmes em considerar que não se trata de reduzir a formação humana a um ensino de boas condutas, humanidades ou pró-civilizatório. A história recente trouxe duras lições sobre esta distinção. Neste sentido, Palmer sugere que a seguinte frase do livro Hitler’s death camps de Konnilyn G. Feig deveria estar na porta de entrada de toda universidade como um sinal de alerta:

Nós identificamos certos aspectos "civilizatórios” do mundo moderno - música, arte, um senso de família, amor, apreciação da beleza, intelecto, educação... [Mas] após Auschwitz, devemos reconhecer que ser um assassino, um homem de família e um amante de Beethoven não são contradições. Os assassinos não pertenciam a uma sociedade marginal de desajustados, nem poderiam ser dispensados como uma plebe. Eles eram estudiosos, artistas, advogados, teólogos e aristocratas. (FEIG apud PALMER; ZAJONC, 2010, p. 37-38).

4.7.3. Um hiato ético-epistemológico na formação médica

Até aqui apresentamos este caminho meditativo e contemplativo como elemento central das sugestões para a formação moral dos estudantes de medicina, a partir da obra de Rudolf Steiner e de outros autores que seguiram caminhos derivados ou em sintonia com suas posições. Deste momento em diante, analisaremos outras posições atuais sobre a educação moral no ensino médico e universitário para em seguida retornar ao diálogo com as propostas de Steiner.

O debate atual em torno da educação moral ou formação ética dos estudantes de medicina tem ocupado importante espaço acadêmico no Brasil, nos últimos anos. Um dos principais investigadores brasileiros do tema na atualidade é o médico Sérgio Rego pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública. Seu livro A formação ética dos médicos: saindo da adolescência com a vida (dos outros) mãos (REGO, 2003) apresenta uma ampla revisão da produção acadêmica nacional e internacional sobre o tema, somada aos resultados de sua tese de doutorado em que analisou a dimensão ética da formação de graduação em diversos cursos de medicina no Brasil. Para as finalidades deste estudo, pretendemos dar destaque a um dos aspectos da formação ética que ainda é pouco explorado e que, todavia, é talvez o mais enfatizado pela proposta de Steiner: a relação entre aprendizado cognitivo e formação ética.

A obra de Rego retrata a situação atual em que, frequentemente, são abordadas as relações entre aprendizado cognitivo e formação moral. Elas são compreendidas em paralelo. Reconhecem-se os problemas da centralidade que um conhecimento legitimado em bases positivistas traz para a formação médica. Todavia, o caminho proposto como alternativa é o do ensino da ética, como conjunto de saberes próprios, distintos do núcleo biomédico – diagnóstico e tratamento da doença orgânica. A possibilidade de uma transformação mais radical deste núcleo fica à margem, neste enfoque interdisciplinar. (REGO, 2003, p. 21-43).

A formação moral é analisada a partir do diálogo com teorias da sociologia – processos de socialização – e da psicologia – teorias do desenvolvimento moral de Piaget/Kohlberg. Entretanto, é pouco explorada a relação entre ética, estética e epistemologia. Mesmo as teorias destes dois grandes pesquisadores, Piaget e Kohlberg são limitadas à compreensão da capacidade de julgamento ou raciocínio moral, o aspecto mais objetivo e causal da vivência moral humana. (REGO, 2003, p. 45-102).

Rego explicita que: “entendo que o objetivo principal da educação moral seja o de favorecer o desenvolvimento em busca da capacidade de julgar e decidir autonomamente, ou seja, da competência moral.” (REGO, 2003, p. 19). No paralelismo interpelado, ética e saber biomédico ocupam objetos distintos. Podemos dizer que a educação ética trata do aprendizado da realização de escolhas, enquanto o aprendizado cognitivo biomédico se dirige a como compreender a realidade ao meu redor e que possibilidades de interação existem com o meio. Um exemplo pode ajudar: o aprendizado cognitivo pode nos ensinar como se dá tecnicamente uma transfusão de sangue, suas indicações, os riscos e conseqüências ao organismo humano de não fazê-la; o aprendizado ético nos ensina ferramentas de como lidar com a escolha se devo ou não transfundir uma criança com grave hemorragia, filha de pais testemunhas de Jeová, para quem a transfusão é uma violação da vontade divina. Este tipo de abordagem da educação ética é imprescindível.

Porém, a obra de Steiner nos ajuda a lidar justamente com outra questão da formação moral: a relação entre epistemologia e ética, entre educação intelectual e educação moral. Há pesquisadores não antroposóficos que se preocuparam também com esta relação e produziram estudos relevantes sobre o desenvolvimento ético-intelectual de estudantes de nível superior.

4.7.4. Perry e os estudos sobre desenvolvimento ético-epistemológico

A produção sobre o tema é revisada por Marchand no artigo Desenvolvimento intelectual e ético em estudantes do ensino superior – implicações pedagógicas (2008). Um marco inicial nesta abordagem integrada de aspectos morais e cognitivos do ensino-aprendizagem na formação universitária foi o estudo Forms of ethical and intellectual development in college years: a scheme do professor da Universidade de Harvard William Perry (1999). Em 1953, o Centro de Aconselhamento desta universidade (Bureau of Study Counsel) solicitou a Perry que investigasse as possíveis razões para o fato de haver estudantes que apresentavam certa desorientação diante das multiplicidades de matrizes de conhecimento apresentadas nos cursos acadêmicos, enquanto outros se sentiam mais à vontade diante das características de parcialidade e falibilidade dos diversos tipos de saber. Perry realizou um estudo envolvendo 500 estudantes da graduação em Liberal Arts42, 84 seguidos longitudinalmente, que responderam a questionários e foram entrevistados. Na análise dos resultados, Perry identificou a existência de uma progressão de formas, de padrões de experiências subjetivas que os estudantes constroem diante do aprendizado ético e cognitivo.

A forma inicial foi chamada por Perry de dualidade básica. Nesta estrutura, encontram-se os estudantes que relataram uma aproximação bipolar ao conhecimento e às questões éticas do tipo verdadeiro/falso e bom/mau, apresentando a necessidade de respostas absolutas para suas questões. As duas formas seguintes multiplicidade pré-legítima e multiplicidade subordinada reúnem os pesquisados que começavam a se tornar abertos à diversidade de formas de conhecimento, motivados pelas interações com colegas e professores, porém sem ainda reconhecer legitimidade epistemológica a esta abertura, considerando a especulação das incertezas um mero exercício intelectual. As duas próximas posições, multiplicidade correlativa

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Segundo a versão virtual da Encyclopedia Britannica, o curso em Liberal Arts é “a faculdade ou currículo universitário que visa transmitir conhecimentos gerais e desenvolver capacidades intelectuais em geral, em contraste com um currículo profissional ou técnico. Na universidade européia medieval, as sete artes liberais eram gramática, retórica e lógica – o trivium – associadas a geometria, aritmética, música e astronomia – o quadrivium –. Nas faculdades e universidades modernas, as artes liberais incluem o estudo da literatura, línguas, filosofia, história, matemática e ciência, como base de uma educação geral ou liberal. Às vezes, o currículo de artes liberais é descrito como compreendendo o estudo de três ramos principais do conhecimento: ciências humanas (literatura, linguagem, filosofia, artes plásticas e história); matemática e ciências físicas e biológicas; e ciências sociais.

ou relatividade subordinada e relatividade difusa, correspondem àqueles estudantes que adotavam uma concepção da realidade chamada por Perry de “relativizante”, por atribuir